Portugal não é o Bangladesh
A morte da empatia, o silêncio da política e o país que se esqueceu do que significa ser decente
Por: Tiago Pereira da Silva
“Um país começa a morrer no dia em que o poder se habitua à indiferença.”
Há um país que se vai tornando irreconhecível. Não pela crise, que é cíclica, nem pela pobreza, que há muito foi naturalizada como uma espécie de herança nacional. O que mais fere é a erosão moral — a falta de pudor e de sentido ético de quem devia governar com consciência e fala agora como se estivesse num púlpito de ressentimento.
Nos últimos dias, ouvimos uma ministra da Saúde justificar a morte de uma grávida com uma ligeireza perturbadora: “São grávidas que não têm dinheiro para ir ao privado, que às vezes nem falam português e que não foram preparadas para chamar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm.” As palavras de Ana Paula Martins soaram como um epitáfio à empatia. Como se a tragédia pudesse ser explicada pela pobreza das vítimas; como se morrer de parto fosse uma fatalidade social, um erro de quem nasceu no lado errado do país. Mas a desigualdade não é destino. É decisão. É sempre uma escolha política. Quando uma ministra naturaliza a ideia de que há vidas menos prevenidas, menos instruídas, menos dignas, está, no fundo, a dizer que há vidas menos importantes. E é precisamente essa indiferença discreta, burocrática, dita em tom sereno, que mais corrói uma democracia.
Poucos dias antes, o Ministro da Presidência, António Leitão Amaro, declarou que “Portugal fica mais Portugal”, a propósito da lei da nacionalidade. Soou como um slogan travestido de doutrina. De repente, o país que se orgulhava de ser feito de travessias e mestiçagens, de línguas e oceanos, parece querer reduzir-se à escala de uma ilha fechada. O discurso nacionalista regressa com luvas de seda e tom administrativo. A extrema-direita agradece. André Ventura, Pedro Pinto, Pedro Frazão, Rita Matias — rostos de um populismo cada vez mais destilado — encontraram no espaço público uma caixa de ressonância. Acusam migrantes, vilipendiam minorias, insultam a diferença. Falam em “limpeza” e “ordem” como quem invoca uma moral, mas o que realmente desejam é um país obediente, homogéneo e submisso. E o que espanta já nem é o discurso dos extremos, é a cedência dos que se dizem moderados. O PSD transformou-se numa versão executiva da extrema-direita: o mesmo desprezo pelos pobres, a mesma indiferença perante os migrantes, a mesma ideia de autoridade travestida de prudência. A diferença é apenas de tom. Ventura grita; o PSD articula. Mas a sintaxe é a mesma.
Há uns anos, Augusto Santos Silva levantou-se no Parlamento e pediu: “Parem de degradar as instituições.” Foi acusado de autoritário, de querer censurar o Chega, de não entender a “nova política”. Na verdade, apenas pressentia o que estava a acontecer: a banalização do insulto, a transformação do hemiciclo numa taberna e da democracia num espetáculo de fúria. O insulto deixou de ser um excesso — passou a ser estilo. E o resultado é um país onde o ruído substitui a razão e o ódio se tornou um idioma.
Entretanto, o essencial desapareceu. Não há visão para a escola, nem política para a habitação. O ambiente é uma nota de rodapé e por vezes nem isso. A transição climática é tratada como um incómodo. As palavras “igualdade” e “justiça social” evaporaram-se dos discursos oficiais. Os ministérios são redutos de tecnocratas com alma de gestor, incapazes de imaginar o país para lá do Excel. Governam números, não pessoas. E cá fora, sente-se o que isso produz. As pessoas estão mais ásperas, mais desconfiadas, mais perigosamente descrentes. O rancor tornou-se quotidiano. O ódio, uma respiração de fundo. Já não se discute: ofende-se. E a política, que devia ser antídoto, tornou-se cúmplice.
Portugal está cansado, é certo, mas não perdeu a memória. Ainda há uma ideia moral que resiste feita dos valores de Abril, de fraternidade, de uma noção de país decente. É essa a herança que está a ser traída. Quando um governo fala como a oposição reacionária, quando o medo se apresenta como programa e a indiferença se veste de competência, o país perde a alma. Não é preciso ser de esquerda para perceber que isto é intolerável. Basta ter decência.
Portugal não é o Bangladesh, disse um candidato a primeiro ministro. Ups, parece que também candidato nas presidenciais. Pois não. Portugal é, ou devia ser, o país que não aceita a morte como destino nem o ódio como argumento. O país que aprendeu que a humanidade não se mede em nacionalidades, mas em gestos. E se quem governa esqueceu essa lição, cabe-nos recordá-la com palavras, com memória e, sobretudo, com a coragem de continuar a dizer não. Não passarão.