Origens do Grândola Vila Morena ou como a fraternidade operária inspira os poetas
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Combatentes da Liberdade | Zeca Afonso e Zé da Conceição
Com o Zé da Conceição já não é possível falar. Desde abril de 2011 que ele já não se encontra entre nós. O Zé foi o anfitrião do Zeca Afonso na passagem e atuação do trovador-poeta em Grândola. Mas o Helder Costa e a Irene Pimentel adiantaram os elementos essenciais de todo um processo que vale a pena divulgar.
Era uma vez, em 1964, Grândola….terra da fraternidade.
Cantar em clubes populares
Helder Costa recorda que “Ele passava a vida a cantar para estudantes e a dada altura queixou-se…queria actuar em clubes populares. E eu propus esse espectáculo, que aceitou, assim como o Paredes. Depois fui falar com a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, com muitos amigos na direção, fomos para a frente.O resto, já se sabe. Entusiasmado, enviou a letra de Grândola para a Sociedade. E começou a ir para a Margem Sul que eu já conhecia porque ia lá com o Cénico de Direito”.
O carteiro de Faro
Foi em Faro que o Zeca recebeu o convite, das mãos do Helder Costa que o conhecia de Coimbra. O concerto, que encheu a sala, aconteceu a 17 de maio de 1964, por ocasião do 52.º aniversário da fundação da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG). O Zeca sentiu-se honrado, como fez questão de o escrever numa carta com data de 15 de abril, onde sublinha ainda a presença, no mesmo espetáculo, do “grande artista” Carlos Paredes, que não conhecia à data.
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José Afonso viajou para Grândola na companhia de Zélia, sua mulher. Aquele domingo, em que terá reunido cerca de 200 pessoas para assistir ao espetáculo, foi contado em várias publicações entre as quais o livro “Grândola Vila Morena, a canção da Liberdade”, de Mercedes Guerreiro e Jean Lemaître.
“Todo o seu repertório é cantado, até mesmo o célebre Os Vampiros, com cheiro a pólvora. O público está tão compacto que, desta vez, a PIDE não ousa intervir. Mas vingar-se-á dias mais tarde, ao confiscar a gravação do concerto durante uma rusga realizada no domicílio de um militante local.”
Também poucos dias depois do concerto, a 21 de maio, José da Conceição recebe uma carta, escrita à mão, com tinta verde conta-se, de José Afonso. Nela, em nota de agradecimento, “Zeca” oferece um poema de três estrofes aos sócios do “Música Velha” — e não à vila, como pontualmente é referido. Esse poema, “Grândola, Vila Morena”, viria a ser lido a 31 de maio aos presentes na associação, e por ocasião da estreia do grupo de teatro da sociedade.
Instalações da SMFOG
Do poema à senha para a liberdade
- José Afonso atua, a 17 de maio de 1964, na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG), na mesma noite que Carlos Paredes.
- Quatro dias depois, a 21 de abril, depois do espetáculo, a SMFOG recebe de José Afonso uma carta com um poema intitulado “Grândola, Vila Morena” dedicado à sociedade.
- A 31 de maio de 1964, por ocasião da estreia do grupo de teatro da SMFOG, o poema é pela primeira vez lido publicamente.
José da Conceição
Uma comunicação de Irene Pimentel a propósito do Zé da Conceição, quando lhe foi prestada homenagem na AJA – Associação José Afonso (Núcleo de Grândola) é aqui reproduzida para um melhor conhecimento do dinamizador político e cultural grandolense.
Grândola e Viana
por Irene Pimentel
José da Conceição, falecido a 16 abril de 2011, amigo do Zeca a quem convidou a actuar em Grândola a 17 maio de 1964 (era José membro da direção da «Música Velha» da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense) e em Viana do Castelo (Clube Fluvial Vianense) a 6 de Agosto de 1968, conta-nos como tudo aconteceu nesses dois espetáculos.
Morreu hoje José da Conceição, uma das figuras mais importantes do associativismo cultural português, conhecido por várias gerações de pessoas ligadas ao teatro amador e ao chamado «trabalho legal» nas colectividades e sociedades de cultura e recreio durante a ditadura de Salazar e Caetano. Além de ter sido militante e dirigente político da chamada esquerda radical, nomeadamente da Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP-O Grito do Povo), antes e pouco depois de 25 de Abril de 1974, José da Conceição foi sobretudo um organizador e dinamizador de grupos de teatro – além de ter encenado inúmeras peças e participado nelas como actor – em colectividades, em particular na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG), de Grândola, e no Clube Fluvial Vianense, de Viana do Castelo.
