O Prefácio de Peggy Sastre

O Caos Iminente: Elites, Contraelites e o Caminho para a Desintegração Política de Peter Turchin
Apontamentos de leitura de Filipe do Carmo [2]
A trajetória de Peter Turchin, desde a biologia teórica até à criação da cliodinâmica, reflete uma busca interdisciplinar por padrões na história humana. Baseando-se em dados quantitativos, Turchin criou modelos que unem história, ciências da evolução e matemática para prever instabilidades sociais. Ele identificou fatores estruturais, como conflitos entre elites, empobrecimento das massas e fragilidade fiscal, que precedem colapsos sociais, e previu, em 2010, a instabilidade nos EUA em 2020, confirmada por eventos como a pandemia e tensões políticas. A cliodinâmica emerge como uma ferramenta inovadora para compreender e prever trajetórias sociais complexas.
Os génios são simples sintomas
Turchin evidencia relutância em atribuir progressos científicos, em particular nas áreas política, social, económica, a génios, homens providenciais. É algo que se aplica a quem usa o seu cérebro exaustivamente para apreender a realidade na sua vasta e durável complexidade.
Os génios são simples sintomas de movimentos claramente estruturais da espécie humana e das suas sociedades. Algo que já se verifica há uma dezena de milhares de anos. Assim, as grandes figuras são apenas o resultado de uma série de contingências e de variáveis nelas imbricadas que ocorreram num local adequado e num bom momento.
Tais indivíduos poderão ter tido uma acção decisiva sobre a evolução das coisas, dos acontecimentos, mas não se terá tratado senão de uma gota de água que fez entornar um recipiente. Ou seja, uma última dedada que levará enfim a que algo que já estava em curso desde há muito tempo tenha então adquirido uma forma que reveste uma muito notável importância na sociedade.
O passado de Turchin
Referências ao passado de Turchin e sua família [em particular o pai, físico, cibernético e pioneiro da inteligência artificial, cuja carreira conduz a perseguição pelo KGB e o leva, com a sua família, a exilar-se e, após algumas peripécias, a conseguir um posto de professor e investigador na Universidade de Colúmbia em Outubro de 1977]. Piotr (que na altura tem 20 anos e altera o seu nome para Peter Turchin) envereda por uma carreira de biólogo teórico (estudando a dinâmica das populações nos insectos e nos mamíferos), mas, em 1997, farto de ter encontrado respostas à maioria das questões que o empurraram para tal via, aproveita as facilidades que encontra na Universidade de Connecticut e muda-se para um novo campo: sai das ciências naturais e entra nas ciências humanas e sociais. E, seis anos depois, acompanhado por colegas que haviam optado pelas ciências da complexidade, cria um novo campo de investigações que combina a História, as ciências da evolução e as matemáticas aplicadas: a então designada Cliodinâmica: uma exploração de dados, cuja quantidade pode chegar aos milhões, para conceber um modelo matemático que viesse a permitir compreender e fazer previsões relativas à trajectória do sistema indubitavelmente mais complexo que existe: uma sociedade humana.
Em termos práticos, um pouco mais tarde, em 2010, num artigo numa revista e aplicando o modelo referido, Turchin utiliza os seus cálculos para mostrar que a sociedade americana iria estar sujeita cerca de 2020 a um pico de instabilidade económica, social e política. Como, mas como, seria isso aceitável para quem segue as realidades deste Mundo Novo que, precisamente em 2010, acreditavam que viviam uma idade de ouro em que não só o progresso tecnológico era evidente como aspectos negativos das realidades políticas e sociais – como as existentes com tiranias e fontes de discórdia nos domínios raciais e sexuais – estavam em curso de desaparecer do quotidiano. O que, como primeiro opinava Luther King e mais recentemente Obama, sendo o arco do universo moral bastante longo, ele tendia de modo resoluto para a justiça.
Na América
Quando se chegou a 2020, na América, não foi possível ignorar o conjunto de ocorrências que determinaram uma clara instabilidade económica, social e política. Instabilidade essa em concordância com o que haviam calculado os “cliodinamistas” (termo que eu prefiro a cliodinâmicos). Foi de facto um ano caótico em que se destacam acontecimentos violentos (derivados do Covid-19 – oposição às vacinas e aos confinamentos –, confrontos entre antifascistas e extremistas de direita e partidários de Trump a invadir o Capitólio já no início de 2021). Tudo isto de características algo superficiais; no entanto, se tentarmos avaliar em termos de profundidade (situação em que tendemos a ver indefinição, confusão), as causas da crise não deixam de se parecer com todas aquelas com que se defrontaram as sociedades humanas desde que é possível estudá-las. Tal como faz Turchin com os seus estudos (incidentes sobre o período iniciado há 10 mil anos e muito em particular a última metade desse período, a das “ultra-sociedades” em que já existem Estados), em que dá relevo particular aos colapsos ou meros abalos estatais iniciados com a Saint-Barthélemy (1572), a Revolução francesa (desencadeada em 1789), a revolta dos Taiping na China (1851-64) e a guerra de Secessão americana (1861-65).
E Turchin acrescenta que todos esses colapsos ou abalos são precedidos de um mesmo cocktail de causas estruturais:
- Conflitos entre poderosos oriundos de uma sobreprodução de elites
- Descontentamento das massas provocado por um empobrecimento das classes populares
- Falência da autoridade central causada pela sua frágil saúde fiscal e um sistema profundamente injusto de extracção de riqueza que deixa (quase) toda a gente à beira de um ataque de nervos, incitando os mais revoltados – cada vez mais numerosos – a querer cortar cabeças, dando livre curso a essa tão peculiar propensão humana que é a busca de desculpas para odiar.
Tais causas constituem factores que tendem a provocar o caos, situação em que às elites que controlam o poder político tendem a opor-se contra-elites, grupos de indivíduos em geral provenientes de etnias ou classes sociais diferentes das que detêm o dito poder. Tais elites procuram naturalmente influenciar as massas populacionais que se sentem crescentemente desprovidas de controlo sobre as condições do seu quotidiano e vêem com bons olhos esforços no sentido de derrubar o poder instalado. E é com a percepção dessa realidade e tendo presente a perspectiva enunciada por um autor americano –”Politics is the gentle art of getting votes from the poor and campaign funds from the rich, by promising to protect each from the other” (Oscar Ameringer, que viveu de 1870 a 1943) – que Turchin parece ir trabalhar no livro Le Chaos qui Vient: Élites, Contre-Élites, et la Voie de la Désintégration Politique.
