11 de Setembro, 2024

EXÍLIOS NO FEMININO – Afinal que livro é este?

Opiniões, protagonistas e roteiro das apresentações públicas (4) | ÉVORA

Aurora Rodrigues, Amélia Resende e Fernanda Marques

O que diz Aurora Rodrigues?

A opinião da apresentadora do livro e dinamizadora da sessão em Évora no dia 16 de abril 2023

No dia 16 de Abril, pouco depois das três da tarde, no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo e na sala especial e linda, com o nome do Museu, em Évora, no âmbito da Feira do Livro da cidade, com sala cheia, foi apresentada a obra colectiva Exílios no Feminino, com a chancela da editora Afrontamento e edição de Carlos Valentim Ribeiro.

Percurso de vida, no que respeita ao exílio político, de sete mulheres: Amélia Resende, Beatriz Abrantes, Fernanda Marques, Helena Cabeçadas, Helena Rato, Irene Pimentel e Maria Emília Brederode dos Santos.

Vieram a Évora Amélia Resende, Fernanda Marques e Maria Emília Brederode Santos e não será atrevimento dizer que ficámos amigas.

Aquele livro cativou-me e cativaram-me aquelas sete mulheres.

Confesso que, de certa forma, partilhava, quanto às mulheres que partiram, um preconceito comum, que sem dúvida subalterniza essas mulheres que assim escolheram resistir, ou foram obrigadas a fazê- lo. Relativamente e elas, como às que ficaram, foi construída a falsidade histórica de que as mulheres lutaram quando eram levadas por homens e em função dos seus homens.

Até eu fiquei surpreendida e feliz pela desconstrução. Tal como as que lutaram cá dentro, fizeram frente por si, à ditadura, à repressão, à guerra e ao fascismo. Não deram homem por si, como Sophia disse. Elas foram e lutaram, por si, sem o modo oblíquo das mulheres, tecendo intrigas, como também disse Sophia. Deram, em seu próprio nome e com a sua própria vontade, o peito às balas, pela liberdade. Não foi para fazer companhia e dar conforto aos seus homens.

Em Paris, Bruxelas, Estocolmo, Genebra, Argel, lutava-se e elas lutaram. Por exemplo arriscavam a vida e a prisão transportando malas, fazendo a ligação com o exterior, denunciando, acolhendo e orientando os que fugiam. Exilaram-se para lutar ou, simplesmente, para crescer, contra o sufoco dum país irrespirável, de mentira e má-língua, muita pequenez e silêncio. Não lutaram menos que as exiladas cá dentro, as que clandestinamente lutava, na pátria inexistente,”onde até o ar que nos rodeia é como grades”. De novo, Sophia. Nesta “pátria, lugar de exílio” no dizer do poeta Daniel Filipe, que logo me veio à cabeça quando comecei a ler o livro, e de que não consegui desprender-me.

Foram em busca da liberdade e para lutar por ela

Não conhecia o livro e tudo nele é uma lição. Por vencer um preconceito, que não reconhecia como tal: o de que elas acompanharam os seus parceiros que fugiam à guerra colonial e desertavam. Também, nalguns casos, terá sido por isso, mas não foi sobretudo por isso. Foram em busca da liberdade e para lutar por ela. Foram esquecidas pela história da resistência e, lá, no exterior, foram muitas vezes subalternizadas e desvalorizadas por serem mulheres. Como cá. Como sempre, até hoje. Ainda falta desocultar essa parte. Que o machismo, o puritanismo hipócrita revestido de paternalismo ou não, penetrou as organizações partidárias, mesmo as que se colocavam à esquerda, e fez das mulheres, subalternas, cozinheiras, dactilógrafas, cuidadoras, tudo o que eles consideravam menor.

“Os caminhos nunca acabam, andorinhas de asas negras, só vivem enquanto voam”, foi o que me lembrou a capa, foi o que me lembraram elas e o que me lembrou o Vitorino, que entrou na sala, para a sessão seguinte.

