15 de Janeiro, 2025

COMBATENTES DA LIBERDADE | Zeca, acompanharam-no milhares de formigas no carreiro

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SEM FRONTEIRAS | 25 de fevereiro 2021 |Combatentes da liberdade | Zeca Afonso

O último passeio do músico da Liberdade

por Martha Mendes

Sempre que se falava no Zeca Afonso, a Avó Florinda contava-nos, comovida, o dia do seu funeral, em Setúbal “Nunca tinha visto tanta gente junta”. Um mar de gente, munida de cravos vermelhos, tomou conta da Avenida Luísa Todi – o que, dizia a minha avó, “para o tanto que ele nos deu, foi pouco”.

Acompanharam-no, naquele último passeio, milhares de formigas no carreiro. Graças a ele, iam todas em sentido contrário e infinitamente gratas ao combatente e ao músico da Liberdade, aquele que nos deu a “Grândola, Vila Morena”.

O corpo do músico foi velado no interior da antiga Escola Industrial e Comercial de Setúbal, onde José Afonso foi professor de muitos jovens setubalenses e de onde a ditadura o expulsou, como castigo pela sua luta contra o regime. As pessoas encheram as ruas à volta da escola a cantar a “Trova do vento que passa” (“há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”) e, quando o caixão apareceu, ao cimo das escadas da escola comercial, suspenso sobre ombros amigos do Zeca, sem que ninguém combinasse, o mar de gente começou a cantar a senha do 25 de Abril.

E nunca mais pararam de cantar a Liberdade, até chegarem ao cemitério.Os seus últimos desejos foram cumpridos: Zeca Afonso não queria nenhum símbolo sobre o caixão (que desfilou pela cidade apenas coberto com um pano vermelho e rodeado de cravos e pão) e não queria que ninguém fizesse luto. Não houve símbolos, não houve preto. Só vermelho: sobre o caixão, nos cravos e no coração.

Durante as duas horas e o quilómetro e meio que durou o cortejo, alternaram no transporte do corpo operários da antiga cintura industrial de Lisboa; pescadores setubalenses; antigos alunos; amigos e familiares do cantor; companheiros de luta e de palco, como Sérgio Godinho ou José Mário Branco.

Muitas fábricas deram o dia aos trabalhadores para acompanharem o funeral; a Câmara Municipal fez o mesmo aos seus funcionários.

Uma multidão de homens, mulheres, crianças, cravos, música e Liberdade encheram as avenidas e pararam o trânsito, numa comovente cerimónia de despedida – juntos, iguais, semelhantes num coro uno de despedida a um dos nossos maiores.

Estiveram presentes vários políticos: Ramalho Eanes, Vasco Gonçalves, Maria de Lourdes Pintasilgo, José Manuel Tengarrinha, Jerónimo de Sousa, Teresa Gouveia – que era, então, secretária de Estado da Cultura – entre outros. Escritores, atores, futebolistas e muitos músicos: José Niza, Carlos Paredes, Carlos do Carmo, Os Trovante, Vitorino, Janita Salomé.

A realização do velório, na escola onde Zeca tinha sido professor, não foi bem vista pela governadora civil da cidade, que tentou impedir que fosse naquele local, por temer “perturbar os estudantes”.

Mas foram, justamente, os jovens os primeiros a encher o recinto da escola para a última homenagem a um dos mais transparentes rostos da Liberdade em Portugal.

Os mesmos jovens que, de cravo vermelho na mão, pintaram numa faixa gigante um grito de eternidade: “Zeca, não morrerás entre nós”.

Foi há 34 anos. José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos faleceu a 23 de fevereiro e foi sepultado no dia seguinte, no cemitério de Nossa Senhora da Piedade, em Setúbal.

Acompanharam-no, até à campa rasa nº 1606, milhares de formigas no carreiro. Graças a ele, iam todas em sentido contrário. Em direção à Liberdade.

Martha Mendes | Martha Mendes é licenciada em Jornalismo, mestre em Comunicação e Jornalismo e doutoranda em Ciências da Comunicação. Tem 35 anos e trabalha há cerca de 15 na área da Comunicação. É mãe de duas meninas.

Foto destaque @ jornal O Setubalense | autor n/i

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