5 de Dezembro, 2024

A falácia do rearmamento da Europa

OPINIÃO – Carlos Matos Gomes

Falar hoje, finais de 2024, de criar e desenvolver uma “indústria de defesa europeia” para se opor aos malvados russos de Putin é uma dupla falácia de quem não tem qualquer pudor em mentir.

Paulo Portas, no seu sermão dominical, falou na necessidade de a Europa investir em defesa para se opor a que Putin “venha por aí abaixo”. O homem que enquanto ministro da Defesa foi o vidente que viu as provas de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, tal como o outro vidente da altura, o recompensado Durão Barroso, que por ter visto o milagre recebeu o prémio de chefe dos comissários europeus.

“Putin vem por aí abaixo!” Repete o coro de comentadores avençados, em sintonia com alguns militares que deviam saber dos “temas” de tática dos cursos de comando e estado-maior, os “garranos”, que a vinda dos russos por aí abaixo apenas terminava com um regimento de infantaria da URSS junto ao rio Lizandro, defendido por um batalhão português saído do Convento de Mafra, assim impedindo o bravo coronel russo que atravessara o Reno e o Danúbio, os Alpes e os Pirenéus e acabava vencido, sem poder tomar banho na Ericeira. É esta a primeira falácia, uma narrativa delirante e até ridícula. Os russos não veem por aí abaixo, Os mesmos que o garantem são os mesmos que sublinham as dificuldades de progressão para atingirem o rio Dniepro, as cidades de Zaporija e de Kharkiv. Ou bem que vêm por aí abaixo, e há que detê-los, ou bem que não vêm e não há necessidade de gastar dinheiro a defendermo-nos de um tigre de papel que não consegue atravessar a Ucrânia.

A segunda falácia diz respeito à necessidade de construir uma indústria de defesa europeia. Uma necessária observação: nenhum estado europeu desde a idade moderna aos nossos tempos se defendeu, a não ser a Rússia, por duas vezes, uma contra Napoleão e outra contra Hitler. A Polónia, nas várias versões territoriais e de soberania nunca se defendeu, mas a teocracia que a governa e constitui o estado mais vassalo dos Estados Unidos realizou o número mediático de instalar uns obstáculos de cimento — ursos — para impedir os tanques russos de avançar, nem o império austro-húngaro, nem a Itália, nem a França, nem a Espanha, nem Portugal. em qualquer época se defenderam, todas os estados atacaram os outros, segundo os seus interesses e os “aparelhos militares” foram sempre de defesa apenas do grupo dominante dentro do Estado, foram sempre, no dizer do rei Luiz XIV de França, a última “razão do rei” contra os seus súbitos. Continuando hoje a ser esse o papel das instituições militares, aquelas que Max Weber considerou serem as únicas legitimadas para o uso da força nos Estados. Do que se trata, então, quando alguém fala em defesa é a defesa de um poder instalado, de um regime, de um grupo no poder ou de dispor de meios para conquistar objetivos noutros espaços.

A questão da “defesa” da Europa é muito clara: O único aparelho militar credível do Ocidente Global é o dos Estados Unidos. Apõs o final da Segunda Guerra. aproveitando a imposição da desmilitarização da Alemanha nazi e a destruição das indústrias europeias, os Estados Unidos iniciaram a passagem de forças com meios convencionais de controlo das suas armas para os sistemas digitais. Nos anos 60 introduziram a internet e a computação na sua panóplia de armas, e partiram para a conquista do espaço não apenas com as operações de demonstração de capacidade tecnológica com a ida à Lua, mas com a criação de uma verdadeira malha de satélites para fins militares de observação e espionagem, de transmissão de dados — que deram origem a duas famílias de instrumentos da guerra espacial e da sua articulação com a guerra no ar, em terra e no mar, os GNSS (Global Navigation Satelite System) de que o GPS é filho, e os GEOSS (Global Earth Observation Satelite System).

Desde os anos 70 do século passado, que as grandes potências, a URSS e a China se aperceberam da importância dos sistemas globais de navegação por satélite. Os americanos desenvolveram o GPS inicialmente apenas para fins militares — o sistema é gerido pelo Departamento de Defesa através da Força Aérea dos Estados Unidos, a União Soviética desenvolveu o seu sistema GLONASS também para fins militares, a China o seu BDS. A União Europeia, finalmente, criou um programa civil que designou por Galileo em 1990, quando os Estados Unidos e a Rússia tinham os seus sistemas operacionais em 1995! Com a operacionalidade dos sistemas GPS e GLONASS, na segunda metade da década de 90, a União Europeia (UE) percebeu a importância estratégica, económica, social e tecnológica da navegação por satélite! Excelente a previsão dos dirigentes europeus. Os mesmos, ou os clones, dos que agora apelam às armas europeus!

