Lançaram sementes, criaram raízes fortes, defenderam lutas que ainda hoje são prementes
Apresentação do livro “Exílios no feminino” na AJA-Lisboa, no dia Internacional das mulheres
por Guadalupe Portelinha
Gosto de livros. Pelo conteúdo, obviamente, mas também como objecto estético. Quando tenho um livro novo gosto de me centrar na capa, no formato, num jogo só meu, de adivinhação, de tentar descobrir se a forma dá jus ao conteúdo.
Guadalupe Portelinha apresentou o livro Exílios no Feminino na AJA-Lisboa
Para o bem e para o mal. Apesar de no final eu sempre valorizar o conteúdo em detrimento da forma. Mas quando se encontram estes dois aspectos na qualidade, fico feliz. Desta vez também quis jogar este jogo e tive sorte.
Congratulo-me com a fotografia de Susana Chicó, a capa de Cristina Rodrigues, como mensageiras de provocar desejos e a vontade de abrir e ler o surpreendente mosaico, que se nos depara, tipo mesopotâmico, construído por Carlos Ribeiro, que pegou em pedaços diferentes do texto de cada autora e criou uma curiosa e original estrutura narrativa.
A sua leitura não é linear. Obriga-nos a uma permanente acção e atenção, a paragens, a ligar pontas. Não nos permite navegar “à la libre!”, ao sabor do vento, à leitura corrida. Não. Antes temos que saber as artes da navegação, obrigando-nos à reflexão, ao domínio simbólico da vela e do mastro, para entrarmos no conteúdo, nessa viagem de forma activa e isso é fascinante. E já aviso: se se começa a ler, é difícil largar, o que diz muito sobre a qualidade da obra.
Vou pois aqui tentar expressar o meu sentir, a minha admiração por todas elas, tentando não revelar a lágrima contida, o nó na garganta, a intima revolta que os textos me provocaram.
Mas na verdade não sei como vou falar deste livro, não sei o que acrescentar às palavras de Fernanda Marques, a coordenadora, que no seu texto de encerramento resume, de forma brilhante, o teor do livro, assim como ao de Cristina Rodrigues na sua excelente reflexão sobre o apagamento, a opacidade do papel das mulheres na História ao longo do tempo, não só na política como noutras áreas, como a arte, a cultura popular, valorizando, portanto, a oportunidade desta publicação, que dá voz a estas sete mulheres que de forma desassombrada falam sobre as suas experiências pessoais, lá fora, nas comunidades onde se inseriram com grande coragem e determinação e depois cá dentro já depois do 25 de Abril.
Mas comprometi-me e para cumprir a tarefa que a Amélia me encomendou, e que desde já agradeço a confiança, resolvi tentar esquecer o que delas li e ficar apenas com as percepções, as sensações e emoções que me tocaram fundo, com a leitura dos testemunhos destas sete mulheres.
Vou pois aqui tentar expressar o meu sentir, a minha admiração por todas elas, tentando não revelar a lágrima contida, o nó na garganta, a intima revolta que os textos me provocaram.
Penso, pois, que o meu contributo, para além de vos propor vivamente a leitura deste livro aliciante, esta história admirável da militância de sete mulheres, do meu tempo, das suas aventuras emocionantes e sofridas, por vezes felizes, dos seu sacrifícios, da sua militância, será emocional, afectivo e empático, perante factos e feitos extraordinários, as suas vivências e confronto com momentos históricos marcantes do sec. XX, onde elas inscreveram as suas próprias histórias pessoais, com páginas empolgantes da sua actuação e intervenção cidadã, tornados feitos marcantes, que se reflectiram de forma extremamente positiva e decisiva já em Portugal, depois do 25 de abril. Ao mesmo tempo, essas histórias, recheadas de acontecimentos e peripécias tristes e alegres, de momentos perigosos e felizes,
atrevo-me a dizer, que são quase como um conto único que se podia, ou pode ou devia ouvir ler à noite, ao serão, em família, ou em tertúlias, sempre marcadas com o apanágio de serem histórias verdadeiras, reais, não ficcionadas, o que as torna ainda mais assombrosas e surpreendentes para nós e muito mais o serão para as novas gerações que as venham a conhecer.
