Albânia hoxhista, vertente nacionalista do totalitarismo na Europa
MUNDO | DOSSIÊ Albânia Hoje (8) – 11 de agosto 2022 | Opinião
por Carlos Ribeiro
Não é suposto que num media de comunicação colaborativa, como é o caso do Sem Fronteiras, que a função de facilitador da participação e da partilha de textos, imagens e opiniões se confunda com aquelas que produzem conteúdos opinativos, sendo na circunstância recomendado um certo distanciamento e até uma inequívoca neutralidade tranquilizadora para que seja assegurado um fluxo de conteúdos com qualidade e diversidade, garantindo um elevado sentido crítico, polémico e até de controvérsia.
Vem este apontamento a propósito da excelente colaboração que Manuel Rodrigues introduziu no DOSSIÊ “Albânia Hoje” através do seu artigo de opinião “Náufragos do socialismo agarram-se à tábua podre do anticomunismo” que publicámos no passado dia 20 de julho. Manuel Rodrigues é um conhecedor da matéria e trouxe uma visão complementar aos artigos iniciais que no essencial forneceram informação sobre a situação e sobre o percurso da Albânia como país peculiar que assumiu durante um período o estatuto de “farol do socialismo no mundo“.
O tom de Manuel Rodrigues no seu artigo é próprio de outros tempos, mas o seu interesse está em constituir-se como uma abordagem que incentiva ao debate e à polémica pública sobre temas eventualmente ultrapassados mas que nos levaram a organizar algumas ideias sobre esta vertente do totalitarismo na Europa, o nacionalismo albanês com roupagens socialistas, que chegou a criar adesões em Portugal, às tantas mais pelo romantismo do paradigma “aldeia de Asterix” que pela produção teórica que era francamente muito fraca e repleta de banalidades propagandísticas. Assim não tanto pela Albânia do passado mas antes pela procura de elementos antecipatórios sobre as relações entre o nacionalismo revolucionário e o populismo autoritário adiantamos alguns apontamentos que terão seguimento num segundo artigo a breve trecho.
Confundir para condenar
Rodrigues, no seu artigo, emitiu opiniões claras em defesa do essencial da “experiência do socialismo albanês” e exprimiu de forma convicta as suas ideias. Tratou-se de um artigo de opinião. Mas o autor decidiu confundir o trabalho de reportagem e de jornalismo que procurámos, a par de Daniel Ribeiro e Rui Ochôa do semanário Expresso, facultar aos leitores, com um posicionamento pessoal e opinativo sobre questões de natureza política e ideológica.
Rodrigues, no artigo em causa, indicou mesmo a minha concordância com conteúdos produzidos pelo jornalista Daniel Ribeiro, sem que eu a tenha declarado e informou sobre o meu eventual posicionamento político-partidário sem me ter questionado sobre a matéria e ainda sem que o assunto em causa exigisse informação daquela natureza. Não foram referências ingénuas do articulista como veremos.
Tratou-se, no caso, do recurso a técnicas de argumentação que “colocam subliminarmente na boca dos outros o que dá jeito para confundir e condenar”, constituindo formas de agir típicas dos inquiridores dos regimes totalitários explicitadas e muito desenvolvidas por Arthur Koestler na sus obra incontornável “O zero e o infinito”.
Arthur Koestler nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1905, no seio de uma família judaica. Foi escritor, jornalista e ativista político, tendo passado pela Palestina, pela União Soviética e por Espanha, onde, participando da Guerra Civil, foi condenado à morte pelas tropas de Franco. Com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, radicou-se em Londres e cortou com o Partido Comunista após as purgas estalinistas. Entre mais de duas dezenas de obras publicadas, destaca-se Eclipse do Sol, uma crítica acutilante ao despotismo estalinista, considerado por George Orwell um dos poucos livros que poderão mudar a História. Em 1983, suicida-se na sua casa, em Londres.
Pontos de partida mínimos
Teremos que admitir que o debate sobre questões relacionadas com o desenvolvimento humano, a mudança social e o “viver juntos”, se não assentar em algumas premissas de base torna-se particularmente difícil ou até mesmo ineficaz.
Não se trata de reabrir um debate mais do que realizado (mas eventualmente de novo atual) sobre “reforma ou revolução”. Os revolucionários dogmáticos nunca se questionarão sobre a evidência histórica que revela que no pós-revolução de “assalto ao poder” surge inevitavelmente o terror e a ditadura, exercidos pelos novos dominadores e os reformistas conservadores, autocráticos e legalistas nunca aceitarão e opor-se-ão de forma violenta à ampla participação popular nos processos de reforma que visem uma efetiva justiça social, uma governança participada, uma co-responsabilização pelas políticas públicas, uma real aplicação do princípio da subsidiariedade nos processos de decisão e um auto-controle e auto-gestão das comunidades que garantam a inclusão e a inovação social na base do lema “nada sobre nós, sem nós!”.
