3 de Outubro, 2025

Lisboa, entre moedas falsas e figurinhas de feira

Lisboa tem a estranha mania de se apaixonar por ilusionistas

DOSSIÊ NSF AUTÁRQUICAS 2025 [2]

por Tiago Pereira da Silva

Lisboa só continua a ser Lisboa porque milhares de homens e mulheres vindos de longe a sustentam, enquanto são tratados como problema em vez de solução

Lisboa vai a votos, mas a cidade respira como um porão húmido, escondendo atrás das fachadas caídas a ferrugem que corrói por dentro. O espetáculo é previsível: vaidades recicladas, promessas que cheiram a mofo, candidatos que desfilam como manequins gastos. Os lisboetas observam com raiva contida, sabendo que a cidade que habitam não é a das luzes e congressos, mas a dos becos onde o lixo se acumula, dos prédios onde a renda asfixia, dos autocarros que nunca chegam. Lisboa é vendida em fatias a turistas e investidores anónimos, enquanto o que resta da vida quotidiana se esfarela como reboco velho a cair das paredes.

É uma cidade transformada em montra cintilante, mas por baixo — nas caves, nos becos, nos bairros que resistem — pulsa aquela que é a verdade para muitos alfacinhas: uma comunidade exausta, empurrada para a margem, a tentar sobreviver à encenação permanente.

Por um lado o engenheiro  Moedas, com o seu sorriso de gestor europeu e ar de ilusionista, ocupa o palco com a destreza de quem sabe que a política, em Lisboa, se faz sobretudo de aparências. Ciclovias que outrora eram pecado mortal são hoje proclamadas como troféus; a higiene da cidade, que nunca se cumpre, é convertida em liturgia de desculpas: culpa do funcionário, culpa do cidadão, culpa até da meteorologia. Nunca dele. Mas eventos? Aí, o talento floresce. Web Summit, Jornadas Mundiais da Juventude: Lisboa transfigurada em passarela internacional, paga pelos contribuintes e usufruída por forasteiros de ocasião.

Moedas é desse populismo perigoso: o que não grita, o que não se suja com insultos; o que se mascara de moderação e eficiência, enquanto pratica a mais insidiosa das artes, a do ilusionismo urbano. Reivindica obras que não fez, renega projetos que depois reaproveita, o mesmo que há quatros anos falava de fantasmas para desacreditar ciclovias. E há ainda a estratégia mais velha da direita envernizada: o fantasma da extrema-esquerda.

Moedas treme teatralmente perante o perigo bolchevique, como se Lisboa fosse Petrogrado em 1917, quando, como sabemos, o que verdadeiramente ameaça a cidade é a especulação que ele próprio acaricia, as rendas que expulsam famílias, a mobilidade que nunca chega.

É o truque de ilusionista que distrai o público com o monstro vermelho para melhor ocultar a sombra real: a cidade a ser desmantelada e vendida peça a peça. E quando se trata de imigrantes, Moedas usa o mesmo registo envergonhado de quem não sabe de que lado da História se encontra. Insinua perigos, sugere desordens, fala de fluxos como se falasse de cheias ou de pragas, nunca de pessoas. Esquece-se, ou prefere esquecer-se, que Lisboa precisa dos imigrantes mais do que nunca: são eles que conduzem os autocarros que ainda restam, que limpam os cafés, que servem os turistas, que cuidam dos velhos que o Estado abandonou.

Lisboa só continua a ser Lisboa porque milhares de homens e mulheres vindos de longe a sustentam, enquanto são tratados como problema em vez de solução. É a ironia cruel desta governação: a cidade que se proclama cosmopolita e aberta recusa o seu próprio coração pulsante, preferindo o postal turístico a preto e branco, embalado em fado para consumo rápido.

