15 de Janeiro, 2025

Sob o signo da memória histórica

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MUNDO | Espanha, Andaluzia. 13 de julho 2022

por Rui Mota

Oitenta e cinco anos depois da guerra civil em Espanha e dos crimes cometidos pela ditadura franquista que se seguiu, a sociedade espanhola continua presa dos fantasmas, nunca esconjurados, que teimam em regressar sempre que a memória é mais forte que a “Lei del Olvido”, instaurada após a queda da ditadura. 

Esta é uma consequência da Lei da Amnistia, aprovada em 1977, que procurou numa sociedade dividida e traumatizada por 40 anos de ditadura, inculcar a ideia de que todas as vítimas eram iguais, já que houvera mortes nos dois lados em confronto…

A verdade dos factos

Não é verdade e os saudosistas da ditadura sabem-no bem. Por esse motivo, tentam escamotear a verdade dos factos, criando a falsa ideia de que a memória não deve preocupar-se “apenas” com os 115.000 mortos, fuzilados e enterrados em milhares de valas comuns, mas com todos os mortos, procurando dessa forma minimizar as responsabilidades da ditadura. Como se morrer em combate ou assassinado com um tiro na nuca, seja a mesma coisa. Nunca o será. 

Valas comuns

Para lembrar esta verdade dramática que envergonha o país com mais valas comuns em todo o Mundo (depois do Cambodja de Pol Pot), foi criada em 2000, ano da descoberta da primeira vala, a ARMH (Associação Recuperação da Memória Histórica) que conta hoje com centenas de núcleos espalhados por todo o território espanhol, continuando o hercúleo trabalho a que se propôs: encontrar e exumar os mortos assassinados pela ditadura franquista e prestar-lhes a homenagem a que têm direito, como tem sido exigido pelos familiares das vítimas. 

Há 20 anos foi realizada a primeira petição judicial de uma sepultura cientificamente exumada

Cinema em Sevilha

Neste contexto, diversos foram os eventos, marcados para o mês de Novembro último, nomeadamente em Sevilha, epicentro das manifestações onde o tema da memória seria mais uma vez escrutinado.

A primeira dessas manifestações, teria lugar durante o festival Europeu de Cinema de Sevilha, onde foram exibidos dois filmes marcantes: “Horacio, El Ultimo Alcalde” (de Maria Rodriguez e Mariano Agudo) sobre a figura de Horacio Hermoso Araujo, o último alcaide de Sevilha, assassinado e enterrado numa das valas comuns do cemitério da cidade e “Pico Reja, la verdad que la tierra esconde” (de Remédio Malvárez e Arturo Andújar) sobre a vala de Pico Reja, situada no cemitério da cidade, onde se supõe estarem enterrados mais de 2000 corpos. 

Ovação estrondosa no Teatro

Uma sessão histórica, no clássico teatro Lope de Vega, que contou com a presença de Horacio Filho, o guardião da memória do seu pai, que subiu ao palco debaixo de uma estrondosa e comovente ovação. Igualmente presente a cantora flamenca Rocio Marquez, que interpreta o tema musical do filme. Cá fora, esperavam-nos dezenas de activistas e familiares das vítimas, que, nessa noite, encheram a sala do velho teatro, exibindo retratos dos familiares desaparecidos. 

Fuzilados à queima-roupa

Outro momento marcante, seria a visita guiada à vala de Pico Reja, no cemitério de San Fernando onde, desde 2013, decorrem as escavações e exumações de milhares de corpos. Os técnicos presentes, (arqueólogos e  antropólogos forenses) falaram em mais de 1800 corpos, encontrados até ao momento. Impressionante, a visão daqueles esqueletos amontoados, a maior parte deitados de bruços, sinal de que tinham sido fuzilados à queima-roupa, já que a maior parte dos crânios apresentavam perfurações de balas e ossos quebrados, sinal de torturas. Uma visão macabra e de indignação que o director da equipa de investigação, Juan Manuel Guijo, sublinhou no final da visita, ao referir que, para além da indignação, havia que preservar a memória, única forma de combater a injustiça no futuro. Do grupo de visitantes, fazia parte uma delegação de militantes Zapatistas (México) em visita à Andaluzia, que tomava nota de todas as informações prestadas. 

Lei da memória histórica

Finalmente, a grande manifestação daquela semana, uma iniciativa conjunta da Coordenadora Andaluza pela Memória Histórica e Democracia e da Assembleia Memorial Andaluza, que reuniu cerca de 5000 pessoas, vindas de toda a Andaluzia, para exigir ao governo regional a aplicação das medidas prometidas e consignadas na Lei de 2017, aprovada por maioria no executivo anterior (PSOE). O actual executivo, uma coligação de direita (PP, Ciudadanos e VOX) recusa a Lei da Memória Histórica e quer substitui-la pela designação “Lei Inclusiva”, forma encontrada para pôr no mesmo plano vítimas e algozes.   

Garzón leu manifesto      

Sob as palavras de ordem “Verdade, Justiça, Reparação”, a marcha percorreu os dois quilómetros que separam a Praça Nova do Palácio de San Telmo (sede do poder executivo) onde, num palco improvisado, discursaram o presidente da Coordenadora e o ex-magistrado Baltasar Garzón. Este último, leu o Manifesto apresentado pelas associações organizadoras da marcha e reforçou as exigências da Coordenadora, acrescentando que a “Lei, deve estar acima da ideologia do momento. Os governos, o que têm de fazer é aplicá-la em respeito pelas vítimas. Há que reivindicar essa memória, que todavia custa muito a reconhecer”. 

Uma semana inesquecível, em defesa de uma memória que urge preservar.

 © Rui Mota | Editado CR/SF | Imagens AMRH

Rui Mota

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