Mas então que pontos de partida mínimos devem existir?
Primeiro a liberdade e a democracia
Não será razoável, ao avaliar o percurso histórico e político de um país e ao caraterizar a sua situação atual que se omita ou relegue para plano secundário as questões da democracia, da liberdade e dos direitos humanos. Mas, lamentavelmente, Rodrigues prefere a propaganda, aliás quase caricata dos êxitos do socialismo albanês, num exercício de Alice no País das Maravilhas, a clarificar de forma categórica as suas posições neste plano determinante. Ou seja, depreende-se pela omissão voluntária da sua abordagem (ou referência discreta como “exagero” ou “excesso”) que Rodrigues admitirá, em nome do bem do povo e do proletariado albanês que tenha existido:
- uma ditadura estalinista de mais de 40 anos;
- um partido único que se instalou e perpetuou no poder eliminando todos os seus opositores com assassinatos e prisões;
- um estado policial, com polícia política repressiva, com métodos de vigilância, prisão, interrogatórios, tortura, assassinatos, idênticos aos da PIDE;
- um Estado, dominado por um partido e por detentores de privilégios, que funcionou sem separação de poderes e consequentemente sem ser um Estado de direito;
- um regime que recorreu à figura mais desumana de todas as práticas repressivas dos diversos ciclos civilizacionais “o campo de concentração” que o Tarrafal nos deu a conhecer de forma dramática e direta;
- um culto da personalidade de um dirigente político e partidário que da mesma forma que o famigerado “pai dos povos” impôs-se à sociedade como um tirano e inviabilizou qualquer julgamento/avaliação crítica sobre a sua liderança e sobre as suas práticas anti-democráticas.
À valorização incondicional da liberdade, Rodrigues prefere relativizar a necessidade do terror, da submissão, do silêncio das opiniões, do sofrimento de quem é aprisionado fisicamente e nas suas ideias, em favor do “bom partido” e do “socialismo triunfante”.
À democracia, Rodrigues prefere a ditadura dos “bons” sobre os “maus”; esta será a única forma de impor a vontade do partido que se auto-elege como o representante legítimo da vontade popular.
Aos direitos humanos, à sua universalidade e generalização na sociedade, Rodrigues prefere “os direitos do partido” que determina quem pode exprimir as suas ideias e opiniões, quem pode reunir e debater ideias, quem pode manifestar-se e expressar o seu descontentamento, quem pode entrar e sair do país de forma livre e sem restrições, quem pode apresentar queixa contra abusos de poder ou injustiças, quem pode recorrer à justiça e ser tratado de forma imparcial, quem pode exprimir a sua fé e aceder de forma livre à prática religiosa, quem pode exprimir a sua criatividade artística e produzir obras sem censura e sem imposições de padrões culturais. Enfim, e muitos outros direitos cujo exercício deixou de existir.
Alice e o País das Maravilhas
Rodrigues confunde os seus desejos com a realidade ao apresentar os grandes êxitos do “socialismo albanês” na base da propaganda. É preciso ter convicções religiosas profundas para não se aperceber que as suas referências sobre as condições de vida dos albaneses até finais dos anos 80 já foram desmistificadas pelos próprios albaneses a começar por Ramiz Alia que confirmou o estado de pobreza e de subdesenvolvimento do país aquando das tímidas tentativas de algumas reformas na fase pós-Enver Hoxha (1985).
Apesar de Rodrigues ser forte em números, o que não será um atributo de todos, e pelos vistos nem de Daniel Ribeiro nem meu, existe na prática de consultas às bases de dados e às informações disponíveis na Internet, por exemplo na Enciclopédia Livre e Colaborativa Wikipédia um aviso sobre a credibilidade dos conteúdos adiantados: “esta página não cita fontes. Conteúdo não verificável pode ser removido”
Assim pode parecer despropositado a Rodrigues, face ao grande rigor dos dados que adiantou e às fontes que citou, que os Relatórios produzidos por peritos do Conselho da União Europeia para organizar o apoio às situações de migrações crónicas na Albânia e na Região (Bruxelas, 17 de abril de 2000, Plano de Ação para a Albânia e a Região Limítrofe, 7886/00) refiram a Albânia como o país mais pobre da Europa, com situações de pobreza extrema
“26. Com um PIB per capita de cerca de 765 euros, em média, a Albânia é o país mais pobre da Europa. De acordo com o Banco Mundial, 30% dos seus 3,4 milhões de habitantes vivem abaixo do limiar de pobreza, o que torna ainda mais difícil a transição para uma economia de mercado mais aberta” e “.A economia continua a ser sustentada pelas remessas enviadas por cerca de 20% da mão–de-obra que trabalha no estrangeiro, principalmente na Grécia e na Itália”.
