24 de Janeiro, 2025
agua

Après moi le déluge

[Artigo publicado por Filipe Carmo em 1999 que o autor considera de atualidade e de interesse para o debate principalmente sobre os temas ambientais e societais.]

A escassez de água pode conduzir à fome, a perturbações da ordem pública e mesmo à guerra. É este o alerta que o Worldwatch Institute, sediado em Washington, acaba de lançar, baseado em estudos recentes.

470 milhões é a estimativa para o número de indivíduos que habitam os países que actualmente sofrem de escassez de água. Em 2025 estarão 3 mil milhões nessas condições (40% da população mundial).

Há falta de água não porque a quantidade total disponível no planeta diminua ou porque não se façam os trabalhos de engenharia necessários para aproveitar e tornar acessíveis os recursos existentes. Há falta de água porque as necessidades crescem ininterruptamente e as necessidades crescem porque a população mundial também não para de crescer. O excesso de captações subterrâneas, a construção de grandes barragens – cujo número aumentou de 5 mil em 1950 para 38 mil actualmente – e o desvio de caudais para irrigação e usos citadinos têm até conduzido à destruição progressiva das funções ecológicas vitais dos rios, lagos e zonas húmidas. Algumas das consequências concretas, ainda segundo o Worldwatch Institute, estão à vista:

  • Muitos deltas e estuários de rios e zonas costeiras estão a perder as suas potencialidades piscícolas devido á redução dos fluxos de água doce e nutrientes.
  • Os troços de jusante do Rio Amarelo, na China, estiveram sem água durante 70 dias/ano em média no período 1986/1995; neste último ano já foram contudo 122 dias; e, em 1997, 226 dias; outros grandes rios, como o Indus, o Ganges e o Colorado, sofrem de problemas semelhantes.
  • O Mar Aral, na Ásia Central, perdeu metade da sua área e três quartos do seu volume de água devido a aproveitamentos excessivos para a produção de algodão. 20 das 24 espécies existentes de peixes desapareceram, o que conduziu à perda de capturas que chegaram a atingir 44 mil toneladas por ano e justificavam 60 mil empregos.
  • A Califórnia perdeu 95% das suas zonas húmidas; as populações de aves migratórias e aquáticas, que utilizam essas áreas como habitat, caíram de 60 milhões em 1950 para 3 milhões no presente.

Existe uma vasta literatura sobre estes temas, com detalhes extremamente assustadores, não só sobre o desequilíbrio ecológico mas inclusivamente sobre as respectivas consequências para a saúde das populações humanas atingidas. A sua leitura provoca-nos uma sensação de déjà vu que é difícil deixar de comparar com, por exemplo, as descrições mais conhecidas das catástrofes de Chernobyl e Seveso.

William James, que é Professor of Water Resources Engineering na Universidade de Guelph, no Canadá, na Introdução ao seu curso sobre Uma perspectiva histórica do desenvolvimento dos sistemas urbanos de abastecimento de água, começa por uma apologia: A engenharia do abastecimento de água é uma histórica e nobre profissão, visto que proporciona água de boa qualidade às populações onde ela à partida seria inadequada ou estaria poluída, devolvendo ainda à natureza nas melhores condições os efluentes derivados, e deixando às pessoas tempo disponível para cultivar o espírito e o corpo.

Mas, mais à frente, não deixa de exprimir a sua inquietação, reencaminhando-nos com um ponto de interrogação a esse ponto de partida:

  • O problema número um do planeta, que é de longo prazo, sério e talvez irreversível é a perda de habitat (não a chuva ácida, …, a redução da camada de ozono ou o efeito de estufa, que são reversíveis a curto prazo). A perda de habitat e a redução da bio-diversidade, como todos os problemas ambientais, são universais e têm como causa o impacto em termos absolutos e de densidade das populações humanas, cuja regressão as diferentes sociedades humanas não têm sido capazes de efectivar.
  • O abastecimento de água e o controlo da poluição constituem os factores mais significativos que permitem o crescimento das populações (e não por exemplo a medicina, a habitação, os empregos ou a agricultura). A obtenção de água potável a partir da contaminada é algo, para resumir, em que os engenheiros excelem.
  • Reflectir sobre a procura de água e o controlo da poluição, sobre os projectos de abastecimento de água e de esgotos, sobre as interdependências entre os dois subsistemas, e a respectiva dependência de recursos hídricos e energéticos não renováveis e que têm que ser importados, conduz-nos, sem exagero, às seguintes conclusões:
    • O único sistema sustentável confirmado é o sistema natural com as suas infinitas complexidades;
    • Nós, os engenheiros hidráulicos, somos sem dúvida os involuntários mas principais agentes da destruição inexorável e a longo prazo do planeta.

Se o que é humanitariamente correcto é não só humanitariamente incorrecto mas também ecologicamente, planetariamente incorrecto, o que é que há a fazer?

