Manuel e o Lobo, na Praça da Canção
LIVROS & MÚSICA | Crónica de António Lobo Antunes | Praça da Canção
Praça da Canção | reprodução da Crónica de António Lobo Antunes
Para dar início aos LIVROS SEM FRONTEIRAS, rubrica que anualmente animamos aqui de forma simples e contando sempre com a colaboração dos autores, selecionámos Um livro, Uma Crónica e um Vídeo/canção, no caso associando a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril com os 50 anos da publicação da Praça da Canção de Manuel Alegre (editado em 1965. Comemorações realizadas em 2015).
Crónica de António Lobo Antunes
Passei a Faculdade a escrever. Não estudava, não ia às aulas, houve exames a que nem sequer compareci.
Ainda hoje me espanta a paciência com que o meu pai aturou isso tudo, ele que era muito autoritário e, por vezes, violento. Argumentava que queria ser escritor, não queria ser médico, soube muito mais tarde que o meu pai, para meu espanto, tinha a certeza que eu tinha talento embora não lhe mostrasse o que fazia: periodicamente queimava tudo junto à figueira do quintal, depois soube que ele ia lá sem me dizer nada, lia os restos que ficavam na cinza e copiava-os para um caderno verde. O meu pai possuía um respeito sagrado pelos artistas e talvez, na sua cabeça, pensasse que eu era um deles, enquanto eu, pouco mais do que um miúdo, vivia atormentado pelas minhas deficiências, sempre a dizer-me
– Ainda não é isto, ainda não é isto e levei vinte anos a encontrar o que seria a minha voz, quando me apareceu a Memória de Elefante. Disse
– Ainda não é isto mas acho que descobri o caminho.
E, depois, seguiu-se o trabalho de fazer crescer aquilo tudo. Mas, nessa altura, já havia terminado a Faculdade de Medicina, já havia passado mais de três anos na tropa, já vivera os horrores de África. Até então fora o tormento do curso, que o fez sofrer a ele e me aborrecia a mim. Mal começava a estudar pensava logo
– Devia estar a escrever e voltava aos poemas péssimos e à prosa mais do que medíocre de que então era capaz, certo que, escondido, morava em mim um grande talento. Não certo, certíssimo, ao ponto de sacrificar fosse o que fosse à literatura. Pai, agradeço-lhe a paciência que teve para comigo, peço-lhe perdão de o haver humilhado com a miséria das minhas notas, agradeço que no fundo de si, embora nunca mo dissesse, me haja compreendido. A certa altura, a meio do curso, aconteceu uma coisa que me abalou muito. Era o final dos anos 60, em que os estudantes se levantavam contra a ditadura: cargas policiais, violência, prisões. Tudo isto me passou um bocado ao lado, entregue, como estava, à minha luta com as palavras. Um colega, no hospital, entregou-me, com grandes pedidos de segredo, um maço de folhas policopiadas. Na primeira página estava escrito Praça da Canção e, por baixo, o nome do autor, que nada me dizia: Manuel Alegre. Foi certamente o livro mais lido, mais comentado, mais entusiasmante, mais influente para a minha geração. Num segundo (pareceu-me que num segundo) tornou-se a bandeira dos estudantes contra o fascismo e a monstruosidade que vivíamos.
Não me interessou a sua qualidade literária. Interessou-me a corajosa chama daqueles versos e o imenso coração do autor.
Claro que Manuel Alegre era um poeta, não me ralou o tamanho do poeta que ele era, interessou-me o tamanho do que ele dizia.
A ousadia com que fez arder uma geração inteira, e o incêndio que levantou sozinho. Uma ocasião, na fronteira com a Zâmbia, morreu-me um camarada. Só sei dizer assim: morreu-me, porque me morreu de facto. De imediato veio-me à cabeça um poema de Manuel Alegre
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro e comecei a chorar. Só quem passou por uma desgraça assim é capaz de entender isto até ao osso Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro.
Esta, e outras passagens do livro, ficaram comigo para sempre, ficarão comigo para sempre: que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro.
Foi Manuel Alegre que o escreveu, e é a Manuel Alegre que o devo, porque se trata de uma prenda que nenhum dinheiro paga. Faz cinquenta anos que o livro surgiu, cinquenta anos de gratidão da minha parte. O Poeta mandou-me um exemplar comemorativo do aniversário do livro, com uma dedicatória cuja generosidade me tocou imenso. Manuel, não imaginas quanto estiveste comigo em África e quanto continuas comigo porque, em certo sentido, nunca saímos de lá. E tu ajudaste-me naquele exílio muito mais do que imaginas. Tenho pena que já não fumes porque o brinde que queria fazer-te agradecendo o muito que deste sem o saberes, ao estudantezinho anónimo que eu era, ao militar anónimo que eu fui, seria estender o meu cigarro para ti, dizer-te olhos nos olhos
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
e esconder uma lágrima de homem para homem num chupão imenso.
António Lobo Antunes – 23 de julho de 2015
SINOPSE
Praça da Canção, de Manuel Alegre, há muito ultrapassou as fronteiras da literatura para assumir uma dimensão simbólica ou mesmo mítica. Quando saiu, no início do ano de 1965, há 50 anos, que com esta edição se assinalam, foi também um incisivo retrato de uma «[…] pátria parada / à beira de um rio triste», foi uma bandeira desfraldada e um rastilho de resistência e luta contra a ditadura…..
(do Prefácio de José Carlos de Vasconcelos)