Embora o mereçam, deixo, contudo, essa tarefa de descoberta a todos vós futuros leitores, não vou falar de cada uma, das suas características e acções individuais, antes falarei de todas, de um colectivo construído pelas suas memórias e reflexões, das suas experiências únicas, carregando bagagens de esperança, com base em histórias muito diferentes, mas um mesmo projecto, ligadas por fios invisíveis de luta, de acções revolucionárias, na construção de um mundo diferente daquele que deixaram na fronteira. Falarei de todas ( estou já afalar de todas!), num plano global, diferentes e iguais numa parte importante que foi o objecto do seu exílio: a luta contra o fascismo, contra a ditadura do Estado Novo. De forma simplista, só parcialmente verdadeira, parece-nos que ao falar de cada uma destas mulheres se fala de todas, porque se fala de um colectivo que também fora aprendido no exílio, em comunidade e transportado para novas experiências, mesmo já depois de regressarem. Curioso ainda salientar que estas mulheres agora conhecidas e talvez amigas que aqui se juntaram para prestar os seus testemunhos, não se encontraram no exílio. Descobriram cada uma de per si, novas formas de vida, que acolheram, reproduziram, inventaram e melhoraram com o seu olhar verde de esperança, a sua força e convicção da justeza das suas ideias. Lançaram sementes, criaram raízes fortes, defenderam lutas que ainda hoje são prementes, vivas no nosso quotidiano: a violência doméstica, a pobreza, a igualdade de género, a discriminação.
AS seis coautoras presentes na AJA-Lisboa
Repito pois, este é um livro escrito por sete mulheres. Sete mulheres especiais, com uma consciência alargada, uma formação ampla, pertencentes à burguesia, inconformadas com a política e o regime do país, com a pequenez e estreiteza das mentalidades. Mulheres que não se acomodaram à vida que se lhes apresentava. Que não cederam perante os cânones vigentes; que não se submeteram. Mulheres que olharam o horizonte e viram mais longe porque o olharam do alto da sua convicção num futuro diferente.
Mulheres que quiseram mais, e estavam dispostas a lutar por esse querer pois dentro delas sabiam que outro mundo era possível.
Mulheres que tiveram a ousadia de desafiar o status quo, explorar outras hipóteses, perceber da existência de outras realidades, arriscando muito, arriscando tudo, sempre num ímpeto de procura, de descoberta, de ver além do óbvio, do imediato, para lá dos muros da ignorância, do comodismo e da tibieza, levadas apenas pela sua consciência, sensibilidade e inteligência, permitindo-se o sonho, a utopia de um mundo diferente, melhor.
Cada uma caminhou com os seus próprios passos e a sua forma de acção, com objectivos comuns trilhando vias diferentes. E saltaram fronteiras, quebraram amarras, destruíram as grades que aprisionavam corpos e almas, umas pela sobrevivência, outras pela indignação e recusa, umas com mais urgência do que outras, todas lançadas ao mundo, aos perigos, obrigadas a desbravar o desconhecido, ultrapassando barreiras impostas pela educação, pela ditadura, pelo machismo, com a convicção de que era esse o caminho e ali, nesse desconhecido, residia o seu futuro, a sua vida. Por opção ou por necessidade absoluta, nunca poderiam ficar, continuar a viver neste país. Eram maiores do que ele. Não cabiam nele. Todas tão jovens e tão belas, munidas de uma força espantosa, de uma consciente vontade de mudança para si e para o seu país mesquinho, violento e pobre. Quiseram transformar tudo, lutar com o sonho feito espada, o impossível como meta, a utopia como destino. Precisavam com urgência de sentir o cheiro da liberdade, de ver a cor da liberdade, no dizer de Jorge de Sena, de pronunciar palavras de amor sem encobrir os gestos nas esquinas das cidades.
Tempos difíceis esses! Confrontaram-se com obstáculos vários, dificuldades de integração nos novos países, nem sempre tão acolhedores como o esperado, viveram a solidão, a insegurança, tiveram necessidades económicas, lutaram pela sobrevivência em trabalhos não compatíveis com a sua formação, quer por necessidade, quer por opção ideológica, neste caso de modo a experimentarem a vida dura dos operários e, em simultâneo, falar sobre as suas ideias revolucionárias às massas trabalhadoras.
