A Primeira Deportação
Algarve, século XXI. O mar já não trazia ouro, pimenta ou canela. Trazia marroquinos
por Tiago Silva, professor dos ensinos básicos e universitário
Sonhei que estava na caravela de Colombo. Não por vocação marítima, mareio-me na fila da balsa para a Trafaria, mas porque os sonhos têm esta crueldade de nos dar responsabilidades para as quais não estamos preparados. Não era navegador nem cartógrafo, isso são profissões que exigem destreza, estudo ou paciência – era “braço direito”. Um cargo inventado para quem quer o prestígio do poder sem a chatice das culpas. A minha principal função era encostar-me à amurada, copo de vinho na mão e dizer coisas tão úteis como: “Meu Capitão, se calhar é melhor virar um pouco mais à esquerda” ou “talvez devêssemos rumar a um sítio onde não nos matem.”
Chegámos às Antilhas, o que, para quem vinha de Palos de la Frontera é como chegar a Espinho vindo de Massamá: semelhante distância moral, mas com mais calor e menos procissões. A praia, de areia fina e mar azulíssimo, estava povoada por ameríndios que nos receberam com a hospitalidade de festa da aldeia: sorrisos abertos, frutas nas mãos e a educada curiosidade de quem ainda não foi apresentado às doenças europeias. Um deles, com um espanhol de fazer corar certos deputados da nossa Assembleia, perguntou:
— Vieram só homens?
— Sim, só homens. Porquê? — respondeu Colombo, imaginando que ia receber um cabaz de boas-vindas.
— Então vão-se embora. Deportados. Aqui não aceitamos desembarques de machos armados sem mulheres nem crianças.
Colombo ficou imóvel. Eu, por dentro, já me ria: era a primeira deportação da História e não houve tempo sequer para uma lei orgânica. O resto, como se sabe, não foi tão engraçado. Quando os conquistadores chegaram, havia — dependendo da fonte — cerca de setenta milhões de indígenas nas Américas. Um século e meio depois, restavam pouco mais de três milhões e meio. Em certas regiões, como entre Lima e Paita, a população passou de dois milhões para quatro mil famílias em menos de dois séculos. Quatro mil famílias! Número que, como sabemos, em Lisboa mal chega para encher um centro comercial num sábado à tarde. Mais espantoso é que, perante esta hecatombe, o arcebispo Liñán y Cisneros tenha declarado que os índios “se escondiam para não pagar tributos”. Talvez fosse isso: fuga ao fisco em larga escala. Ou talvez fosse a impossibilidade de pagar quando já não havia vivos suficientes para contar moedas. Havia, claro, leis de “proteção” impecáveis, dignidade no papel, servidão na prática. A mesma destreza legislativa que ainda hoje nos assiste: decretos impecavelmente redigidos, aplicados com o entusiasmo de quem prefere não estragar o verniz.
E já que falamos de travessias forçadas, passemos do Caribe ao Atlântico Sul. Nunca nos ensinaram na escola, mas em 1840 a maior cidade negra do mundo não ficava em África: chamava-se Rio de Janeiro. Não era Lagos, nem Luanda, nem Cartum — era a capital imperial brasileira, feita de ruas, igrejas e senzalas. Um feito digno de manual, obtido com a simplicidade habitual: arrancar milhões de pessoas das suas terras, separar famílias, vender crianças, empilhá-las em porões de navio com menos espaço do que um voo low-cost em promoção. Depois, no destino, trabalho até ao colapso. Curioso: quando vinham involuntariamente, a logística era impecável. Navios prontos, rotas calculadas, economia florescente. Agora, quando vêm voluntariamente, fugindo de guerra e fome, “não há condições”. Talvez seja isso: a História prefere passageiros sem bilhete de volta.
O sonho deu então um salto no tempo e no mapa: Algarve, século XXI. O mar já não trazia ouro, pimenta ou canela. Trazia marroquinos. E, ironia das urnas, a terra que mais votou num partido chamado Chega queria que eles… partissem. É o primeiro partido que transforma o próprio nome numa ordem de expulsão. Observei os recém-chegados. Tinham a expressão serena de quem ainda não percebeu a especialidade da casa. Não sabiam que aterrar no Algarve com passaporte estrangeiro, mas sem um tostão no bolso, é como entrar num bar de província vestido de drag queen: ninguém diz nada, até alguém dizer. No sonho, tentei consolá-los: ser deportado não é o fim. Colombo foi, e acabou com feriado em seu nome. Quem sabe, daqui a quinhentos anos, haja um Dia Nacional do Marroquino, com ranchos folclóricos a dançar ao som de castanholas.
Mas acordei antes do desfecho. Fiquei apenas com a sensação de que a História é como o mar: repete-se em ondas, sempre com a mesma espuma, mas tingida de cores diferentes. E que, em qualquer século, há sempre quem receba o estrangeiro com um sorriso nos lábios… e a mão já a apontar para a saída.

Tiago Silva, Professor

O “Descobrimento da América” refere-se à chegada de Cristóvão Colombo à América em 12 de outubro de 1492, a serviço da Espanha.