Num livro do Worldwatch Institute recentemente publicado (Pillar of Sand: Can the Irrigation Miracle Last?), Sandra Postel advoga uma Revolução Azul para aumentar significativamente a produtividade da água. Numerosas medidas – que vão desde a adopção de novas tecnologias de rega à eliminação de subsídios e passando pela reciclagem dos efluentes domésticos e redução de fugas e outras perdas de água – são propostas no sentido de conseguir aumentar a água disponível para irrigação. Seria assim possível travar a evolução actual de redução da área irrigada por habitante e fazer frente à ameaça planetária da fome.

Admitindo que os príncipes não desiludem os conselheiros e que as medidas adoptadas – que vêm aliás a ser discutidas em numerosas instâncias em todo o mundo – têm sucesso, o que é que se ganhará? Apenas tempo ou um equilíbrio global duradouro?

Se os recursos adicionais conduzirem sempre e sempre a mais população, a resposta é óbvia. Mesmo se se conseguir ganhar ainda mais tempo com o recurso generalizado à dessalinização e admitindo que esta não traga consigo novos desequilíbrios, por exemplo no domínio energético.

A queda das taxas de fecundidade nos países mais industrializados, nomeadamente na Europa e Japão, permite alimentar esperanças não só de estabilização mas também de redução das populações. Mas para que o referido equilíbrio global duradouro venha a ser atingido pela via da estabilização populacional não parece suficiente aguardar que se implantem progressivamente nos restantes países as condições de vida que conduziram a essa queda de fecundidade. De facto, as tendências actuais conduzem- nos, de acordo com o Relatório mais recente das Nações Unidas, a uma população planetária de 8,9 milhares de milhões em 2050, o que só poderá ser acompanhado de fome e outras restrições, doença e subida das taxas de mortalidade (já verificável actualmente, de acordo com o mesmo relatório).

Políticas do tipo filho único, como na China, ou o seu equivalente pela via educativa, através do planeamento familiar, poderão constituir opções qualitativamente diferentes porque evitam o terreno armadilhado do mais e melhor gestão dos recursos. Mas a experiência conhecida, os obstáculos que tais políticas continuam a encontrar, revelam que o seu alcance dificilmente deixará de ser limitado.

Roosevelt fez-nos perder talvez a grande oportunidade de contrariar a tendência ao desbaratamento de recursos, em meados dos anos trinta, quando optou pelo New Deal em detrimento da redução dos horários de trabalho para 30 horas semanais, solução para o desemprego proposta por grandes empresas e já aprovada pelo Senado americano, que mais tarde lastimou não ter apoiado. O elevado desemprego actual na Europa constitui outra oportunidade para arrepiar caminho que está a ser desperdiçada, ironicamente em nome da (in)viabilidade económica.

A base ideológica e política para essa mudança qualitativa não tem aparentemente faltado. Todos se recordam dos movimentos beatnik, hippie e estudantil dos anos sessenta e da sua oposição implícita ou explícita à sociedade de consumo. O desenvolvimento posterior do movimento ecológico, também aparentemente, reforçou essa base ideológica e política.

Ou será que não, que essa base ideológica e política, após a sua pureza inicial, entrou na via dos compromissos e já não distingue o essencial do acessório – ou mesmo o positivo do negativo – na via para evitar o choque a alta velocidade que nos espera? O historiador Lynn White Jr., referência fundamental em todos os debates sobre ética ambiental a partir de 1967, quando publicou o seu The Historical Roots of Our Ecologic Crisis, pôs justamente o dedo na ferida quando referiu que, para começar deveríamos tentar clarificar o nosso pensamento olhando, com alguma profundidade histórica para os pressupostos subjacentes à tecnologia e ciência modernas. Esses pressupostos encontra-os Lynn White na vitória do Cristianismo sobre o paganismo, que terá sido a maior revolução psíquica na história da nossa cultura, e ainda mais longe, na Criação bíblica:

Gradualmente, um Deus todo poderoso criou a luz e a escuridão, os corpos celestes, a Terra e todas as suas plantas, animais, pássaros e peixes. Finalmente, Deus criou Adão e, pensando melhor e para não o deixar sózinho, Eva. O Homem deu nome a todos os animais, estabelecendo assim o seu domínio sobre eles. Deus planeou tudo isto explicitamente para benefício do Homem: nada na Criação tinha qualquer objectivo excepto servir os objectivos do Homem.

E diz ainda Lynn White: Em particular na sua forma ocidental, o Cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo alguma vez viu … O Cristianismo, em absoluto contraste com o antigo paganismo e com as religiões asiáticas, não estabeleceu apenas um dualismo Homem-Natureza: insistiu em que o desejo de Deus é que o Homem explore a Natureza para os seus próprios fins. E, embora reconheça que as formas ocidentais de pensamento e de expressão deixaram em grande medida de ser cristãs, sublinha que os nossos hábitos de acção diários são dominados por uma fé implícita num progresso perpétuo que era desconhecido tanto no mundo Greco-Romano como no Oriente Antigo.

Fé que claramente faltava a Frontinus, responsável pelo abastecimento de água à cidade de Roma no final do primeiro século da nossa era, e autor de uma frase amplamente citada: As invenções já há muito atingiram os seus limites e não tenho qualquer esperança de novos desenvolvimentos.

Filipe do Carmo Economist

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