Mas nessas vivências num mundo diferente também tiveram magnificas manifestações de solidariedade de outros exilados, tanto individuais como de associações, tornando-se algumas delas, mais tarde, elas próprias participantes nessas organizações, ajudando a desbravar caminhos e dificuldades, a muitos outros que continuaram a procurar o caminho do exílio.
Nunca se acomodaram. O percurso seguido por estas sete mulheres no exílio foi difícil, variado, muito rico, pleno de generosidade, tornando-as mais completas como seres humanos. Enquanto esperavam os ventos da mudança, procuraram melhorar as suas formações académicas, viajar, conhecer novas realidades
Umas foram mais activas politicamente do que outras mas em todas permaneceu o vírus bom do inconformismo e da subversão, envolvendo-se politicamente em maior ou menor grau na resistência, na actuação militante, na educação e alfabetização dos emigrantes económicos, segundo métodos inovadores, como o de Paulo Freire, criaram bibliotecas, colaboraram em grupos de teatro, em movimentos feministas, alargando a consciência da luta pela igualdade de género e participando em muitas actividades e organizações importantes a nível internacional.
Foram e são mulheres de enorme valia, com experiências cruciais a nível profissional e individual, e tornaram-se seguramente mais ricas como seres humanos, cidadãs com uma visão e compreensão ampla e aprofundada do mundo dos excluídos, dos marginalizados e dos vulneráveis, mas também com visões únicas sobre outros mundos, tanto da ciência, como da cultura, como da educação. Mulheres, com tatuagens no mais íntimo de cada uma, impressas na alma e no corpo, tatuagens de dignidade, amor e coragem, tatuagens indeléveis que são lições de vida e, acima de tudo, mensagens para o futuro. Nas histórias destas mulheres ouvem-se não uma, nem duas ou três canções de exílio, nas vozes de Adriano, Luís Cília, ou Manuel Freire, mas sete canções, cada uma com o seu próprio poema.
As autoras, cada uma com seu estilo, a sua individualidade e características pessoais, têm uma escrita viva, clara e audaz que motiva e desperta uma multiplicidade de sentimentos, emoções e lembranças, tantas vezes caladas no inconsciente do cada leitor, alojadas no fundo dos tempos, clamando um regresso do passado, provocando saudades, alegrias, desesperanças, talvez. Cada uma fala sobre o seu percurso, a sua travessia para o desconhecido, acossadas pela ditadura, pelos esbirros da Pide ou pelas perseguições mais ou menos veladas, ou, ainda, apenas pela recusa de viver num país sem liberdade e sem escolhas. Ler e viver emotivamente os perigos do “salto”, as vivências como emigrantes, as habituais e perigosas funções de “correios”, a descriminação sexual mesmo nos partidos de esquerda, a tomada gradual da consciência feminista, as questões do aborto, as dificuldades económicas, a construção de novas vidas são aqui esplanadas por cada uma com grande rigor e sensibilidade.
Joana Manuel leu excertos do livro de forma empolgante e Ana Sofia Faria presenteou os presentes com um momento musical muito especial
Este livro, estas histórias têm, além de outras, uma qualidade pedagógica fundamental em educação e formação- a de mostrar às novas gerações factos terríveis ocorridos neste país durante a ditadura e, ao mesmo tempo, alertar para uma vigilância constante, a fim de não permitir que essas histórias se possam repetir. São estes testemunhos, um meio eficaz e necessário de não deixar que a memória se apague, por isso a premência em passar estas mensagens às novas gerações.
Diz-se que o sete é o número da consciência e da criação e, de facto, estas sete mulheres demonstraram esses valores de forma exemplar. Mas quando se fala em sete mulheres, para aquelas que como eu têm na cabeça as canções do Zeca, surge de imediato e impositiva a canção das “sete mulheres do Minho”, também referida no livro e que vamos agora recordar, não sem antes vos dizer que tal como na canção, também elas são, foram, à sua maneira, mulheres de grande valor, que ficam na lusa história, e acabaram, de forma simbólica, por correr com o regedor e também matar os Cabrais , ao contribuírem para o derrube da ditadura e para que o 25 de Abril acontecesse. A todas elas deixo aqui expressa a minha gratidão.
Muito obrigada.
Audição da canção “As sete mulheres do Minho”, de Zeca Afonso
Fotografias © Carlos Martins Pereira
Edição | Ilustrações SEM FRONTEIRAS
Texto Guadalupe Portelinha