6 de Dezembro, 2024

Cartas da Europa resistente. Lodz, a surpresa dos narcisos

EUROPA PARA OS CIDADÃOS | Projeto europeu TOTAL PEACE | Varsóvia, em trânsito para Lodz

Vamos ao encontro dos outros e participamos nas parcerias europeias com motivação e até com entusiasmo. Estamos disponíveis para aprender e a nossa vontade de interagir, de abrir horizontes e de conhecer outras realidades e outras formas de pensar é enorme. Mas não nos peçam para olhar para os contextos que nos são proporcionados nas visitas entre parceiros, de forma acrítica. Aprendemos porque também contribuímos para o conhecimento comum. E ai está a Amélia Resende, que participou em Lodz, Polónia, em mais uma etapa do projeto Total Peace – Europa para os Cidadãos – a tecer as suas considerações sobre alguns temas críticos e relevantes que ela própria captou na sua recente incursão em terras polacas. (Carlos Ribeiro, 27-06-2022).

Notas à carta da Polónia

por Amélia Resende

1- Apesar da resistência e da luta comum contra o ocupante nazi, há que não branquear o antissemitismo dos próprios polacos. Tanto houve os casos de apoio e luta ao lado dos judeus, como casos de colaboracionismo e perseguição. Podemos referir aqui o artigo do jornal Público, de 2/9/21 sobre o processo judicial contra os historiadores que denunciaram esses casos. O actual governo não quer que se faça essa leitura da cumplicidade de alguns polacos com os ocupantes.

Holocausto

2 – Os testemunhos vivos do Holocausto na Polónia, tanto pela presença dos maiores campos de concentração: Auschwitz, Birkenau, para citar alguns, o gueto de Varsóvia e o eloquente Museu da Resistência (Levante ) nessa cidade, a quantidade e extensão de outros guetos e cemitérios judaicos em Lodz e outras localidades são de assinalar.

3 – Atualmente existe uma reabilitação da cultura e presença judaica na Polónia (eram 33 por cento do total da população na altura da guerra) através da sua história e do seu património.

Dos seis milhões de judeus mortos pelos nazis, três milhões eram judeus polacos.

Em 47/48, quando do aparecimento do Estado de Israel, muitos judeus polacos sobreviventes preferiram abandonar o país, por não se sentirem benquistos.

Lodz

4 – Em Lodz, cidade importante a cerca de uma centena de quilómetros de Varsóvia, antiga capital do têxtil, com dezenas de edifícios em tijolo cru (estilo arquitetura industrial), há hoje um grande centro de diálogo (de culturas), que tem por objectivo exactamente preservar a memória da resistência e a presença dos judeus na Polónia e dialogar com outras culturas e religiões. A religião cristã (católica) por exemplo, abrange cerca de 93 por cento do país. A igreja e os seus representantes tiveram um papel ativo na resistência e ajudaram a preservar a identidade nacional. Também existem igrejas evangélicas, evidenciando a influência alemã.

Tolerância e diálogo

Esse centro é um testemunho vivo da história dos Judeus e hoje são frequentes as visitas de familiares das pessoas vítimas do Holocausto, vindos de todos os lados do mundo, que vêm aqui buscar traços do passado e homenagear os seus mortos.

Mas o objectivo do centro vai mais longe: pretende mesmo desenvolver um espírito de tolerância e diálogo que transmita esses valores às novas gerações.

5 – Em Lodz, atualmente há cerca de 100 judeus. Foi nesse centro de Diálogo que o grupo internacional dos diversos participantes do encontro do projecto – Total Peace, em que a AEP 61/74 (Associação de Exilados Políticos) participa se reuniu, sendo aí exibido material relativo à resistência do gueto de Varsóvia e a um dos seus mais destacados líderes: o jovem Marek Edelman. Aí tivemos acesso a muita informação e tivemos o privilégio de conhecer histórias exemplares de sacrifício e de luta.

Até mesmo a de uma criança/ poeta que através dos seus poemas e do sonho se conseguia evadir do inferno do gueto.

A sua estátua ergue-se à frente do Centro e hoje serve de modelo aos jovens e crianças que o visitam.

Direitos das mulheres

6 – Os direitos das mulheres. A regressão da legislação no que toca ao planeamento familiar e interrupção voluntária da gravidez. A influência da Igreja católica e da ideologia das forças da extrema-direita que querem voltar a colocar a mulher em casa a tratar dos filhos no seu papel tradicional, que são contra a liberdade e os direitos adquiridos das mulheres e que criminalizam a interrupção voluntária da gravidez.

Tudo isto em nome de Deus, da Família e da Pátria. O crescente nacionalismo apoia estas teses. Mulheres presentes nas grandes manifestações em novembro de 2020 em Varsóvia (cerca de um milhão de pessoas) em protesto contra estas propostas do governo foram atacadas por forças de extrema direita que infiltradas, desataram a um certo momento a atacá-las com tacos de basebol. A polícia tentou impedir, mas mesmo assim provocaram dezenas de vítimas.

Atacaram à traição

Estavam disfarçados no centro da manifestação. Algumas das mulheres com quem falámos, disseram-nos que pensavam que após aquela movimentação o governo iria recuar. Nada disso. Aproveitou o tempo do confinamento/ pandemia e agora, sob a ameaça e os perigos da guerra, legislou contra as mulheres.

A interrupção voluntária da gravidez nem em caso de violação é permitida, cxceptuando casos raros.

Sendo assim, as mulheres não confiam no sistema de saúde, nem no sistema político. A única saída é viajarem para fora do país ou fazerem abortos clandestinos. Temos, pois, aqui um grande retrocesso. Relativo aos direitos das mulheres. Aos direitos humanos.

Estas questões foram discutidas pelo grupo de encontro do Total Peace em Lodz, em registo informal, agregando sobretudo as mulheres. Avançou-se com a ideia de que deveríamos colocar estes direitos na nossa agenda e com a hipótese de criarmos pontes entre nós, de forma a possibilitar uma rede internacional de apoio e luta pelos direitos das mulheres, Á luz do que se está a passar também noutros países. Vide USA.

Se o projeto Total Peace integra vários países europeus e dá a conhecer figuras da resistência e da construção da paz de cada um deles, aliadas a uma data e a uma flor, a “surpresa dos narcisos“ que as nossas companheiras da Polónia tinham para nós, representa um significativo gesto de aproximação das ideias e dos afetos: plantar em conjunto essas flores num terreno simbólico. Lançar as sementes do diálogo e da esperança para um futuro fraterno.

Amélia Resende Junho de 2022.

Fotos @ Amélia Resende e José Augusto Martins

Amélia Resende

Editor

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