Coube-me a responsabilidade e a honra de apresentar o livro em Évora. Obrigada, também por isso. Évora, 3 de Maio de 2023 (o dia em que passam 50 anos sobre a minha prisão)

Aurora Rodrigues

Os 3 Rs da Resistência à Ditadura valem em Democracia?

Por Maria Emília Brederode Santos, uma das autoras presentes na sessão

Qual a utilidade actual do conhecimento das vidas em ditadura? Para que servem os testemunhos que têm vindo a ser recolhidos e divulgados? Que aprendizagens, que inspirações, que lições deles se podem retirar, hoje, no Portugal democrático?

Como vacina contra eventuais aspirações de regresso a tempos em que qualquer jovem estava condenado a duras opções entre alternativas todas negativas, certamente. Mas, por outro lado, não poderão as qualidades então necessárias e prezadas ser, não só inúteis, mas até prejudiciais, por heroicizarem comportamentos inadequados a uma democracia?

Estas algumas interrogações/provocações que me têm surgido nesta aventura de recordar, com alegria e humor, integrada nas “sete magníficas”, lutas passadas em contextos tão diferentes que, até para nós que as vivemos, são difíceis de reconstituir na sua estranheza e ambiguidades várias.

Brincando com os “3Ds” chamarei “3 Rs” a três das qualidades necessárias para viver e lutar em ditadura: Reserva, Renúncia e Resiliência.

Reserva

Devíamos evitar falar para não dizer mais do que o estritamente necessário e mesmo para não sabermos mais do que o estritamente necessário. Era uma boa competência, quase de sobrevivência, para evitar chamar atenções indesejáveis, dar informações “ao inimigo” (leia-se “pide”), para não arriscar arrastar outros e até a própria organização em caso de prisão. Quem fosse muito curioso, quisesse saber muito e desse  informações escusadas era então imediatamente alvo de desconfiança – ou pelo menos de censura –  por parte dos companheiros de luta.

Estes cuidados de reserva refletiam, reforçavam, alastravam-se e faziam como que parte de uma “cultura nacional”: o princípio geral era evitar falar se não se tivesse nada de novo ou importante a dizer. Nesta cultura de reserva e silencio, as crianças “não  falavam à mesa”, as mulheres, “de olhinhos no chão”, como era recomendado nos meios rurais, não iam sozinhas ao café, os mais jovens calavam-se perante os mais velhos e “quem muito fala pouco acerta”…

Ora uma das características da democracia é o reconhecimento e a importância dadas às liberdades de reunião e de expressão. A democracia exige e promove competências sociais de escuta do outro, de empatia, de expressão oral e escrita, de persuasão, complementaridade, dúvida, questionamento… A democracia exige cidadãos com pensamento próprio e livre, capazes de exprimirem os seus pontos de vista, de os fundamentarem, e de os  articularem com os de outros…

A democracia não pede uma sociedade “tagarela”. É sempre necessário “parar para pensar” – sobretudo sob a pressão das respostas rápidas impostas pela tecnologia digital. Mas a livre expressão de cada um deve ser promovida e exercitada desde muito cedo e certamente na escola.

A evocação dos tempos de medo, reserva e silêncio permitirá, espero, apreciar mais e melhor o pensamento livre e a sua livre expressão – na vida convivial de todos os dias, mas também na comunicação social, nas reuniões políticas e nas várias áreas de pensamento e acção.

 

Renúncia

Em ditadura, os democratas tinham muitas vezes que renunciar, voluntaria ou involuntariamente, a muitas oportunidades. Recordo-me de ter encontrado, na ficha do meu Pai nos arquivos da PIDE na Torre do Tombo, uma inscrição dele numa Cooperativa de Habitação, que implicava o pagamento regular de uma soma que, ao perfazer determinada quantia, dava azo ao sorteio de uma casa. Mas sobre esse documento, um carimbo da Pide dizia: “Desafecto ao Regime”. Ou seja: por muito que crescessem os pagamentos ou que a sorte o bafejasse, nunca lhe caberia a casa almejada porque era “desafecto ao regime”… Os regimes totalitários são assim: perseguem os “desafectos” em todas as dimensões da vida.

