15 de Janeiro, 2025
melro 2

OPINIÃO | Guerra Rússia – Ucrânia

Por Francisco Melro, 11 de março 2022

A invasão, a devastação do território, a destruição das infra-estruturas e a punição sangrenta das populações a que hoje assistimos na Ucrânia não são explicáveis por eventos ou divergências recentes entre Estados vizinhos, ainda por cima, irmãos. São antes uma das consequências de um plano há muito, muito, tempo elaborado por parte da liderança russa. Outras consequências, eventualmente muito mais graves, decorrentes desse plano ou de desenvolvimentos inevitáveis já resultantes da invasão da Ucrânia, embora não previstos e nem desejados pelos autores do plano, poderão vir a suceder-lhe.

O plano foi explicado ao Mundo no discurso histórico de Putin que precedeu a invasão da Ucrânia: a Rússia actual é herdeira do passado histórico dos czares e do Estado Soviético e irá fazer prevalecer os seus direitos históricos, à luz dos quais, a Ucrânia nem sequer tem direito a existir como Estado independente.

É por isto que não irei voltar analisar a invasão da Ucrânia à luz das justificações de ocasião de Putin. Já disse aos meus amigos o que entendo sobre as trapaças da novilíngua do seu autor.

Na concretização desse plano, a liderança russa liderada por Putin foi, primeiro, chamando para o seu lado os deserdados dessa herança histórica: a população russa que se sentia humilhada e atingida pelas consequências da perestroika, desde a insegurança e o crescimento da pobreza, à desagregação do império, à corrupção e pilhagem dos recursos e bens públicos, à falta de autoridade do poder central e à menorização do poder soviético perante o Mundo.

E o primeiro sinal para uma nova esperança de reposição da autoridade russa e da afirmação e clarificação da sua liderança foi dado por Putin na Tchetchénia, esmagando sem piedade os nacionalistas e arrasando Grosny.

O povo animou-se, as repúblicas dissidentes refrearam os seus apetites e Putin foi obtendo o poder absoluto desejado.

Os passos seguintes foram dados pela consolidação do poder russo sobre as restantes Repúblicas, exigindo lideres e políticas, sobretudo alinhamentos internacionais, fiéis a Moscovo. À mínima dissidência, os tanques de Moscovo intervieram ou para lembrar aos dirigentes locais quem é que manda ou para repor a autoridade desses líderes,  reprimindo revoltas populares. Os pretextos para os “exercícios militares” passaram pela protecção das comunidades russas locais, vítimas de pretensos genocídios, ou para impedir influências americanas, da Nato e da União Europeia, sempre indevidas nas zonas de influência do império.

De caminho, a liderança russa foi esmagando e desincentivando qualquer resistência interna, com controle dos meios de comunicação,  punição de jornalistas, proibição de candidaturas de opositores, prisão dos mais destacados em períodos pré-eleitorais, acidentes diversos, nunca explicados, e assassinatos, nunca esclarecidos, mesmo que cometidos às portas do Kremlin. Para além dos envenenamentos de opositores, incluindo no exterior do império.

E nesta já longa caminhada, Putin foi construindo uma poderosa e moderna máquina de guerra que agora está a ser usada para agredir a Ucrânia, e que, de forma orgulhosa e intimidatória, já tinha exibido ao Mundo nas habituais paradas militares realizadas junto do Kremlin.

A antiga nomenclatura russa e de outras repúblicas do poder soviético aderiu a estes novos tempos, incluindo os comunistas russos, que têm vindo a alinhar e a beneficiar com o apoio ao essencial da nova via política.

Na preparação do ambiente para a invasão da Ucrânia, Putin contou com a colaboração dos comunistas que apresentaram uma moção ao parlamento russo que legitimava iniciativas militares em território ucraniano. Putin anunciou mesmo, publicamente, uns dias antes da invasão, que estaria a reflectir sobre a deliberação dos parlamentares. Não é por culpa do PCUS que se registam nas cidades russas protestos contra a guerra.

A própria invasão da Ucrânia foi precedida por um longo período de ponderação e preparação. Ninguém decide nem prepara de um dia para o outro, uma invasão que exige a intervenção, durante um período relativamente prolongado, abarcando toda a longa fronteira da Ucrânia, da movimentação de perto de 200 mil militares integrantes de um grande número de unidades, com diferentes especialidades, que exigem a coordenação de actuações e movimentos e o suporte de enormes recursos. Diversos exercícios militares terão sido, necessariamente, previamente realizados ao longo dos últimos anos. O próprio presidente da Bielorrússia veio afirmar, quando a invasão eminente já era denunciada pelos Estados Unidos, que se estava apenas perante exercícios pacíficos e habituais no território bielorrusso, envolvendo militares de ambos os países.

Provavelmente, esta invasão já estaria a ser preparada durante a presidência de Trump.

Em simultâneo com a expansão e consolidação do seu poder internamente e por todo o império, a liderança russa declarou guerra política aos Estados Unidos e à União Europeia, intervindo nas eleições americanas para beneficiar a eleição e a governação de Trump, fomentando a discórdia e a desagregação da União Europeia, apoiando e financiando o Brexit e os partidos populistas que defendiam políticas nacionalistas na Europa, fazendo campanha com Trump para desacreditar e debilitar a Nato, tornando-se amigo de diversos líderes políticos europeus, incluindo a atribuição de cargos de altos rendimentos em empresas russas, lançando campanhas de “fake news” nas redes sociais e realizando ataques informáticos a diversas redes públicas nos países ocidentais.

