15 de Janeiro, 2025

A sociedade de consumo na conclusão da primeira parte de Latouche

trinta

LIVROS & MÚSICA | Filipe do Carmo comenta Latouche

Comentários sobre o conteúdo dos diferentes capítulos | Final da primeira parte

L’abondance frugale comme art de vivre – Bonheur, gastronomie et décroissance (Autor: Serge Latouche)

Por Filipe do Carmo

Première Partie: La décroissance et les paradoxes du bonheur – La joie de vivre dans la frugalité

  1. Les vicissitudes de la « vie bonne »: de la béatitude au bien-avoir      (conclusão)

Le tournant éthique de l’Occident

Para Latouche, só uma transformação radical da ética – de algum modo uma transgressão moral erigida em sistema, a qual teve origem na viragem decisiva do Iluminismo – permitiu a emergência do bonheur como bem-estar material medido pelo PIB per capita. E não se poderá esquecer que o Iluminismo foi preparado, mais de dois séculos antes, pela Reforma, a qual introduziu uma forte quota-parte de individualismo, favorecendo, sem propriamente o desejar, o espírito do capitalismo, em particular através da sua versão puritana. Tal como evidenciado por Max Weber (1864-1920).[1] Mas a viragem já havia tido lugar com Bernard de Mandeville (1670-1733) e o seu famoso Fábula das Abelhas (em inglês: The Fable of the Bees: Or Private Vices, Publick Benefits, editado com esse título em 1714), com o autor a argumentar que a guerra, o roubo, a prostituição, o álcool e as drogas, a ganância, etc., contribuem em última análise, “para o benefício da sociedade civil”. Ou seja, todos os “vícios privados” referidos tornam-se, quando enquadrados na economia, “virtudes públicas” e cooperam, mesmo que os seus agentes disso não se apercebam, para o bem comum. Ou, ainda mais resumidamente, “a avidez é uma boa coisa”.

E é a avidez, a ganância dos ricos, dos poderosos, que alguns autores que foram surgindo com o desenvolvimento do liberalismo têm apresentado como estando por detrás da extensão progressiva do bonheur para o cidadão comum graças ao designado trickle down effect.[2] É esse efeito que é tido como tendo estado por detrás da sociedade que posteriormente, após o fordismo e o keynesianismo, veio a ser conhecida como “sociedade de consumo”, e que Latouche considera que nunca realmente funcionou a não ser no parêntesis constituído pelos Trinta Gloriosos. Mas é um mito, que constitui uma peça essencial da ideologia liberal.

Contrastando com a avidez, a virtude, que em Saint-Just era tão necessária ao bonheur como o bem-estar material individual e colectivo, deixa de o ser à medida que a economia captura o social. A interferência dessa virtude na mecânica dos interesses, já suspeita em Adam Smith, torna-se francamente adversa em Friedrich Hayek (1899-1992). Conforme Latouche refere, para o liberalismo a generosidade e mesmo a simpatia devem ser excluídas do jogo económico sob pena de impedir a realização do óptimo. E, como a economia invade o todo social, elas acabam por ser proscritas da sociedade. De facto, conforme descrito por Georges Perec (1936-1982) e por Jean Baudrillard (1929-2007), na sociedade de consumo dos anos sessenta o bonheur calcula-se pela acumulação de objectos.[3] Sendo o bonheur, no romance de Perec, mencionado com muita frequência na história dos heróis que o procuram, torna-se contudo difícil encontrar nele a menor conotação moral, pois tal diligência tem apenas por detrás uma insatisfação doentia. Por seu lado, Baudrillard, no seu livro já citado (pág. 282), começa por depreender que se o consumo estivesse relacionado com necessidades dever-se-ia chegar à satisfação, ora nós sabemos que não é isso que se passa, o que se pretende é consumir cada vez mais. E, após várias considerações sobre o romance de Perec, o mesmo autor tira como conclusão que tendemos a olhar para a infelicidade como a solução mais durável – uma espécie de linha de fuga – diante do complot terroriste du bonheur.[4]

Latouche afirma que o imperialismo economicista ocidental procura fazer deste complot um fenómeno mundial (referindo o autor que em muitas civilizações, antes do contacto com o Ocidente, a economia como teoria e mesmo como prática estava largamente ausente; e nelas os conceitos de bonheur e de bem-estar – ligados à problemática de um desenvolvimento material e a um enriquecimento individual – estariam totalmente ausentes, sendo dados vários exemplos, sobretudo relativos a países do Sul do planeta). Contudo, se o crescimento e o desenvolvimento no Norte puderam dar a ilusão de levar a uma certa forma de justiça, o mesmo não se passou no Sul. E é aí sobretudo que mais sentido faz o gracejo de Raimon Panikkar: “Quando os Americanos falam em justiça – e isso pode ser estendido ao conjunto dos Ocidentais – na realidade deve-se entender just us (só para nós)”. E hoje em dia, nós assistimos, também neste nosso Norte, à falência deste bonheur quantificado e assim também ao desmoronamento de um dos pilares imaginários da sociedade ocidental. Para amenizar esta crise, outras concepções da qualidade de vida emergem nuns e noutros locais mas, sem questionar tanto os fundamentos da sociedade do crescimento como os da invenção de uma sociedade de abundância frugal, há poucas chances de os ver a ter sucesso.

                                                                               (fim do Ponto 1.)

Lisboa, 26 de Abril de 2022

Filipe do Carmo


[1] Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus (1904-5), em particular traduzido em francês (L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme, Paris, Plon, 1964) e em inglês (The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, New York, Charles Scribner’s Sons, 1958).

[2] Efeito já de algum modo enunciado em Mandeville e Adam Smith e que, em particular, expressa a ideia de que os novos bens e serviços que vão sendo introduzidos no mercado, inicialmente caros e apenas acessíveis aos ricos, vão posteriormente, com os seus preços a descerem, a poderem ser mais amplamente adquiridos pelo público em geral.

[3] Georges Perec, Les choses: Une histoire des années soixante, Paris, Julliard, 1965; Jean Baudrillard, Le Système des objets, Paris, Gallimard, 1968.

[4] Jean Baudrillard, D’un fragment l’autre, Paris, Alban Michel, 2001, p. 159.

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