Noutros casos eram os democratas que não aceitavam propostas feitas pelo regime por recearem que essa aceitação significasse um comprometimento, uma colaboração com um regime que condenavam e combatiam. Dum modo geral, e sem ir tão longe na renúncia que tornasse a vida quase insuportável, sopesava-se bem a oferta. Por exemplo, numa fase final já menos ideológica, a Mocidade Portuguesa oferecia ao Sábado actividades desportivas, muitas vezes inacessíveis à maioria das bolsas, como por exemplo de hipismo. Os pais da Oposição cujos filhos desejassem frequentar essas actividades sopesavam cuidadosamente as suas implicações, muitas vezes deixando os filhos praticá-las mas atentos a que não fossem “utilizados” em desfiles ditos “patrióticos” nem sujeitos a ideologizações indesejáveis (“lavagens ao cérebro”…) Caso isso se verificasse, renunciava-se imediatamente, embora correndo-se o risco de levantar ou reforçar suspeitas…Não podia haver ligeireza mesmo nas decisões mais comezinhas!

Ora em democracia o que se visa é, pelo contrário, a participação. A renúncia revela desinteresse, falta de civismo, alheamento da coisa pública, despreocupação com os outros e com o bem comum. A democracia requer cidadãos capazes duma participação activa e responsável, participação essa que, por sua vez, promove em cada um os conhecimentos e as capacidades necessárias à intervenção cívica e política. Um bom exemplo é a prática das Assembleias Gerais de escola ou de turma em que os alunos aprendem não só o formalismo da sua organização, mas também a resolução de problemas, a tomada de decisão conjunta , a procura de construção de consensos e compromissos quando os interesses colidem. E acima de tudo desenvolvem o apreço por princípios e valores democráticos de respeito por cada um, mesmo, ou sobretudo, por quem é ou pensa diferentemente.

Resiliência

Recordamos com bom humor as astúcias a que recorriam os cidadãos durante a Ditadura para contornarem as leis iníquas da censura e das proibições ao pensamento livre – como a mudança de títulos de jornais e revistas periódicas aproveitando uma subtileza da lei da censura prévia aos órgãos de comunicação social (“Binómio”, “Trinómio”…) ; a compra de livros proibidos “debaixo do balcão” de certas livrarias; ou a forma como Augusto Abelaira conseguiu publicar, creio que no Diário de Lisboa, os nomes de alguns dirigentes da Crise de 62, incluindo-os numa lista de grandes oradores da História de Portugal que começava com Padre António Vieira e assim enganando os severos mas não muito cultos censores! Também nos recordamos da alegria proporcionada por Palma Inácio  e o seu primeiro piratear dum avião para distribuição de panfletos ou de Henrique Galvão e o episódio do Santa Maria transmudado em Santa Liberdade ou ainda das aventurosas fugas das prisões de Peniche e Caxias!

Rimo-nos das nossas próprias aventuras e infracções legais, para nós ou para os nossos amigos, desde o designar por “luto” a greve proibida, à falsificação de passaportes ou às saídas a salto!

Todos esses actos de resiliência, justificáveis, necessários, mesmo apaixonantes em ditadura, não o serão em democracia – apesar de todas as imperfeições e insuficiências desta e da necessidade de participar no seu permanente aperfeiçoamento. Então como lutar por este e pelas causas mais que justas que novos tempos nos impõem?

Dizia o Ghandi, depois de viver a experiência do apartheid na África do Sul e, de volta à India, constatar que os seus compatriotas não cumpriam as leis, que “devemos cumprir as leis que forem para todos e combater as que forem só para alguns”. É um bom ponto de partida para debater a velha e sempre nova questão de “os fins e os meios”… Fica o desafio.

Maria Emília Brederode Santos 

Évora acolheu o Exílios no Feminino

O livro pouco depois da apresentação já estava a ser lido nas esplanadas. Coincidências.

Fotos © CR/Caixamédia

Editor

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