EXTREMA-DIREITA |Resistir é uma obrigação
SF | 24-08-2020 | Acir Meireles convida-nos para um exercício de grande fôlego. Associar a cada uma das questões que se colocam no combate à extrema-direita uma resposta multidisciplinar integrando dimensões políticas, históricas, filosóficas e morais. Vale a pena fazer este percurso com uma tranquilidade doce, como se estivéssemos em S. Miguel, nos Açores.
Por: Acir Meireles, Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas /Cultura Medieval Portuguesa coordenador de programas regionais de educação e formação de adultos,
Tempo de separar as águas (um texto longo, mas não consegui fazer por menos)
“Se a justiça perecer, a vida humana na Terra terá perdido o seu sentido” (Kant). Algumas semanas atrás, Rui Rio admitiu que poderia chegar a um acordo de governo com o Chega, caso o partido “moderasse” as suas posições. Alguns dias depois, o Presidente do Governo Regional da Madeira escancarou a porta que Rio havia entreaberto: é um acordo sim Sr., e sem condições. A prioridade é derrotar a Esquerda, independentemente dos compagnon de route.
Social Democrata
Foi, de facto, uma surpresa para mim, pois nunca pensei que um partido que carrega no nome a denominação Social Democrata aceitasse tal tipo de coligação. Mais surpreso ainda fiquei ao constatar a rapidez com que muitos militantes, que há pouco tempo ainda traziam na boca o credo ppdpsd, aceitaram, até com uma certa naturalidade, a nova realidade. Fico a espera de um pronunciamento inequívoco do PSD Açores sobre o tema.
Um problema moral
Pessoalmente, parece-me que estou a ver um mau filme pela segunda vez. No caso do Brasil, já tinha rompido relações com muitos amigos e mais ou menos metade da família. Parece que em Portugal terei de seguir o mesmo percurso. Alguns dirão que é uma tolice brigar por motivos políticos, e têm toda a razão. Nunca rompi relações com base em tal motivação. Relaciono-me com comunistas e monarquistas e, no silêncio da urna, cada um segue o seu caminho. O meu problema com o Chega não é político, é moral. E se não estivermos dispostos a discutir nesses termos, muito perigoso vai o mundo.
Bezerro de ouro
Em se tratando de estratégia política, o Chega não apresenta nenhuma novidade. Pelo contrário, copia, como bom aluno, os seus congéneres europeus (Itália, Hungria, Polónia, Rússia) e americanos (EUA e Brasil). Também não apareceu por acaso, a qualidade da nossa Democracia pare e amamenta este bezerro de ouro. É nas nossas falhas como sociedade que eles crescem, apostando em duas estratégias principais: a identificação de um inimigo e a disseminação de mentiras. Ter inimigos dá sempre jeito, pois permite levantar uma bandeira à sombra da qual todas as outras questões, realmente relevantes e por discutir, podem descansar calmamente.
Os bodes expiatórios
De acordo com o recenseamento de 1933, o número de judeus na Alemanha era de aproximadamente 500 mil pessoas. Ou seja, representavam menos de um por cento do total da população alemã, de cerca de 67 milhões. Mesmo assim, para o partido Nazista representavam a fonte de todos os males sofridos pelos alemães. Um pouco mais a Leste, sob Estaline, não faltavam inimigos, fossem membros da classe dirigente do antigo regime, os velhos revolucionários de 1917 ou os camponeses remediados. Esta tradição mantém-se. Putin debita na conta dos seus opositores ideias homossexuais trazidas do Ocidente, enquanto em Itália e na Hungria os refugiados cumprem a função de bode expiatório. Na América, com a sua complexidade social, Trump pode ir colhendo as flores que deseja num imenso jardim que serve às suas conveniências: homossexuais, imigrantes, marxista, democratas, negros, latinos.
Programa tirado do ar
Por cá, um país que é simultaneamente Estado e Nação, o que não é muito comum na Europa, o Chega teve um pouco mais de dificuldade em encontrar uma minoria que pudesse servir de referência para os males do país. Passaram pelas suas mãos os homossexuais (o partido prega o fim do casamento gay), os pedófilos (castração química neles), desempregados, presos e beneficiários do RSI (que têm de trabalhar para merecer os serviços do Estado), os ciganos (campo de concentração durante a pandemia) e, agora, os movimentos anti-racistas. O programa do partido (que foi tirado do ar, nunca é demais lembrar) seleciona ainda outros grupos, como os marxistas, que estariam a fazer lavagem cerebral às nossas crianças, e certas seitas muçulmanas. Exercer este tipo de perseguição só é possível se sustentado por um conjunto de mentiras.