Atividades políticas e culturais
Tive a grande sorte de conhecer, em 1971, José da Conceição, pelo qual tive uma profunda e terna amizade, bem como uma estreita camaradagem política. Além disso, pude participar com ele em actividades políticas e culturais em associações na margem sul do Tejo. Em conjunto, sob sua direcção, organizámos, em Alhos Vedros e Grândola, sessões culturais, de teatro, cinema e canto, com diversos intelectuais, escritores, encenadores e cantores, entre os quais se contaram José Saramago, Joaquim Benite, Armando Caldas, Adriano Correia de Oliveira, Fausto e José Afonso, entre outros.
Para José Afonso, aliás, o ano de 1964 foi crucial, pois foi então que escreveu o poema «Grândola, Vila Morena». Mais tarde, José Afonso contou ter ficado «brutalmente satisfeito com o convite» da «Música Velha» – Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG), onde conheceu Carlos Paredes. José (Zeca) Afonso descreveu a «Fraternidade Grandolense» como um «local obscuro, quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca de evidentes objectivos revolucionários, uma disciplina generalizada e aceite entre todos os membros, o que revelava já uma grande consciência e maturidade políticas» (José A. Salvador, Livra-te do medo, 1984, p. 127-128).
Quatro dias, José Afonso enviou a um dos organizadores da sessão de Grândola, precisamente José da Conceição, uma missiva, com um poema dedicado à SMFOG, lido publicamente na sala desta colectividade, em 31 de Maio, por ocasião da estreia do Grupo de Teatro da «Música Velha»: tratava-se de «Grândola, Vila Morena». Em Agosto de 1968, foi a vez de Manuel Freire, cantor da «Pedro Filosofal», conhecer José Afonso, em Viana do Castelo, pois ambos foram convidados para actuar no Clube Fluvial Vianense (José A. Salvador, José Afonso: O que Faz Falta, Uma memória plural, pp. 59-62) cuja secção cultural era então dirigida pelo mesmo José da Conceição havia organizado o espectáculo de Grândola, em 1964.
O relato do PIDE
Em 13 de Agosto de 1968, o comando-geral da PSP enviou ao director da PIDE o relato feito por um agente desse espectáculo em Viana do Castelo, segundo o qual a ele tinham assistido cerca de 200 indivíduos «desafectos» ao regime. Quanto às «letras dos fados e canções (…) encerravam um fundo picante para o lado subversivo», embora, segundo dizia o relator da sessão, os cantores haviam moderado a sua tendência subversiva, «certamente por se terem apercebido da presença dos nossos agentes». O autor do referido ofício, que visivelmente desconhecia completamente o conteúdo das canções dos dois cantores, deu conta de algumas das estrofes das canções de José Afonso, trocando as respectivas palavras. Por exemplo, «Cantar alentejano» e «Ó cavador do Alentejo» continham, segundo o elemento da PSP, respectivamente, as seguintes estrofes: «Catarina do Alentejo que não te viu nascer mas há-de vir o dia que hás-de viver» e «Oh cavador do Alentejo que há muito tempo não te vi cantar» (Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, proc. 931 CI (1), fl. 394).
José Afonso voltaria a Grândola, em final de 1970, quando renasceu a actividade cultural da SMFOG, pela mão de José da Conceição e de uma nova geração de jovens, e novamente em Junho de 1972, por ocasião da primeira feira do livro, realizada no jardim da vila, pela «Música Velha», e por José da Conceição. Tive então a sorte de participar nesse evento, escolhendo livros que eram vendidos no jardim central de Grândola em lindas barracas de praia às riscas – uma ideia de José da Conceição. Alguns dos livros «do dia» foram obras de autores marxistas, cujos nomes José da Conceição e eu nomeámos numa entrevista dada a João Paulo Guerra, na Rádio Renascença. Lembre-se que estávamos no período “marcelista” e o certo é que os censores e a polícia política já tinham então muito que fazer, pois aparentemente a iniciativa “esquerdista” passou despercebida.
Cinema em Grândola
Foi também uma ideia de José da Conceição realizar, ainda na SMFOG de Grândola, um ciclo de cinema com filmes de teor político – daqueles que a censura deixava passar -, por escolhidos a dedo. Lembro-me que um deles era o western, «Soldado Azul» (Soldier Blue, 1970), com Candice Bergen e Peter Strauss, onde era pela primeira vez dada uma imagem diferente da habitualmente retratada nos filmes de cowboys acerca do verdadeiro massacre de índios perpetrado na América do norte
Gerações de jovens activistas e militantes, entre os quais me incluo, foram levados para a actividade cultural nas colectividades por José da Conceição, um homem com uma inteligência acutilante e um sentido de humor do tamanho da sua generosidade, com o qual aprendi muito, tanto na actividade cultural como na política. Que saudades vou ter de ti, Zé, das nossas conversas, dos nossos almoços onde nos divertíamos e ríamos a bom rir do passado e do presente!
Fontes: Helder Costa, Rita Sousa Vieira -MadreMédia e Irene Pimentel
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