14 de Janeiro, 2025

A esquerda deve assumir que é preciso sujar as mãos

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A situação exige que haja um governo em França

OPINIÃO – Aurélie Filippetti [ex-ministra da cultura]

Em 1941, em A Resistível Ascensão de Arturo Ui, Bertolt Brecht questionou-se: por que razão, na história, certos perigos – por mais óbvios que sejam – foram ignorados, conduzindo às tragédias esperadas, quando poderiam ter sido evitados?

Aurélie Filippetti, ex-ministra da cultura Reuters/Charles Platiau

A sua observação é clara: é da qualidade ou, pelo contrário, da mediocridade dos homens que narraram estes acontecimentos que depende o desfecho feliz ou trágico da história. Assim, um pequeno um bandido de baixo escalão continua a ser apenas um bandido mesquinho se não tiver à sua frente homens poderosos que, de repente, concordam em comportar-se mal. Hoje é claro que a última frase da peça de Brecht parece ter sido esquecida: “Aprenda a ver, em vez de ficar parado a olhar. O útero ainda está fértil…”

Vemos o que está a acontecer diante dos nossos olhos? Queremos aprender a ver? De que serve ter feito os nossos filhos estudar história, ter cultivado o dever da memória, ter brandido “nunca mais” por não poder agir quando necessário, como se estivesse paralisado pela tragédia que se avizinha?

Narcisismo

Foi através de uma onda de narcisismo mesquinho que o perigo chegou. Narciso é aquele que, ao contemplar o reflexo da sua imagem na água de um lago, acaba por cair à água e aí se afogar. O narcisismo é um vício fatal: proporciona, certamente, a ligeira embriaguez de contemplar a própria imagem, mas também nos torna seres irresponsáveis, cegos ao perigo que nos rodeia.

Em política, o narcisismo, quer do lado do poder, quer do lado daqueles que desejam ter acesso a ele, é um mal banal e inconsequente, excepto em caso de circunstâncias excepcionais e perigosas. Porque, quando a democracia está em perigo, a satisfação das posturas torna-se sinónimo de grande perigo.

Colocar a política novamente ao serviço do interesse geral

Vamos lá ver. A dissolução precipitada revelou o firme desejo dos franceses de não ceder o poder à União Nacional [UN], recusando-se a dar a maioria a este partido. Esta foi a única lição clara das eleições legislativas.

No entanto, foi exactamente no caminho oposto à primeira iniciativa que Emmanuel Macron avançou: ao escolher um primeiro-ministro oriundo de um partido que se recusou a bloquear a UN, fez da maioria no poder o que bem entendeu já que nela se encontra um partido que os franceses não queria que governe. Era óbvio a partir de então que este obrigaria o governo a fazer o que ele dissesse.

Para evitar dar à UN o poder de vida ou de morte sobre o governo, a esquerda – exceto La France insoumise [LFI], porque a sua atitude inviabiliza trabalhar com eles – deve agora propor um contrato governamental, com linhas claras e escritas, permitindo que o país seja gerido da melhor forma possível durante os próximos dois anos com os representantes eleitos do partido presidencial e dos centristas, ou da direita verdadeiramente republicana. Um verdadeiro contrato governamental, e não um projeto maximalista e irrealizável. Deve ser num texto negociado que serão definidas as linhas gerais de cada área, para que nenhuma controvérsia atrapalhe o seu rumo.

Política pragmática

Tratar-se-ia, obviamente, de levar a política a um nível pragmático e concreto, de a colocar de novo ao serviço do povo francês, ao serviço do interesse geral, e de pôr fim à romantização (mais narcisismo…) em que chafurda e afoga-se. Não, nenhuma grande revolução, nenhuma grande noite, mas também nenhum questionamento do Estado de Direito. Não serão grandes convulsões económicas, mas sim e apenas uma actualização das prioridades (escola, investigação, defesa, universidade) e uma vontade de aguentar dois anos que prometem ser difíceis para a economia europeia.

Certamente, para os partidos de esquerda e ambientalistas, é uma opção corajosa, num contexto em que a LFI não deixará de os acusar de traição. Mas já vivemos desilusões suficientes para saber que é melhor ser honesto e aceitar a natureza excepcional do perigo: a situação exige que haja um governo em França.

Artigo do Le Monde | Débats | Oferecido Danielle Desguées.

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