Mentiras de médio porte
O exemplo clássico são Os Protocolos dos Sábios de Sião. Publicado pela primeira vez em 1903, na Rússia, seria a ata de uma reunião secreta ocorrida em 1897, em Basileia, durante o Primeiro Congresso Sionista, contendo os planos de um grupo de judeus para dominar o Ocidente. Em 1921, o jornal londrino The Times provou que o texto era falso, tendo sido forjado por militares russos, mas o documento ainda hoje é citado por grupos radicais. Em Minha Luta, Hitler citou trechos dos Protocolos para justificar a perseguição nazista aos judeus. Mas, diferentemente dos anos 30 do século passado, já não há necessidade de grandes mentiras, como um complot judaico internacional ou um aumento da produtividade industrial superior a 100%. Com as possibilidades trazidas pelas redes sociais, as mentiras grandes foram substituídas por um conjunto daquilo que o historiador Timothy Snyder chamou de mentiras de média porte, direcionadas a públicos muito específicos e apoiadas por um marketing muito agressivo nas redes sociais.A forte influência dessas mentiras de média porte ficaram patentes nas eleições de Trump e de Bolsonaro e no referendo ao Brexit. No caso do Brasil, os apoiantes de Bolsonaro difundiram em rede a existência de um “kit gay”, que seria distribuído às crianças de todas as escolas. O tal kit, obviamente, não existia, mas foi denunciado continuamente. Enquanto Bolsonaro proclamava estar a defender a inocência das nossas crianças, Fernando Haddad, candidato do PT, tinha que desmentir diariamente que tal documento não existia, sem sucesso, diga-se de passagem. Para Bolsonaro bastava dizer que o kit gay existia, para Haddad era preciso provar que não existia. Como se prova que algo não existe? Tais mentiras de médio porte acabam por distorcer os argumentos e a colocar em causa a nossa própria capacidade de pensamento crítico.
Orwell e a novilíngua
Ainda no Brasil, frente à pandemia, o Presidente da República tem tentado vender a hidroxicloroquina como um medicamente eficaz contra o vírus. Segundo ele “não há comprovação que tem nem que não tem eficácia”, pelo que o melhor é tomar. Parece que estamos no terreno do distópico 1984, em que o idioma, denominado novilíngua, substitui o inglês padrão. Por meio de uma série de mecanismos linguísticos implementados nessa língua artificial, era possível impedir qualquer ato de revolta, pelo simples extermínio da ideia que leva à ação. Orwell sabia que havia o perigo do aparecimento de uma linguagem política que não representasse mais um pensamento comprometido com a condição humana. Pior, que as expressões pré-fabricadas, comprometessem a formação do raciocínio adequado, a energia do pensamento crítico. Coisa de ficção? Victor Klemperer, um judeu alemão, filólogo, que, quase por milagre, sobreviveu ao nazismo sem nunca sair da Alemanha, escreveu, como ato de resistência, um diário (infelizmente nunca publicado em Portugal). Ao analisar a linguagem do Reich, que ele batizou de Lingua Tertiii Imperii, ele chama a atenção de como o alemão estava a ser adulterado e corrompido, com as palavras a serem utilizadas como “minúsculas doses de arsênico”, inoculadas “na carne e no sangue das massas”. Entre as adulterações semânticas e morfológicas, Klemperer nota a ampliação do uso do prefixo “ent-”, que indica o seu contrário, como em entdunkeln (des–obscurecer) ou entbittern (des-amargar). O prefixo lembra a tentativa da novilíngua de formar palavras a partir do seu oposto: “desbom” (ungood) para ruim ou “despessoa” (unperson) para designar pessoas desaparecidas, cujo registro é apagado da história.
Chega de quê?
