6 de Dezembro, 2024

Vivemos em democracia? Qual é o nosso futuro?

I – Direitos Humanos, crise habitacional e desigualdades

Manifestação pelo direito à habitação em Lisboa

por Filipe do Carmo

Tenho assistido a várias sessões de apresentação de um livro sobre “sete percursos de luta e de esperança”, o qual tem como autoras Amélia Resende, Beatriz Abrantes, Fernanda Oliveira Marques, Helena Cabeçadas, Helena Rato, Irene Pimentel e Maria Emília Brederode Santos1. Os exílios que são referidos no título deram-se em cidades europeias como Paris, Bruxelas, Genebra, Zurique e Malmo (além de Argel, no norte de África) e tiveram lugar nos anos 60 e 70 como consequências genéricas da situação política de natureza ditatorial – e os seus detalhes pidescos – em que se vivia em Portugal já desde há décadas.

Um livro e um filme documental em movimento

As sessões de apresentação do livro começaram em Março do presente ano, na Biblioteca de Alcântara e na Associação Zeca Afonso (ambas em Lisboa) e prosseguiram na Marinha Grande, em Évora, Coimbra, Loulé e S. Brás de Alportel. E de algum modo continuaram a 29 de Abril na Associação 25 de Abril, em Lisboa (e continuaram, em Maio, em Santo André, estando previstas para mais tarde sessões na Ericeira e Porto) onde a apresentação foi ampliada pela antestreia de um filme documental (produzido para a RTP por Edgar Feldman, Paulo Guerra e Eduarda Manso) que incide precisamente sobre esses “sete percursos de luta e de esperança”. Não vou pronunciar- me com mais detalhe sobre o livro, ou sobre as diversificadas vivências transmitidas pelas autoras no final da antestreia (para o que aconselho a leitura do livro e não perder o filme quando ele for transmitido pela RTP) e vou passar a questões que considero fundamentais como complemento à caracterização de situações que, na sua maioria, já ocorreram há mais de 49 anos.2

Democracia e Direitos do Homem e do Cidadão

Uma das últimas intervenções da assistência na sessão de 29 de Abril foi feita por uma neta de uma das autoras, de cujas considerações retive a estranheza que manifestou pela insistência em que a sessão foi fértil de que, desde o 25 de Abril, vivemos em democracia. Eu apoio essa manifestação de estranheza, sem deixar de reconhecer que o nosso sistema político (assim como os da maioria dos países que se integram no designado Ocidente) toleram comportamentos dos cidadãos que em geral são proibidíssimos em muitos dos regimes autocráticos que não estão integrados nesse Ocidente. É uma realidade que, desde a Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789 (com a Revolução Francesa), numerosos países têm vindo a integrar nas suas Constituições os princípios básicos que surgiram nessa Déclaration. Em particular, o artigo 65º da Constituição Portuguesa começa, no seu número 1, por dizer que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Ora é altura, por exemplo, de nos interrogarmos sobre se tal direito é de facto exercido por Todos. Sabemos que não3 .

Habitação e emprego dos jovens

Bastará ter em conta o que se passa actualmente no nosso país, muito em particular nas zonas urbanas mais afectadas (e não favorecidas, sobretudo quando pensamos nos interesses dos jovens e das classes sociais menos privilegiadas) pelos desenvolvimentos turísticos em curso: torna-se impossível, para a maioria, pagar uma renda de casa face aos aumentos estratosféricos que têm vindo a ocorrer ou adquirir um apartamento, mesmo de área reduzida, dados os referidos aumentos atingirem também os respectivos preços de venda. Como tem sido notícia na comunicação social, mesmo quem já adquiriu casa encontra-se em grandes dificuldades dados os aumentos muito substanciais das prestações que são pagas aos bancos, aumentos esses que têm como causa as subidas substanciais das taxas de juro. E tudo isto só é agravado pela evolução cada vez mais acentuada que se tem vindo a viver no mercado de trabalho, com os jovens, mesmo altamente qualificados (com licenciaturas, mestrados ou doutoramentos), a serem cada vez mais miseravelmente remunerados quando têm a “sorte” de encontrar trabalho.

Imensos cidadãos não ganham para pagar rendas

A situação de grave crise habitacional não é contudo novidade, mesmo para o período inicial que sucedeu ao 25 de Abril de 1974 (e isto por mais que apreciemos a queda do fascismo e gabemos os resultados da Revolução dos Cravos). Recordo-me perfeitamente já era um “jovem”, embora dos menos jovens – que as rendas de casa foram (ou permaneceram) congeladas, o que era uma medida de carácter progressista (naturalmente com prejuízo para os senhorios, indo num sentido de contrariar o anterior e excessivo desenvolvimento das desigualdades), e isso contribuiu para que as classes de menores rendimentos apoiassem o curso dos acontecimentos. É uma situação bem conhecida que ainda hoje permanece, embora de maneira muito marginal, mas outra consequência desse congelamento sempre foi escondida, ou objecto de muito baixa divulgação. Numa situação em que as taxas de inflação eram elevadíssimas (eram, nos anos setenta e princípio dos oitenta, o mais frequentemente da ordem dos 20 e tal por cento anuais, chegando, se a minha memória não me trai, a mais de 28% num dos anos), o contributo que tal congelamento tinha para uma relativamente baixa perda do poder de compra da generalidade dos assalariados era importante. A questão era contudo que os que não beneficiavam de tal congelamento – porque tinham que alugar casas com novos contratos que ficavam fora do sistema ou comprar apartamento com prestações a pagar aos bancos que estavam fortemente agravadas com juros que reflectiam a tal inflação dos 20 e tal por cento – ficavam em situações insuportáveis que não eram comparáveis às dos que beneficiavam do referido congelamento e, porque atingiam inicialmente apenas minorias, eram ignoradas para reforçar as reivindicações que os trabalhadores apresentavam quando das conversações em princípio anuais para ajustamentos salariais.