A liderança russa invadiu a Ucrânia porque queria recuperar o controle sobre este país, vingar-se da afronta decorrente da deposição do seu amigo pela revolta de Maidan e obter o reconhecimento internacional, de facto, da sua jurisdição nas repúblicas inventadas do Leste ucraniano, e da Crimeia e estendê-lo, pelo menos, a toda a zona do Mar Negro. Hoje, após o território já ocupado, as suas ambições irão para muito mais além.

Não foi por causa de eventuais ameaças da Nato e dos Estados Unidos sobre a Rússia a partir da Ucrânia. Pelo contrário. A liderança russa aproveitou um momento de particular fragilidade e vulnerabilidade da Nato, afectada pelo longo período de liderança de Trump, pelos desaires dos Estados Unidos no Afeganistão, pelo deslocamento dos esforços dos Estados Unidos para a Ásia, em detrimento da Europa, e pelo foco das políticas europeias no combate aos efeitos da pandemia e dos fluxos migratórios. De resto, a invasão e o momento escolhido têm um efeito similar ao que produziria uma manobra concertada entre as lideranças russas e chinesa para baralhar e enfraquecer a estratégia americana.

As consequências da agressão russa à Ucrânia estão à vista de todos. Perante o poderio destrutivo da máquina de guerra russa, será difícil imaginar outro desfecho que não seja a devastação do território ucraniano, a destruição das suas estruturas civis e militares ucranianas e a derrota do Exército ucraniano.

Mas as consequências da guerra não se esgotam aqui. Estão a ir muito para além do previsto e desejado pela liderança russa. A aventura guerreira russa e a determinação da liderança e do povo ucraniano em lutar pelo seu direito da Ucrânia existir como país independente e livre criaram um enorme sarilho para o Mundo.

A liderança russa subestimou a liderança ucraniana, avaliando-a ao nível corrupto e servil do seu amigo ucraniano deposto em Maidan de todos os outros líderes amigos das repúblicas que controla. Subestimou a unidade e a determinação de resistência do povo ucraniano, em torno da sua liderança. Subestimou a vontade e a capacidade de resistência do exército ucraniano. Subestimou os reflexos da sua agressão na opinião pública ocidental e na sua própria opinião pública e a oposição unânime e crescentemente firme dos governos europeus e dos Estados Unidos. Esperava uma resposta ocidental ao nível da que recebeu quando em 2014 invadiu a Crimeia e interveio nas zonas separatistas do Leste ucraniano.

Com esta invasão, a liderança russa anulou todo o investimento que tinha feito para o Brexit e para capturar aliados europeus, revitalizou a Nato e agora confronta-se com uma enorme solidariedade com a Ucrânia no mundo ocidental, com sanções económicas duras, uma corrida aos armamentos na Europa e com uma vaga de protestos continuados nas principais cidades russas, que poderão crescer à medida que os caixões e os estropiados de militares forem chegando às respectivas famílias.

A perda de controle sobre a situação tem tornado Putin progressivamente ameaçador, até com armas nucleares, quer a países vizinhos quer a um conjunto mais alargado de países, entre os quais o nosso, que colocou numa lista negra. Putin não será louco, nem decidirá só. Mas guardo bem na memória o enxovalho público recente do seu responsável do serviço de informações e do pânico e da desorientação subserviente deste último. Estava habituado ao inverso, a ver dirigentes políticos temerosos do poderio dos responsáveis dos serviços de informações.

E sobre o perfil deste coronel do KGB, por vocação, que chegou a Presidente da Rússia e da forma como chegou, já foi tudo escrito por quem sabe. Pelo sim pelo não, será melhor levar as suas ameaças a sério.

Apesar do seu lugar na História e do seu poder económico, os interesses específicos da Europa não tem sido nem tida nem achada na arena internacional. Envolvidos no mundo dos negócios das empresas e preocupados com as suas eleições e reeleições, os políticos da EU têm descurado a sua segurança e o correspondente investimento nas Forças Armadas, ignorando todas as ameaças que vão crescendo à sua volta. Descansaram na protecção americana. Chegaram ao ponto de entregar infraestruturas estratégicas e partes do seu território ao governo chinês. Agora perceberam que têm rapidamente de arrepiar caminho.

Se os países europeus quiserem continuar a existir com dignidade, terão de se armar.

Com os Estados Unidos enfraquecidos e internamente divididos, cuja liderança pode até regressar às mãos de alguém como Trump, e dado o risco dessas lideranças voltarem a pretender envolver a Nato e os europeus em novas aventuras bélicas do tipo da agressão criminosa ao Iraque, os europeus têm que criar, urgentemente, meios próprios de defesa que garantam a sua segurança e preservem a sua autonomia e identidade.

É este o meu lado. Da liberdade e da vida humana com dignidade. Nunca gostei de Pétain nem de Chamberlain. Nestas coisas, a minha referência é Churchill.

Francisco Melro

Destaques a negrito do Sem Fronteiras

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.