As palavras e a gramática são fundamentais na estruturação da nossa capacidade de raciocinar. Em 1984, a novilíngua sustenta o duplipensar, que associa conceitos antagónicos: “Guerra é paz! Liberdade é escravidão! Ignorância é força!”. Ou, num exemplo mais caseiro: Segurar uma faixa a dizer não há racismo em Portugal ao mesmo tempo que se faz uma saudação nazi. Eleger inimigos e fabricar mentiras é essencial aos partidos de extrema-direita como o Chega, pois a sua sustentação política tem por base um perpétuo confronto. Um confronto seletivo, obviamente. Assim, para o Chega o principal problema de Portugal, pelo menos nas últimas semanas, parece ser o facto de algumas pessoas considerarem que existe racismo entre nós, o que merece que se efetuem mobilizações. Orwell poderia ter colocado algo parecido no seu romance e não ficaria desenquadrado. O próprio nome do partido – Chega – é um convite ao combate. Chega de quê? Vai colocar o quê no lugar? Sem confronto o que sobra ao Chega? O seu programa, que, de resto, volto a frisar, eles suprimiram da consulta pública. E o que diz o seu programa? Coisas como “Ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte.” Ou seja, o Chega propõe o fim do Sistema Nacional de Saúde e da Escola Pública, não por acaso os dois grandes setores públicos ainda não capturados pelos serviços privados. Não há nisso nenhum pecado, o partido é livre de apresentar tais propostas e vota nele quem quiser. O problema é que, ao invés de defendê-las publicamente, ele a camufla sob o manto diáfano do eterno combate por causas escolhidas ao sabor do marketing político.
Os esquecimentos de Ventura
No passado dia 21 de agosto, a comunicação social divulgou a nova moção de André Ventura: colocar os beneficiários do RSI a fazer trabalho comunitário. É uma proposta que sintetiza bem o seu partido em termos de fabricar inimigos, criar mentiras e encobrir interesses. Dizer que os beneficiários do RSI têm de prestar serviço comunitário deixa implícita a ideia de que os mesmos não trabalham, ou seja, comem o pão sem o suor do seu corpo. André Ventura “esqueceu” de dizer que como o salário mínimo é muito baixo em Portugal, há famílias que trabalham mas necessitam do RSI para não cair na extrema pobreza. André Ventura “esqueceu” de dizer que os beneficiários que não trabalham são obrigados a inscrever-se nos centros de emprego, pelo que estão disponíveis para um emprego. André Ventura “esqueceu” de dizer que se o serviço comunitário é tão importante, então os beneficiários poderiam ser contratados para realizá-lo, deixando assim de necessitar desse apoio. André Ventura “esqueceu” de dizer que o valor médio das prestações do RSI é de 116,93€ por pessoa e 263,25€ por família, sendo com esse valor que os preguiçosos vivem sem precisar de trabalhar. André Ventura “esqueceu” sobretudo de comparar o que o Estado despende com os beneficiários do RSI e o que gasta com a banca. Segundo os dados disponíveis do Banco de Portugal, as despesas totais com as intervenções para apoio ao sistema financeiro ascenderam a 19.923 milhões de euros, entre 2007 e o final de 2017. No mesmo período, segundo dados da Segurança Social, os custos com o RSI foram de 4.203 milhões de euros. A banca, por conseguinte, custou ao país quase 5 vezes mais do que os pobres.
Não são verdades
Tanto “esquecimento” é estranho, considerando ser André Ventura consultor fiscal da Finpartner, uma empresa do universo da sociedade de advogados Caiado Guerreiro, especializada no aconselhamento fiscal, aquisição de vistos gold e imobiliário de luxo. É uma área que ele conhece bem, pois trabalhou na Autoridade Tributária, antes de vender os seus serviços aos privados. É esse o político que, segundo consta, diz verdades que os outros não dizem. Os outros não dizem pelo simples motivo de que não são verdades.
O caso Dreyfus
Um exemplo histórico de como a mentira e a irracionalidade podem dividir uma sociedade é o caso Dreyfus. Em França, no século XIX, o capitão Alfred Dreyfus foi acusado de espionagem e de entregar documentos secretos aos alemães. Para complicar as coisas, Dreyfus era judeu e, por ser da Alsácia, falava francês com sotaque alemão. No decorrer do processo, quando foi progressivamente ficando clara a sua inocência, uma parte da imprensa e do Exército passou a mentir sistematicamente. Todas as evidências existentes a seu favor foram refutadas, ainda que utilizando argumentos irracionais. A França, literalmente, dividiu-se em duas metades: a dos que apoiavam a sua condenação, em que circunstância fosse, em nome da razão de Estado, e a dos que argumentavam haver princípios superiores à honra nacional, sendo um deles a obrigação do Estado de aplicar a lei de forma equânime, qualquer que fosse a religião do cidadão. Tal como o caso Dreyfus, um caso judicial na sua essência, dividiu a sociedade francesa, agora a existência ou não de racismo ou de uma massa de vagabundos que não querem trabalhar aparenta dividir Portugal, gerando desavenças entre pessoas que nem sequer sabiam que discordavam entre si.
