AMBIENTE E ECONOMIA | DOSSIÊ – Parte 2
A AGRESSÃO AO PLANETA (II)
No meu texto precedente refiro a certa altura que “se ultimamente se começou a debater a necessidade de pôr de lado as energias fósseis, o que é certo é que não se tem colocado em causa a organização económica que predomina no planeta e a sua ideologia de crescimento. Bem pelo contrário é à exaltação das pretendidas capacidades tecnológicas das empresas para fazer face aos problemas que se defrontam – nomeadamente recorrendo ao “esverdeamento” (greenwashing) – que mais se recorre.”
Recentemente, pouco antes do início da COP26, o Presidente da República Francesa apresentou o seu plano “France 2030” no qual aposta, face ao problema climático, em “hipotéticas revoluções tecnológicas de preferência a evoluções sociais e culturais”. Em particular espera que um primeiro avião movido a baixo teor de carbono esteja operacional até ao final da década, e que o mesmo se aplique à disponibilidade de hidrogénio “verde”, a pequenos reactores nucleares modulares e à produção de dois milhões de veículos eléctricos e híbridos. No seu plano não há referências à sobriedade e à agroecologia, o modo de fazer face aos problemas ecológicos sendo, fundamentalmente, o recurso a uma transição tecnológica. Nessa perspectiva, “nenhuma evolução sociocultural e nenhuma transição para modos de vida que recorram menos à energia é apresentada como necessária ou desejável, a inovação e a tecnologia permitindo manter sem mudança as habituais maneiras de viver e eliminando todos os inconvenientes que lhes têm estado associados.”[1]
António Costa e Silva, recentemente incumbido pelo governo português de elaborar uma “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica do País” referiu em Fevereiro do corrente ano, numa entrevista[2] que então concedeu, que “temos um paradigma cultural muito baseado no totalitarismo do consumo” pois “somos extremamente consumistas e estamos direcionados para o consumismo”. Refere a esse propósito que “transformamos recursos em lixo a uma velocidade brutal” e “consumimos [em Portugal] mais 30% de energia do que toda aquela de que precisamos”. E a União Europeia, com os seus 500 milhões de habitantes, produz por ano 4 mil milhões de toneladas de lixo, lixo esse que depois (presume-se que parcialmente) é enviado para a Ásia contra pagamentos aos Estados que o recebem. Outra parcela de lixo (com destaque para os plásticos) é depositado no oceano, o que é letal para todas as cadeias alimentares. Assim, refere ainda Costa e Silva, no ano 2000, as emissões de CO2 no planeta eram de 25 mil milhões de toneladas, 5 vezes superiores ao que se verificava 50 anos antes. E em 2019 esse valor já havia subido para 35 mil milhões. Do ponto de vista económico, temos crescido sem parar sem se ter em atenção que há um tecto ecológico, que é o tecto imposto pelo sistema terrestre. Fazem-se conferências, discute-se sem parar, nada mudando em termos do modelo de desenvolvimento económico e do modelo de consumo dos cidadãos. E, aqui acrescento eu, vemos no nosso país o actual governo preocupado com a recuperação económica pós-pandemia e a referir com frequência a necessidade de preparar o crescimento económico para os próximos anos.
Costa e Silva faz ainda referências importantes a outros aspectos da agressão ao meio ambiente e que conduzem à desertificação (em particular os avanços no Sara, mas também no Alentejo e no Algarve), à perda de gelo no Polo Norte (com a subida do nível do mar) e às ameaças sobre a tundra ártica (se o seu solo gelado for aquecido, emissões brutais de anidrido carbónico e metano terão lugar). Essa agressão, como se depreende das preocupações que têm sido veiculadas nas COPs, não é só a que deriva da invasão dos lixos. Os aumentos de temperatura que se têm verificado são essencialmente devidos às emissões de gases com efeito de estufa (GEE) – nomeadamente o metano e o CO2 – as quais não deixam de aumentar face às produções de energia com base no carvão, no petróleo e no gás. Costa e Silva diz que “vivemos com a ideia errada de que se vai encontrar uma solução dentro do modelo actual” e a seguir refere que “temos que diminuir em 40% o consumo de carvão e em 15% o de petróleo, e aumentar em 40% o consumo de energias renováveis”. Mas isso será suficiente? A COP26 teve o seu final a lastimar que não houvesse os necessários compromissos para que o carvão fosse completamente posto de lado nas próximas duas décadas. De qualquer modo, a ocorrer a sua substituição e a do petróleo pelas energias renováveis, conforme o gestor acha necessário, ela não se revelará insuficiente, significando que os lixos irão continuar a agredir o planeta? E como vão reagir os oceanos em particular à continuação deste tipo de agressão?