Também foi já década de 90 que os dirigentes da União Europeia perceberam a importância de programas cooperativos de desenvolvimento de sistemas de armas. Foram então criados programas para desenvolvimento de um caça europeu — o Eurofigther Thiphoon, um fracasso que desapareceu da cena — o programa de um helicóptero naval e de forças terrestres, o Nato Helicopter, que não revelou ser um sucesso, um programa para uma NATO Fregate que nunca viu a luz do dia. Não foi uma partida brilhante, mas proporcionou ensinamentos, apagados da memória, porque os americanos apresentavam soluções chave na mão. Recebendo o devido pagamento e ainda eliminavam futura concorrência.

Hoje, todos os sistemas de armas europeus estão dependentes dos sistemas de informação, navegação e comunicação americanos. E vão estar pelo menos durante os próximos trinta anos, que é o ciclo de vida mínimo previsto para os sistemas de armas. Todos os aviónicos e sistemas de informação dos cockpits dos aviões, das pontes de comando dos navios, das torres dos carros de combate, das salas de operações das unidades terrestres, das cabeças dos misseis táticos ou estratégicos são e serão americanos. A título de exemplo, a Alemanha adquiriu 50 aviões caça bombardeiros americanos F 35, a Bélgica 30, em detrimento do Raphale francês. Durante os próximos 30 anos, todas as armas europeias terão a “inteligência” americana e apenas poderão ser usadas com o acordo dos Estados Unidos.

Falar em investir na indústria de armamento europeia é uma falácia. A Europa perdeu a oportunidade de ter autonomia estratégica nos anos 90 e essa perda não é remediável! Investir na indústria de armento na Europa significa tão simplesmente substituir a falência da indústria produtiva europeia — as fábricas de automóveis alemãs e francesas, por exemplo, também a Michelain, a Bosh — por inúteis fábricas de peças de artilharia, de carros de combate, que apenas se orientarão nos campos de batalha com os olhos do GPS americano!

A título de exemplo, quando a Agência Espacial Europeia (ESA) comunicou aos Estados Unidos a intenção de desenvolver o Galileo e que o desejava compatível com o GPS, os Estados Unidos avisaram que destruiriam os satélites europeus se estes interferissem com a operação o seu GPS! O governo norte-americano não autoriza outras nações a participarem da manutenção e desenvolvimento do GPS, dado os seus fins militares. Apenas em 2005 foi lançado o primeiro satélite do sistema Galileo o segundo em 2008, dois satélites em 2011 e outros dois em 2012. A primeira determinação de posição utilizando a constelação Galileo foi realizada em março de 2013 e em dezembro de 2016 havia um total de 26 satélites Galileo.

De 1990 a 2024, trinta e quatro anos, a Europa, a U E viveu no doce ripanço, a ver o mundo passar, sem receios de inimigos, entregue aos braços do amigo americano, que dispunha de bases na Alemanha, no Reino Unido, em Itália, armas nucleares nestes três países, além da Bélgica e de Israel. O governo dos Estados Unidos, uma autodenominada democracia liberal, estabelecia parcerias publico privadas com as grandes companhias das novas tecnologias, caso da Microsoft, a grande softwarehouse mundial, da Google, da Amazon, da Twiter, hoje X, do Facebook hoje Meta, da Apple, da Starlink e da Space X de Elon Musk. Não deixa de ser curioso que os dois mais recentes satélites dos sistema Galileo tenham sido lançados por foguetões da Space X, de Elon Musk!

Indiferentes a estas evidências, os manipuladores da opinião impingem a mensagem: é necessário desenvolver uma indústria de material de guerra (eufemisticamente designada por indústrias de defesa europeia). Os e as warmongers fazem o seu trabalho, tocam cornetas e rufam tambores para receberem as suas comissões e prémios à custa dos europeus. A Declaração de Budapeste, da conferência de líderes europeus, que terminou a neste 8 de Novembro, defende “investimentos significativos públicos e privados no setor da Defesa”. O primeiro ministro português declarou à saída que a indústria portuguesa também pode entra nesta farsa, em especial a indústria têxtil — camuflados para a tropa, atoalhados para as messes… botas e estandartes, presume-se que seja a nossa contribuição depois do envio de ferro velho representado por helicópteros Kamov, uns velhos M113, uns inúteis Leopard. S

O inútil rearmamento da Europa significa uma nova era, os recursos que estão dedicados ao investimento produtivo serão desviados para produtos que são mera despesa. Esta transferência traduz-se em pobreza geral e fim do estado de bem-estar, será feita à custa do estado social. Mesmo os sistemas de duplo uso militar e civil num caso geram riqueza, noutro despesa. Colocar um motor num trator ou num carro de combate não é igual. A transferência de recursos para as industrias militares provocará uma mudança de paradigma civilizacional da Europa, aumentará as desigualdade, a injustiça, a repressão. É o futuro que nos está a preparar esta nova seita de pregadores.

A proposta dos armamentistas lançadores de fogo pela boca, é a a de enfiarmos a cabeça num laço e esperar que assim nos salvaremos!

Editor

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