Ora essa situação foi evoluindo e a parcela da população que beneficiava do congelamento ia diminuindo (com a morte dos mais velhos e as alterações legislativas que passaram a ser orientadas no sentido de aliviar o “sacrifício” que até então tinha sido imposto aos senhorios). E hoje encontramo-nos numa situação em que imensos cidadãos – muito em particular os mais jovens – não ganham para pagar rendas que têm subido por razões várias (a que me referirei nos próximos parágrafos) enquanto os seus vencimentos ou outros rendimentos quando os têm – apenas lhes dão níveis de poder de compra que são bastante mais baixos que os que existiam no imediato pós 25 de Abril de 1974 (devido a muitas razões além dos efeitos mencionados associados ao congelamento a beneficiar “outros” – entre as quais, mais recentemente, devido às medidas do governo Passos Coelho). Tudo isto, só com a questão da habitação a contar, permite começar a entender a posição da jovem neta acima referida no sentido de manifestar estranheza por se dizer que vivemos em democracia.

Plutocracias

Mas, ainda mais recentemente que as medidas de Passos Coelho, a situação em particular dos jovens (mas não só…) tem vindo a agravar-se consideravelmente. Há a escandalosa subida das rendas ou das prestações (relativas à compra de apartamento) a pagar aos bancos, também fortemente agravadas com juros como no passado, situação que só continua a piorar (e de que maneira) com a inflação que começou a afirmar-se de modo extremamente pesado desde o princípio de 2022. Para quem tem rendimentos que são declarados com o sistema dos já designados “falsos recibos verdes” (que além de relativos a cada vez mais baixos valores, não dão direito a férias pagas e subsídios de férias e de Natal, permitindo ainda que os “despedimentos” não sejam tidos legalmente como despedimentos), tais rendimentos tendem, além disso, a não ser ajustados em função da inflação, nem sequer com os critérios aplicados (em particular quando o patrão é o Estado) para ajustamento dos salários àqueles que têm empregos fixos. Assim, neste nosso mundo em que crescem as desigualdades de modo assustador (e não só no caso português, seja com o Estado como patrão a ser incentivado pela obrigação da redução da dívida pública, seja com as empresas crescentemente dominadas pelas multinacionais e a distribuir dividendos sem comparação com os do passado que, quando muito, apenas levam a pagamentos de IRS, entre nós, que não ultrapassam os 28%), vão perdendo vigor as concepções que classificam os Estados Ocidentais como democracias. São de facto plutocracias, em que os populares são cada vez mais desprezados (o que tem vindo a afirmar-se crescentemente desde o triunfo nos anos 80, com Thatcher e Reagan, do neoliberalismo) e os ricos cada vez mais ricos: é o triunfo esmagador do dinheiro! Espero que a neta a que mais acima me refiro leia este texto (e em particular este parágrafo) e (se necessário) as suas posições políticas sejam confortadas.

O que se pode esperar dos tempos futuros?

Mas, nos tempos que correm, ganhar consciência de que as “democracias” são na realidade plutocracias é importante mas não é suficiente. Por um lado, se um conceito como o “crescimento económico” tem sido cultivado pelos plutocratas e os seus esperados efeitos desejados pelos mais pobres (não se poderá esquecer que períodos houve em que muitos nas classes sociais mais baixas se sentiram beneficiados pelo designado desenvolvimento económico), os tempos mais recentes têm sido “pródigos” em demonstrações de que a evolução das desigualdades se tem feito com ocorrência de enormes danos para as grandes maiorias. E o que se pode esperar dos tempos futuros só nos surge como algo que só muito dificilmente não nos levará a problemas que vão além de mais desigualdade. É sobre esses problemas que incidirão os próximos textos.

Lisboa, 22 de Maio de 2023 Filipe do Carmo

1 Exílios no Feminino, Edições Afrontamento, Março de 2023. Para ler várias referências ao livro ir a h ttps://semfronteiras.eu/. Para comprar, h ttps://www.wook.pt/livro/exilios-no-feminino/28400093 .

2 Além do que as autoras transmitiram nessa tarde da antestreia, acho ainda que deve ser dada relevância às intervenções de apresentação de Edgar Feldman e Paulo Guerra, e à de conclusões por parte do Editor- Coordenador do livro, Carlos Valentim Ribeiro.

3 Reconheço, antes de continuar como pretendo fazer, que Democracia, tal como é entendida correntemente, é bastante mais do que aquilo que o artigo 65º explicita. Convirá, nessa perspectiva, ter em consideração, por exemplo, o que um artigo – “A qualidade da democracia portuguesa”, da autoria de Ricardo Paes Mamede – publicado no Público precisamente no dia (1 de Maio de 2023) em que estou a escrever esta parcela do meu texto, nos transmite. Dito isto, vou prosseguir, sem deixar de chamar a atenção para que as comparações de regimes políticos a que o autor do artigo procede têm por base principal um recente “Índice de Democracia” elaborado por Economist Intelligence Unit, organismo integrado no The Economist Group, o qual está naturalmente bastante associado aos grandes interesses financeiros neste nosso mundo.

Filipe do Carmo

Artigo editado | Subtítulos e imagens do Sem Fronteiras

Editor

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