Do outro lado, o Partido Socialista oferece-nos Alexandra Leitão. Não sabemos ainda se será politicamente relevante, mas sabemos que é competente, sólida, capaz de pensar num país onde a política tantas vezes se degrada em espetáculo de feira. Falta-lhe, por ora, o fogo e a ousadia que Lisboa exige, a chama que transforma um discurso bem escrito numa causa capaz de mobilizar multidões. Mas não lhe falta outra coisa: a coragem de ser mulher, socialista e candidata num tempo em que Portugal parece inclinar-se perigosamente para o conforto de um conservadorismo machista e cinzento. Só por isso, a sua presença já significa uma resistência, um gesto político que merece ser reconhecido. Lisboa não precisa de relatórios, é certo; precisa de combate, de rasgo. Mas precisa também de quem lembre que a política pode ser feita sem histrionismo, sem insulto, sem testosterona raivosa. Alexandra Leitão encarna esse outro modo de estar: discreto, sim, mas não menos necessário.

Nos cantos do tabuleiro surgem vozes que se querem alternativas. João Ferreira insiste, com uma urgência que parece anacrónica mas é profundamente necessária, na habitação como direito. Talvez aí se concentre a questão essencial da vida lisboeta. Só que, numa capital convertida em parque temático para milionários e nómadas digitais, essa insistência soa mais a pregação num deserto do que a discurso político com hipóteses de vingar. Mas convém não confundir solidão com irrelevância. Oito anos de experiência na Câmara não se apagam, e quem olhar com seriedade para os três principais candidatos percebe que Ferreira é, possivelmente, o mais preparado de todos. Os preconceitos que a máquina do PCP inevitavelmente lhe cola à pele não devem enganar: se há candidato com domínio dos dossiers, visão estruturada e coragem para enfrentar os problemas centrais da cidade, é ele. Só quem anda verdadeiramente distraído com a política nacional é que não vê.

Bruno Mascarenhas, no Chega, aparece travestido de moderado e se tal comparação se sustenta é apenas porque o seu partido normalizou o grotesco. Adelaide Ferreira, no ADN, é caricatura de si própria: candidata de feira, mascote ruidosa de um discurso que há uma década seria motivo de embaraço e hoje rende aplausos fáceis.

E enquanto tudo isto se encena, a Lisboa que amanhece, como nos cantava Sérgio Godinho, já não aguenta mais.

Tornou-se mercado imobiliário para milionários sem vínculo, miragem inalcançável para jovens que fogem, resistência precária para velhos empurrados para fora. O preço de um quarto rivaliza com o de um apartamento em algumas capitais europeias. O executivo de Moedas, entretanto, assobia para o lado, como se o mercado fosse deus redentor, quando na verdade é o verdugo.

Na mobilidade urbana, a hipocrisia repete-se. Lisboa permanece refém do automóvel, com transportes públicos lentos, caros e insuficientes. As ciclovias são corredores interrompidos, mal ligados, percursos inseguros que servem por vezes de vitrine do que de alternativa. Quem não tem carro, vive penalizado e o discurso oficial insiste em chamar a isto progresso. Eis, portanto, o retrato destas eleições: de um lado, um populismo suave, perfumado, de fato Armani; do outro, um folgo socialista que ainda não lida bem com o passado. Pelo meio, vozes que ousam falar de casas, de transportes, de qualidade de vida, mas que raramente conseguem furar o ruído ensurdecedor da propaganda turística.

Lisboa merecia mais. Merecia ser habitável, limpa, dotada de transportes funcionais e de habitação a preços de vida, não de luxo. 

Os lisboetas irão decidir. Convém, porém, que o façam com plena consciência: cada mandato perdido é mais um degrau descido na escada da desigualdade, da carestia e da insustentabilidade. Nenhuma Web Summit nos salvará disso, nenhum Papa, nenhum congresso reluzente. Lisboa tem a estranha mania de se apaixonar por ilusionistas. Uns vendem-na como startup unicórnio, outros como postal de Alfama comprado à pressa no aeroporto. Todos esquecem que a cidade é feita de gente e não apenas de cenários.

 Tiago Pereira da Silva

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