Já acima foi feita referência aos plásticos como lixo que inunda os oceanos e à sua letalidade para as cadeias alimentares. Podemos ainda pensar em tudo o que vai incluído nas águas residuais, tanto domésticas como as da generalidade das actividades económicas, dando talvez destaque em termos de importância às de origem agrícola, cujo conteúdo mais prejudicial será o que resulta da utilização de adubos. Mas o lixo mais nocivo para os oceanos parece ser os próprios GEE, nomeadamente o CO2, o qual é absorvido pelas águas e tem levado a que o oceano se tenha tornado actualmente 30% mais ácido do que há cerca de 250 anos. Essa acidificação tem consequências dramáticas para toda uma série de espécies marítimas, em particular para certas espécies de plâncton, para os corais, para as ostras e para os mexilhões. Mas a própria absorção de CO2 pelo oceano – que até agora tem permitido evitar que ele se acumule em maiores quantidades na atmosfera, e que o aquecimento global não avance ainda mais rapidamente – tende a ser prejudicada pela própria subida da temperatura das águas, aumentando assim o círculo vicioso de aquecimento do planeta (de facto, sem as interacções do oceano com a atmosfera, o calor já seria certamente insuportável em muitas regiões do planeta). O que estará longe de ser o único inconveniente de todo este processo porque o oceano, ao aquecer, aumenta de volume, efeito que se vai acrescentar ao processo do degelo, e contribuir para que o nível do mar suba 1 metro ou mais até 2100, com consequências extremamente gravosas para as vastas áreas litorais e muito em particular para várias ilhas oceânicas. Por outro lado, tendo-se acumulado nos metros mais superficiais do oceano, nos últimos 30 anos, “energia similar a cerca de mil milhões de vezes a energia deflagrada pelas bombas atómicas de Nagasaki e de Hiroshima … é uma bomba ao retardador que temos no oceano”, com os cientistas a não saberem hoje “quais os mecanismos que levam esta energia a libertar-se para a atmosfera e a criar fenómenos climáticos extremos: os tufões, os ciclones, com toda a devastação que daí deriva.”[3]
No concernente ao crescimento económico – que, na generalidade dos países que têm marcado presença nas COPs, os respectivos governos não têm parado de procurar promover – muito haverá a dizer que evidenciará as claras contradições com os objectivos que tais países têm considerado no domínio ambiental. Observar-se-á em primeiro lugar que esse crescimento económico não tem deixado de beneficiar, cada vez mais claramente desde o início dos anos 80 do século passado, as classes mais abastadas, enquanto os mais pobres (e mesmo parcelas significativas das classes médias) têm visto os seus rendimentos estabilizar ou mesmo reduzirem-se desde então. E não faltam estudos que tenham evidenciado a aceleração nestes últimos anos (e mesmo com maior vigor após o início da pandemia com que actualmente nos defrontamos) de tais desigualdades. Por outro lado, essas classes mais abastadas são as que mais emitem – e de longe – CO2. Assim, os 10% mais ricos do planeta emitiam, em 2019, 47,6% do total de CO2 envolvido (uma média por habitante de 31 toneladas) contra apenas 12% dos 50% mais pobres (média de 1,6 toneladas). O que significa que os 40% do estrato populacional entre uns e outros teriam emitido 40,4% do total de CO2 (média por habitante de 6,8 toneladas, valor próximo da média do conjunto da população: 6,6 toneladas). Como cada habitante integrado nos 1% mais ricos emitia em média 110 toneladas de CO2, essa pequena parcela populacional era, só por si, responsável por cerca de 17 % das emissões. Em termos de repartição geográfica, é de assinalar que a América do Norte tinha uma emissão de 20,8 toneladas por habitante (contra, conforme já referido, uma média mundial de 6,6). As estimativas relativas aos 10% mais ricos, indicam, por outro lado, 39 toneladas para a China, 34 para o Médio Oriente e 29 para a Europa (valores que se aproximam da média mundial, 31 toneladas), o que, dada a percepção que se tem do desenvolvimento das restantes áreas geográficas, deixa perplexo sobre os valores que se atingirão na América do Norte (e, em particular, nos 1% superiores). [4]
