Mekhloufi
OPINIÃO – Os grandes atletas e os compromissos de cidadania
10/11/2024
Por Carlos V. Ribeiro | Editor
No Liceu Descartes, em Antony na periferia sul de Paris, onde realizei os meus estudos do ensino secundário, o meu melhor amigo, Said, era um argelino. Tanto ele como eu recusávamos adquirir a nacionalidade francesa. Ele praticava Viet-Vo-Dao, eu judo. Ele era anarquista e eu trostkista, divergíamos sobre as teses de Mikhail Aleksandrovitch e de Léon, mas agíamos sempre em sintonia quando se tratava de lançar uns cocktails molotov sobre os grupos da extrema-direita, como a Ordem Nova, às portas do liceu. Por vezes cedíamos num ou noutro argumento teórico nas questões ideológicas, mas havia um terreno no qual a nossa oposição era radical e absoluta. Para Said o melhor jogador do mundo era o argelino Rachid Mekhloufi, para mim, apesar de sportinguista, era Eusébio da Silva Ferreira, o pantera negra,
Rachid Mekhloufi
Numa primeira fase os argumentos eram de natureza futebolística, ou seja, a arte do drible, de assistir, de defender, de rematar, de ler o jogo e a sua dinâmica, de jogar com a equipa apesar do estatuto de vedeta.
Mais tarde quando Said me relatou a história do “futebolista revolucionário” que deu títulos à França, campeonatos e taças aos verdes do AS Saint Etienne, rendi-me à evidência. Mekhloufi empenhou-se pessoalmente na luta pela independência da Argélia e integrou a famosa equipa de futebol da FNL–Frente de Libertação Nacional. Em abril de 1958, com mais 6 jogadores que participavam no Campeonato de França de futebol, saiu clandestinamente para a Tunísia onde foi organizada equipa de futebol da FNL que serviu de propaganda à causa da independência do país colonizado pelos franceses.
Durante quatro anos 12 jogadores profissionais argelinos percorreram inúmeros países em péssimas condições, por vezes em autocarros velhos sem grandes apoios locais e disputaram 91 jogos amigáveis, nos países de Leste, na China, no Vietnam, contra grandes equipas como o Estrela Vermelha de Belgrado. Uma saga que só terminou em 1962 com a declaração de Independência resultante dos Acordos de Evian.
Conhecemos outros nomes de desportistas que nunca cederam na sua condição de cidadãos e que não se deixaram paralisar pelo discurso da separação da política e do desporto. Sabemos, no entanto, que a propaganda em torno das questões do nacionalismo está bem presente nos pódios das atuais provas internacionais. Quando a bandeira de Israel sobe no mastro e a bandeira russa, banida, é substituída por outra como o da IJF no judo, percebemos que o genocídio do povo palestiniano pode ter, nem que seja indiretamente, eco nos pavilhões desportivos.
Mekhloufi faleceu no passado dia 8 de novembro. Tenho a certeza que o Eusébio, um jogador com grande coração e generosidade, não se importaria que se declarasse que o goleador artista argelino como sendo o maior jogador de futebol do seu tempo, considerando e valorizando o que se passou no retângulo e fora dele.
Carlos V. Ribeiro