Antitotalitarismo e anticomunismo
Anticomunismo
Na realidade o tema central desta abordagem, mais ou menos controversa da história e do percurso político-ideológico da Albânia no período hoxhista, que durou principalmente de 1945 a 1985, remete-nos para as questões do antitotalitarismo e do anticomunismo.
Rodrigues colocou as informações de terreno e documentais assim como as referências de princípio adiantadas nas diversas peças publicadas sobre o País das Águias no campo do anticomunismo. Trata-se, mais uma vez, do velho papão que os comunistas ortodoxos evocam junto dos fiéis para defender a sua dama e colocar, à boa maneira da Inquisição Vermelha, do lado da heresia quem apenas informa mas também, quando é o caso, critica ou denuncia. Todos os processos estalinistas basearam-se nesta premissa do “anticomunismo” do “antirevolução” e do “antipartido” daqueles que divergiram do rumo que estava a ser seguido
No processo contra o “Bloco Anti-Soviético de Direitistas e Trotskistas” realizado em Moscovo em 1938 os réus eram Nikolai Bucarine, Presidente da Internacional Comunista, sucessor de Zinoviev, que fora fuzilado dois anos antes, Cristian Rakovsky ex-chefe da República Soviética da Ucrânia, ex-embaixador soviético em Inglaterra e França, Nikolai Krestinsky antecessor de Estaline como Secretário-Geral do Partido Comunista da República Soviética da Ucrânia, ex-embaixador soviético na Alemanha, Alexei Rykov sucessor de Lenine na Presidência do Comissariado do Conselho do Povo e outros. Todos foram acusados de serem “anticomunistas”. renegados, traidores etc.
Na Albânia, sabemos o que aconteceu a Mehmet Sheu, braço direito de Enver Hoxha. No dia 17 de dezembro de 1981, foi encontrado morto no seu quarto em Tirana, com um ferimento de bala na cabeça. De acordo com o anúncio oficial (18 de dezembro), ter-se-á suicidado durante um ataque nervoso. Foi declarado um “inimigo do povo” e enterrado num terreno baldio nos arredores da vila de Ndroq, próximo a Tirana. Depois da sua morte, Shehu foi acusado de ter trabalhado como agente não só para o serviço secreto iugoslavo, mas também para a CIA e para a KGB.
Antitotalitarismo
O conceito de Totalitarismo tem as suas origens, a sua história e as suas aplicações diversas, em contextos muito diferentes ao longo das últimas décadas, desde as suas primeiras utilizações no final dos anos 30 do século passado.
Três experiências históricas estão na sua origem: o fascismo italiano (1922-1945), o nacional-socialismo alemão (1033-1945) e o estalinismo russo (entre es anos 20 e meados dos anos 50 do século XX).
Para além das diferenças entre elas, atendendo às suas origens e às suas bases sociais, encontramos pontos comuns que são suficientemente globais para uma análise comparativa mas também para um aprofundamento de temas como a violência do Estado, a tendência para reduzir as fronteiras entre o Estado e a sociedade e, entre outros mais, o paradoxo de um “Estado -todo-poderoso” que acaba por eliminar o próprio Estado reduzindo a dimensão política da função a processos de destruição cuja expressão dramática fundamental reside no extermínio e no genocídio.
O conceito, distinguindo-o pela sua dimensão ideológica de outros que lhe são próximos – tirania, autoritarismo, despotismo – surge como útil para aprofundar a abordagem aos regimes não-democráticos e para antecipar, na atualidade, as dinâmicas populistas numa fase de crescimento da extrema-direita no mundo e num período incerto quanto à guerra e à destruição do Estado Social na Europa.
Para o efeito, procurando realizar um esforço de aprofundamento e de abordagem atualizada destes temas, voltaremos ao assunto com um segundo artigo “Antitotalitalismo, reinvenção da democracia e transformação social”.
Carlos Ribeiro, 11 agosto 2022
Foto destaque ©
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- File:Former political prison in Girokaster.jpg