Madame Triães
Ou como os adeptos da assimilação e da integração forçada de culturas deveriam ir dar uma volta ao bilhar grande
A cultura de quem acolhe [1]
Poucos dias depois de termos chegado à Gare de Austerlitz em outubro de 1964 e termos transitado pela Rue des Archives em Paris fomos viver para Viry Châtillon, uma localidade a sul da capital francesa.
Tínhamos a indicação que uma família francesa com origens remotas numa região do Norte de Portugal vivia nas redondezas e fomos conhecer a Madame Triães que se recordava de algumas palavras da língua de Camões que o seu avô lhe ensinara. Combinámos que no dia seguinte seríamos acompanhados pelos dois filhos mais novos na ida para a escola onde seríamos apresentados como “crianças portuguesas acabadas de chegar”.
À hora combinada lá estávamos à entrada da porta, receosos por tudo que iria acontecer numa escola na qual não conhecíamos ninguém e onde falar português não era de todo uma maneira eficaz para comunicar com os outros.
Na verdade, estávamos um pouco adiantados e pudemos observar algo de inédito nos preparativos matinais de quem ia sair para a escola. A partir de um lavatório no qual corria água quente a Madame Triães com uma luva de banho que passava pela cara e pelo pescoço dos filhos estava a dar-lhes um banho rápido que concluía com uma boa dose de água-de-colónia que espalhava abundantemente nos cabelos desordenados.
Fomos para a escola e perguntámos se no dia seguinte poderíamos contar com eles para irmos aprendendo o caminho. Assim, no dia seguinte, repetiu-se integralmente a cena dos banhos de lavatório e do perfume de camuflagem, cena aliás que teve uma edição regular até ao final da semana.
Falámos com a nossa mãe e confessámos-lhe a nossa surpresa pelo facto dos franceses não tomarem banho de manhã e usarem expedientes esquisitos para esconder a sua falta de higiene. Claro que nos foi pedido para não comentarmos com ninguém estes hábitos da população local que usava o “gant de toilette” com arte e engenho como ninguém.
Hoje percebemos a importância de não ter sido obrigatório, naqueles tempos, aprender simultaneamente a língua de Voltaire e a técnica matinal do gant de toilette.
Carlos V. Ribeiro
Foto de destaque © Gerald de Bloncourt – Gare de Austerlitz nos anos 60 com imigrantes portugueses.