13 de Janeiro, 2025

VAGAR o museu da cultura alentejana

cromeleque

CULTURA | 21/072022,

A candidatura de Évora a capital da cultura é um projeto que tem o condão de congregar o entusiasmo de todas as forças políticas com representação na Assembleia Municipal. Mas, diversas pessoas pelo país fora, questionam se Évora terá uma “movida” cultural tão estonteante que justifique a pretensão a capital da cultura?

por Jorge Araújo, Presidente da Assembleia Municipal de Évora

Eu respondo que não é esse o “ponto”. Évora merece ganhar o concurso porque a sua espessura cultural é milenar, porque conserva testemunhos fundamentais do seu percurso de criação cultural, porque soube miscigenar a cultura popular com a cultura erudita à qual está ligada, indubitavelmente, a secular Universidade de Évora, porque manifesta, hoje em dia, um amplo espectro cultural, vivo, que vai do cante alentejano até às expressões mais avançadas da cultura, que a ciência e a arte podem proporcionar.

Havia, no “princípio”, uma pequena colina, situada na interseção de três bacias hidrográficas, que emergia de um mar imenso de floresta. Floresta relativamente densa e contínua que um esquilo podia percorrer, em toda a Península Ibérica, saltando de ramo em galho, de galho em tronco. Floresta de folhas duras que não temem o frio. Os homens por aqui andavam há muito, mas quando, em razão da domesticação das plantas, tiveram que se deixar ficar abandonando o regime errante de caçadores/recolectores e optando pela vida de pastores/agricultores. A colina oferecia boas condições para assentar pois garantia uma visão em todos os azimutes.

O novo modo de vida exigia um conhecimento basilar: a previsão das estações. É claro que, por essa altura, o Homem já sabia que havia dias frios e quentes, longos e curtos. Mas, para quem domestica plantas e animais, saber prever com rigor o ciclo do sol é fundamental, pela simples razão de que o ciclo reprodutivo dos animais e das plantas se pauta, em larga medida, pela duração dos dias.

Com vagar, alinharam duas pedras-talhas com a posição do sol nascente. Com vagar, vigiaram a posição do sol ao nascer e assinalaram a posição do sol correspondente ao dia mais longo. Com vagar, afinaram o sistema ano após ano. E assim construíram o instrumento – um observatório astronómico – que lhes permitiu fixar um ponto de referência do ciclo do sol, correspondente ao solstício de verão. Essas pedras, passados 5.000 anos ou mais, ainda lá estão: constituem o mais antigo observatório astronómico, visitável no Cromeleque dos Almendres; mas, concomitantemente, significa a aquisição do conhecimento primordial para tudo o mais que se seguiu em termos de agricultura e pecuária. Foi esse conhecimento que consubstancia a nossa cultura primordial, ao qual subjaz o sucesso da sedentarização e da exploração da terra.

Foi com vagar. Porque vagar é a capacidade para parar, para olhar e pensar.

Foi com vagar, que se descobriu que há terras moldáveis e que, uma vez submetidas ao fogo, se tornam duras. Foi com vagar que se descobriu que há pedras que, uma vez levadas ao lume, “vertem” metal. Foi com vagar que se domesticaram as plantas que são, ainda hoje, as nossas diletas companheiras: a vinha, a oliveira, a figueira e as duas outras árvores da floresta, a azinheira e o sobreiro, entre diversas outras.

Com vagar criou-se cultura. Mas…então o que é cultura?

É simples: é a soma do conhecimento consolidado que nos permite compreender o mundo que nos rodeia, bem como os artefactos, as artes e as técnicas que nos possibilitam interagir com ele. Esta definição aplica-se tanto à cultura popular como àquela que, mais tarde, surgiu, a que se pode adjetivar de erudita. A arte, por exemplo, esteve connosco muito antes da sedentarização, como as pinturas rupestres da Gruta do Escoural, testemunham.

A terra foi a mãe da nossa cultura: com ela aprendemos a utilizar o barro e a pedra, a extrair minérios, e a aquecê-los para obter metais fundidos; a cultivar cereais, que fixam o carbono atmosférico, e com os quais se faz o pão, e as leguminosas que fixam o azoto atmosférico e que nos dão proteínas; a cultivar a vinha, que nos dá a uva, o vinho e o álcool; a cultivar a oliveira, que nos dá a azeitona e o azeite; a conviver com azinheiras e sobreiros numa solução de compromisso a que chamamos “montado” e de cujos frutos, as bolotas, se alimentam animais em pastoreio; etc…

A designação usual de artesanato atribuída aos artefactos produzidos pelo homem, é redutora do valor que eles representam e abre o caminho para a adulteração, que o comércio não tem pejo em patrocinar. O artesanato é a expressão da cultura genuína, pelo que a sua apresentação não deve ser desinserida do seu contexto, sob pena de serem vistos apenas objetos curiosos produzidos por gente de outro tempo. Na verdade, um talêgo (ou taleigo) é mais do que um saco de pano para guardar o pão. Ele representa o meio mais bem-adaptado à conservação do pão, pois impede que a humidade, que se liberta do pão, se condense e propicie o desenvolvimento de fungos; mas também mantém no seu interior, um clima húmido em relativo equilíbrio dinâmico com a humidade do pão, que impede que este seque rapidamente. A apresentação de um tarro como uma curiosa caixa de cortiça, é um ultraje a um objeto que foi o primeiro recipiente isotérmico e estanque, amplamente usado pelos trabalhadores rurais para manterem quente os alimentos. Muito mais haveria a dizer sobre os inúmeros artefactos que sinalizam o longo processo de acumulação de cultura.

Toda a cultura tem por base o vagar. Mesmo a cultura gerada pelo método científico, disso não tenhamos qualquer dúvida.

Uma das formas de homenagearmos a cultura alentejana seria a criação de um grande museu consagrado à apresentação, interpretação e valorização do património cultural, que poderia designa-se, apropriadamente, por Vagar.

Concebo facilmente um museu onde estivessem presentes as diversas fileiras de atividade económicas de raiz genuinamente cultural: a fileira da pedra, a fileira do barro ao pote, à talha, ao azulejo e, daí às artes decorativas, mas também ao adobe e ao tijolo; a fileira do sobreiro à cortiça e às utilizações industriais modernas; a fileira da vinha ao vinho e ao álcool, a fileira da oliveira à azeitona e ao azeite, à iluminação e à culinária; as fileiras do carneiro e da cabra, da lã e do leite e dos queijos, mas também da tecelagem ao capote e à manta; a fileira da azinheira ao porco e às carnes processadas, etc.

O museu da cultura integraria obrigatoriamente, as diversas expressões artísticas: musicais, pictóricas e outras.

Penso num museu que constituísse um incentivo para os artesãos, um centro pedagógico ao serviço da instrução pública e um forte atrativo para o turismo.

Penso num museu onde as diversas fileiras mencionadas, e outras, culminassem em balcões de comercialização, que assegurassem a autossustentação económica do empreendimento.

Contribuamos ativamente para que Évora se assuma como capital do Alentejo e, como tal, primeira guardiã da sua cultura milenar.

Texto publicado no “Diário do Sul” reproduzido no SF com autorização do autor

Editado CR/SF – destaques e imagem de destaque | Foto: Cromeleque dos Almendres, Autor :João Carvalho CComons

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