Os meios e os fins
Na verdade, esta divisão já pré-existia, faltava apenas acender o pavio. E, pavio acesso, o PSD começou a fazer contas à vida. Tal como o D. Fabrízio de O Leopardo, Rui Rio deve achar que consegue ceder alguma coisa para que tudo fique como está, ou seja, um acordo com o Chega, fazendo uma concessão aqui e outra ali, mas no interior do mesmo sistema, só que agora com ele como Primeiro Ministro. É um mau cálculo político e um ato imoral. A história já deu provas de que, uma vez aberta a porta à barbárie, ela tende a instalar-se e a mandar na casa. As classes dirigentes alemães que apoiaram Hitler encarando-o como um meio para atingir um fim, acabaram por ser engolidas por ele, com o Nazismo a apropriar-se de todo o aparelho do Estado, Exército inclusive. Mas mesmo que assim não fosse, colocar-se-ia sempre a dúvida ética. Rui Rio, que domina a língua alemã, deveria aproveitar para ler Kant e descobrir, por essa via, que fins que justificam meios não são um imperativo moral. Pelo contrário, seguindo o imperativo categórico, o que nos cabe é fazermos o bem, sem nos reportarmos a qualquer fim. E se dúvidas há sobre o que é esse bem, Rui Rio que não se preocupe, pois Kant bem o explica: “Sem nada ensinarmos de novo à razão comum, não temos necessidade senão de chamarmos a sua atenção para o seu próprio princípio, à maneira de Sócrates, mostrando desse modo que não há nem de ciência nem de filosofia para que cada qual saiba o que tem de fazer para ser honesto e bom”, e que “o conhecimento do que cada qual está obrigado a fazer, e por conseguinte também a conhecer, encontra-se ao alcance de quem quer que seja, até mesmo do mais comum dos homens”. E caso a filosofia não baste aos militantes do PSD, e já agora também do CDS, eles que ouçam Mestre Eckhart, que afirmava preferir estar no Inverno com Deus do que no céu sem ele.
O rinoceronte
O José Matildes que Agustina Bessa-Luís tão bem descreveu no seu Os Meninos de Ouro, não tem necessariamente que deixar o mundo da ficção: “O país estava preparado para o receber, o seu fundo messiânico encontrava um terreno propício porque, entretanto, o código da revolução se tinha revelado deficiente na sua simbolização afetiva”. Não deixemos que esta passagem salte do livro para o palco da política. Em 1960, o dramaturgo romeno Ionesco escreveu a peça O Rinoceronte, a história de uma tranquila cidade que se transforma completamente após o surgimento inexplicável de um rinoceronte correndo pelas suas ruas. Enquanto os cidadãos debatem o fenómeno, vão aos poucos, um a um, transformando-se, também eles, em rinocerontes. A peça mostra como é mais fácil “seguir a manada” do que pensar de forma crítica. O diálogo entre a personagem Bérenger, que resiste a tornar-se um rinoceronte, e a sua namorada, tem a força dos argumentos do seu autor:
BÉRENGER – Como é que poderemos salvar o mundo, então?
DAISY – Salvar porquê?
BÉRENGER – Que pergunta!… Faça isso por mim, Daisy. Salvemos o mundo.
DAISY – Afinal, talvez sejamos nós que precisemos ser salvos. Talvez os anormais, sejamos nós.
BÉRENGER – Estás delirando, Daisy; estás com febre.
DAISY – Tu estás a ver mais alguém como nós?
BÉRENGER – Daisy, não quero ouvir-te dizer uma coisa dessas!(Daisy olha para todos os lados, na direção dos rinocerontes cujas cabeças vemos ao longo das paredes, na porta do patamar e perto da ribalta)
DAISY – Isso é que é gente. Tem um ar feliz, estão de acordo com eles mesmos. Não têm aspeto de loucos, são até bem naturais. Devem ter tido razões.
BÉRENGER – Nós é que temos razão, Daisy, eu asseguro-te.
DAISY – Que pretensão!…
BÉRENGER – Sabes muito bem que tenho razão.
DAISY – Não existe razão absoluta. Quem tem razão é o mundo, não és tu nem eu.
