6 de Novembro, 2025

Educar deveria ser um ato de libertação

Educar para o encontro e para a procura de caminhos: jovens desajustados e alheios à escola pública

Por Olívia Santos Silva

Licenciada em Ciências da Educação, com especialização em Animação Comunitária e Educação de Adultos, pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto.

A escola deveria ser um espaço de encontro humano, mas são tantas as vezes em que se transforma num lugar de exclusão dissimulada. Fala em igualdade de oportunidades, mas reproduz velhas desigualdades. Entre paredes brancas e programas uniformes, há jovens que não se encaixam — não por falta de inteligência, mas porque o modelo escolar não reconhece as suas vozes, as suas linguagens e os seus mundos de vida. São os chamados “desajustados”: jovens que a escola não sabe reconhecer e interpretar, e que, por isso, se desvanecem na invisibilidade.

Percebo hoje que o desajustamento não nasce neles, mas no sistema que os mede por padrões que não os representam. Bourdieu já o dizia: o capital cultural exigido pela escola é o das classes dominantes. E o que para uns é inerente à heterogeneidade, para outros é obstáculo. Bernstein mostrou como a linguagem e o idioma escolar privilegiam certos modos de falar e pensar.

Dubet lembrava que, quando a escola falha, muitos jovens sentem o fracasso como culpa pessoal — sem perceberem que o jogo nunca foi justo.

São vidas feitas de precariedade, urgências e lutas, que carregam responsabilidades adultas em idades de sonho. E quando a escola não reconhece essa complexidade, transforma o diálogo em mal-entendido.

Dubet, Freire, Giroux, Bourdieu, Bernstein e Lahire

Voz, humor, amor, solidariedade, partilha, sentido

Psicologicamente, este desencontro é também um grito por reconhecimento. A adolescência é tempo de procura de pertença — e quando a escola se mostra insensível, impassível ou indiferente, os jovens buscam noutros lugares o que ali lhe falta: voz, humor, amor, solidariedade, partilha, sentido. Vai encontrá-los na rua, na música, nas redes sociais, no grupo de pares, onde há espaço para ser e, por vezes, para não ser. A escola fala de competências e resultados; eles vivem códigos de sobrevivência e criatividade. Como lembra Lahire, cada pessoa traz múltiplas pertenças, e a escola tende a pedir uma só identidade — a “correta”, a “adequada”.

Pedagogicamente, continuamos presos a um currículo uniforme, pensado para um aluno abstrato. Paulo Freire advertia-nos dos riscos da educação bancária, que deposita saberes sem escuta. Educar deveria ser um ato de libertação — partir da experiência concreta de cada sujeito e reconhecê-lo como portador de saberes. Giroux, Apple e Arroyo insistem:

é preciso uma pedagogia crítica, intercultural, que transforme a escola num espaço de escuta e diálogo. No entanto, a pressão dos exames e da meritocracia converte a educação num sistema de seleção social, onde quem não se encaixa é empurrado para as margens.

Talvez o que falte seja o que Charles Taylor chamou “política do reconhecimento”: ver o outro não como desvio, mas como diferença legítima. Cada jovem traz consigo uma história que deveria ser ponto de partida, não obstáculo. Espera um educador que escuta, que se aproxima com curiosidade, abre a possibilidade de reconstruir laços. Gimeno Sacristán lembrava que o currículo é uma construção cultural e política — e repensá-lo é repensar o olhar sobre quem aprende.

Arroyo, Apple e Taylor

Falar de esperança

Falar destes jovens é também falar de esperança. São eles que, muitas vezes, percebem com mais lucidez as contradições da escola e da sociedade. A sua rebeldia, o seu silêncio, o seu humor, as suas formas de expressão são formas de resistência e pedidos de atenção: “não me vês”. Reconhecê-los é o primeiro passo para humanizar a escola. Educar é um ato de fé no outro — acreditar, como dizia Freire, que “ninguém é, se proíbe que os outros sejam”.

Talvez esta descoincidência seja, afinal, uma oportunidade: o espelho que nos obriga a repensar o que fazemos em nome da educação.

Quando a escola se abre à pluralidade de vozes e histórias, o desencontro transforma-se em encontro. E é nesse encontro — imperfeito, vivo, humano — que a educação resgata o seu verdadeiro sentido.

Outros caminhos para os jovens que a escola não vê

A escola não sabe acolher os jovens que não pode escolher — e, no entanto, é por eles que ela mais deveria existir. Mas… são criativos, intensos, impacientes e intolerantes à hipocrisia dos discursos; e quando se afastam, a escola chama-lhes “desajustados”. Mas o desajuste não está neles: está no modelo que insiste em ser igual para todos, medindo diferenças com a régua da norma.

Por isso, tornam-se urgentes os projetos alternativos: escolas de segunda oportunidade, percursos profissionais, iniciativas da sociedade civil que nascem da escuta e da proximidade. Nestes espaços, o erro é ponto de partida, o currículo adapta-se à vida, e o saber prático, artístico e afetivo tem o mesmo valor que o académico. Neles, o jovem volta a sentir-se reconhecido — e só então pode aprender.

Mas porque é que estas experiências quase nunca acontecem dentro da escola?

Talvez porque a instituição se tornou prisioneira da sua própria burocracia, sufocada por metas e exames que deixam pouco espaço para a relação. Ou porque há medo: medo de admitir que o currículo é injusto, de abrir lugar ao imprevisto, de perder o controlo. Os projetos alternativos mostram que a educação é, antes de tudo, uma relação.

Que ensinar é escutar, criar sentido e reconhecer o outro como legítimo.

O desafio é que estas experiências deixem de ser exceções e inspirem o sistema. Se imiscuam no sistema. Se institucionalizem.

Educar é um ato político: ou se está do lado da norma que exclui, ou do lado da esperança que reinventa. Estes jovens não são um problema — são um espelho. Mostram-nos tudo o que a escola ainda pode vir a ser: um espaço vivo, aberto e profundamente humano.

EDITADO NSF – Título, Subtítulos, destaque e Imagens.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.