2 toneladas de CO2 será o valor de emissões por habitante que se pretende seja em França o máximo registável em 2050 para que o aquecimento global possa ser controlado. Ora um voo de ida e volta Paris-Nova York implica na actualidade, por si só, 1 tonelada por passageiro. Qualquer indivíduo com consciência ecológica não deixará para já de colocar em questão os seus eventuais desejos de prospecção turística que requeiram viagens aéreas. A esse propósito o Le Monde acaba de publicar um artigo em que descreve as inquietações de estudantes e professores em escolas de engenharia sobre o futuro da aviação neste mundo em ebulição. É uma situação que já se havia revelado em 2020, altura em que o mesmo Le Monde havia publicado um texto em que 710 estudantes do sector da aeronáutica defendiam reconversões industriais e uma redução do tráfego aéreo. Mais actualmente, um professor em aerodinâmica refere-se à situação dizendo que “os estudantes sentem uma forma de depressão existencial numa altura em que, para uma parte da população, não há nada de mais grotesco do que pôr aviões no ar e enviar foguetões para o espaço”. O mesmo professor dá por outro lado relevo à inquietação que manifestam os futuros empregadores de tais estudantes: “Se os seus futuros quadros começam a dizer que é preciso pôr um fim ao tráfego aéreo e passam à permacultura, isso equivale a desmontar os aeroportos e a reactivar as diligências”. E: “Mas a elite que nós formamos tem uma responsabilidade particular para com a sociedade. Se nós não inventarmos os aviões e os foguetões adequados, limpos, quem é que o vai fazer?”[5] Enfim, as revoluções tecnológicas são necessárias ao “esverdeamento” e este requer as revoluções tecnológicas.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2021
Filipe do Carmo
[1] Ver páginas 10 e 11 do Le Monde de 2021-10-13, página 13 do Le Monde de 2021-10-14 e também a crónica de Stéphane Foucart no Le Monde de 31/10 a 2/11 de 2021 (página 29). Foucart acrescenta, entre outras referências, que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita vai no mesmo sentido, anunciando que o objectivo de zero emissões do seu país será atingido até 2060 graças a uma estratégia de economia circular do carbono (tal compromisso repousando inteiramente, segundo Foucart, nas tecnologias futuras – e provavelmente imaginárias – que permitirão queimar todo o petróleo do subsolo e circularizar todo o carbono produzido).
[2] Poderei enviar o texto desta entrevista, cujo título é “Cidadãos têm que mudar o modo de vida e consumo”, se tal me for solicitado.
[3] Conforme explicitado na entrevista já referida feita a Costa e Silva. Sobre a generalidade das questões relativas ao oceano, em particular desenvolvimentos das questões abordadas acima, ver ainda 3 artigos no Le Monde: “Notre futur est intimement lié à la santé de l’océan” (2021-11-03, pág. 34), “L’océan, grand oublié da la COP26” (2021-11-05, pág. 28) e “Pendant que les pays puissants délibèrent, la mer monte” (2021-11-16, pág. 10).
[4] Veja-se por exemplo o grande título do Le Monde de 8 de Dezembro (“Comment les inégalités rongent la planète”) onde vem escrito em grandes caracteres que os 10% mais ricos do planeta se apropriam de 52% dos rendimentos, detêm 76% das riquezas e emitem 48% do CO2 mundial (isso enquanto para os 50% mais pobres os correspondentes valores são 8,5%, 2% e 12%). Veja-se também, no mesmo contexto, o que vem referido nessa mesma edição, primeiro no editorial, sob o título “Sociétés plus égalitaires, la solution est politique” (página 37), depois no artigo intitulado “Pollution: les populations les plus riches sont les plus émettrices” (página 24).
[5] Ver “Turbulences étiques dans l’aéronautique” (Le Monde de 9 de Dezembro, página 40).