BÉRENGER – Sim, Daisy, eu tenho razão. A prova está que quando eu falo, tu me entendes.
DAISY – Isso não prova nada.
BÉRENGER – A prova, é eu amar-te tanto quanto um homem pode amar uma mulher.
DAISY – Bonito argumento!
BÉRENGER – Não estou a compreender-te, Daisy. Tu já nem sabes o que dizes, minha querida! Escuta, o amor… É o amor! O amor!
DAISY – Sinto vergonha disso que tu chamas amor, esse sentimento mórbido, essa fraqueza do homem, e da mulher também. Isso não pode ser comparado com o ardor, com a energia extraordinária que irradiam de todos estes seres que nos rodeiam.
Não sabemos como acaba
Como devemos gerir a vida numa altura em que os nossos amigos e vizinhos parecem abdicar voluntariamente da racionalidade, apostando na discriminação daquele que é diferente e repetindo incessantemente um rol de fake news? Como percebemos pela leitura de Ionesco, a decisão de virar rinoceronte é voluntária. O que significa que não há nenhuma máquina de propaganda que nos impeça de examinar os fenómenos e sentir dentro de nós próprios o que é o caminho do bem. Tendo sido citados ao longo do texto vários exemplos do Comunismo e do Nazismo, é justo que nos perguntemos se não há aqui algum exagero, afinal de contas, já não estamos em 1937. Entre uma época de campos de concentração e do gulag, não será o Chega uma diatribe de crianças? A questão é que estamos a ver como começa, mas não sabemos como acaba, mas, se a História tem algo a ensinar nesse capítulo, é que nunca, nunca mesmo, acaba bem.
A estrada para o inferno
Como esclarece Hannah Arendt: “O maior perigo de ver no totalitarismo a maldições do século será uma obsessão com o totalitarismo ao ponto de não vermos os muitos males pequenos, e não tão pequenos, com os quais a estrada para o inferno está calcetada.” Evguéni Zamiátin, no seu romance Nós, socorre-se da ficção para defender este mesmo ponto de vista: “O que será se o incidente de hoje, no fundo de ínfima importância, o que será se tudo isto for apenas o começo, for apenas o primeiro meteorito de toda uma série de estrondosas pedras ardentes, despejadas pelo infinito sobre o nosso paraíso de vidro?”Na Babilónia bíblica, Daniel, a exemplo dos outros judeus, foi proibido de professar publicamente a sua religião. Daniel optou por orar em casa, mas à janela, onde poderia por ser visto. Foi lançado na cova dos leões e salvo pela intercessão divina. Infelizmente, não é um exemplo muito comum. Nas ditaduras o mais comum é os opositores irem para a prisão, como está a acontecer em Hong Kong, ou acabarem envenenados, o que é frequente na Rússia. Nesses sistemas, por vezes a única opção de protesto é a não participação.
Nunca mintas a ti próprio
Nós, que vivemos em Democracia, não temos tal limitação. Resistir é uma obrigação para todos aqueles que, frente ao mal, não se sentem bem consigo mesmo ao observar passivamente o que se passa. Como bem descreve o escritor polaco Czeslaw Milosz, no seu A Mente Aprisionada: “Recusar ser cúmplice, seja de que maneira for, com a tirania do Leste – bastará isso para nos deixar de consciência tranquila? Não creio. Ganhei a liberdade, mas não quero esquecer que a cada dia corro o risco de voltar a perdê-la. Porque também no Ocidente somos pressionados no sentido do conformismo – a conformarmo-nos a um sistema que é o oposto daquele ao qual fugi. A diferença é que, no Ocidente, podemos resistir a essa pressão sem que nos declarem culpados de um pecado capital.”Frente ao Chega e ao que ele representa, necessitamos, cada um de nós, fazermos uma análise introspetiva e percebermos que posição assumiremos nessa arena. Dimitri Karamazov ao perguntar a um monge: “Que tenho eu de fazer para merecer a salvação?”, recebeu uma resposta simples mais muito exigente: “Acima de tudo, nunca mintas a ti próprio.” Portanto, quando ouvirmos as manifestações contra o SOS Racismo e as ameaças aos deputados, temos de nos questionar não apenas se é com esse tipo de gente que queremos conviver, mas se vamos deixá-los agir sem dar combate. A hora é de sermos honestos connosco próprios e daí tirarmos as devidas consequências.
Acir Meireles