As Cativações da “Democracia”
OPINIÃO | Nelson Anjos
Representação do homem do saco pelo alemão Abraham Bach der Ältere.
Os últimos acontecimentos relacionados com a crise da democracia brasileira – apenas mais um caso da crise global da democracia – levaram-me a mais uma leitura da entrevista concedida por António Costa à revista Visão (15-12-2022). O seu pior momento não está naquela expressão assassina – “habituem-se!” – que animou a chicana em que se transformou o debate político na taberna social da terra. Ou na pose pombalina da foto que fez a capa da revista. Não sou santo e rir faz bem à saúde: associei-me também à festa com o modesto contributo que a propósito aqui deixei.
Mas aquilo que, na entrevista, deve merecer uma reflexão mais aturada, e que poderá ter passado despercebido no burburinho gerado pelo ridículo, é a conta em que, não apenas António Costa mas uma parte significativa da casta política em geral, tem os cidadãos, no seu conjunto. E que se encontra sintetizada na inocente passagem que transcrevo:
“(…) Os portugueses estão é preocupados com os problemas que enfrentam no dia a dia. Os preços que sobem, saber se vão conseguir pagar a prestação da casa, o que vai acontecer na área da energia … E é nesses problemas que devemos focar-nos. (…)”
Ora, que os portugueses estejam preocupados com aquilo que refere o PM, ninguém duvidará. Que estejam preocupados apenas ou principalmente com isso, a ser verdade, é um bom indicador da qualidade da democracia que temos – que é preocupante. Pior ainda é o sentido implícito na resposta dada à jornalista: é precisamente com isso que os portugueses se devem preocupar – “o preço das batatas”. Ou seja: a política é para os políticos – tal como me admoestou há muitos anos um agente da PIDE durante um interrogatório. Estou em crer que António Costa não teve esta intenção. Apenas deu a resposta que lhe pareceu natural, normal. Pior não podia ser: trata-se de um pensamento com correspondência direta no machismo primário do tempo da outra senhora, – “o dever das mulheres é estarem em casa a coser as meias dos maridos”.
Nos tempos que correm, em que é unânime a perceção do ataque às democracias, por parte de todas as extremas direitas – mas também por parte de todos os que, escondidos no pretexto da “prestação de um serviço público”, da mais pequena autarquia ao governo central se vão apropriando, através dos mais diversos expedientes, do dinheiro dos contribuintes – convidar os cidadãos a limitarem-se às preocupações básicas com a sua subsistência é, no mínimo, criminoso. Assim como não o é menos promover tal atitude como o normal – “habituem-se!” – numa sociedade já de si propensa à baixa participação cívica, como é o caso da portuguesa.
Como se sabe, em contabilidade pública uma cativação corresponde a uma retenção de parte dos montantes orçamentados no lado da despesa, que se traduz numa redução da dotação disponível dos serviços e organismos. Da mesma forma, há muito que o poder instituído vem alargando o conceito de cativação a direitos básicos, incluindo os consagrados na Constituição. Tornando-os letra morta e oferecendo espaço vital à extrema-direita, transformada por sua vez em espantalho oficial do regime, para assustar e manietar pelo medo os cidadãos. É o truque antigo do “velho do saco” em versão livre: fujam que vem aí o “velho do saco”! – ou um eco bufo do original troikiano, “vem aí o diabo!”
Ora, como diz a canção, “o seguro não morreu de velho, morreu de medo”; e os piores inimigos da democracia, responsáveis pela sua degradação, são os que montam morada dentro dela própria.
Lembro, a propósito, pela enésima vez, a atitude a tomar face a outras velhas cativações da história, de que fala Manuel Carvalho da Silva no seu livro Vencer o Medo (2012):
“(…) Os velhos consensos e submissões que nos trouxeram até aqui têm de ser atirados para o caixote do lixo. Há que encontrar compromissos novos, convergências geradoras de esperança, de confiança, de futuro. (…)”
Porque, acrescento eu, o atual contrato social é o contrato da injustiça e da desigualdade normalizadas. E um complacente convite à instalação de estranhas formas de “democracia” – como a de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e, um dia destes, em Portugal com o candidato de ocasião.