AMBIENTE E ECONOMIA | DOSSIÊ – Parte 6
A AGRESSÃO AO PLANETA (VI)
Num domínio que exerce peso considerável sobre a situação ambiental – a área do sector económico digital (que inclui sobretudo os televisores, os telemóveis, os computadores, os aparelhos associados à internet, os ecrãs e as consolas de jogos, mas também os centros e as redes de dados) – é frequentemente posto em relevo o enorme consumo de electricidade, em termos mundiais, que é atribuído a esse sector.
Por exemplo, só as infraestruturas digitais – redes e centros de dados – “queimam” o equivalente a metade da produção nuclear francesa. Outro exemplo: os 10 mil milhões de mensagens electrónicas enviadas em cada hora em todo o mundo requerem o equivalente à produção eléctrica horária de quinze centrais nucleares. Mas outra perspectiva, além do consumo de electricidade, dá peso adicional à pegada ambiental do digital: um telemóvel, que pesa escassos 150 gramas mas em cuja construção são exigíveis cerca de 50 metais diferentes, requer uma utilização de recursos cujo peso é de 150 quilos.[1] Ainda nesta perspectiva, “A construção de um computador portátil emite cerca de 330 quilos de equivalente CO2, necessitando de imensa água e matérias primas, nomeadamente metais como o paládio, o cobalto ou as terras raras. O funcionamento dos centros de dados por si só dá origem a 19% do total da pegada energética digital”.[2] Uma perspectiva mais abrangente é ainda a da “Internet das coisas” (entendida como uma extensão da Internet que permite que os objetos do quotidiano – dotados de capacidade computacional e comunicativa – se liguem à Internet) que as grandes empresas da tecnologia se esforçam por promover e fazer progredir. Como acreditar que tais empresas estejam a adoptar comportamentos mais sóbrios que apoiem a luta contra a crise climática, quando essa internet das coisas requer desenvolvimentos que conduzem a enormes consumos de matérias primas, energia e trabalho. Atente-se a esse respeito na alternativa entre o que está por detrás de alumiar uma sala recorrendo à voz numa área conectada a um sistema tecnológico construído nesse sentido e o simples apoio de um dedo sobre um interruptor. Não se pode por outro lado ignorar que as redes 5G irão em breve multiplicar os consumos energéticos da rede móvel.[3]
A presunção de que as grandes empresas da tecnologia digital estão a adoptar comportamentos mais de acordo com a luta contra a crise climática revela-se bastante tímida quando comparada com a convicção que uma “santa aliança” mundial tem vindo a exprimir de modo cada vez mais afirmativo no sentido de considerar que não será possível controlar as mudanças climáticas sem um recurso maciço ao digital. Já acima foram referidos dados que vão numa direcção perfeitamente oposta. Um outro artigo recente, com o título “Quand le numérique détruit la planète”[4], amplia consideravelmente tal conjunto de dados de um modo que roça, de modo proveitoso, a vertigem. Não só apresenta elementos que vão no sentido de demonstrar que a poluição digital é colossal como reforça a perspectiva de que ela é mesmo aquela que se desenvolve mais rapidamente. Começando por esclarecer que as tecnologias digitais mobilizam actualmente 10% da electricidade produzida no mundo e emitem cerca de 4% do CO2 que é lançado na atmosfera (um pouco menos que duas vezes o que faz toda a aeronáutica civil), o referido artigo vai além do que é rejeitado para o ambiente (degradando-o) e procura contabilizar os recursos que são absorvidos, gastos, para que essas tecnologias funcionem. Dando um exemplo, quando da sua fabricação, um computador que pesa 2 quilos mobiliza, entre outros recursos, 22 quilos de produtos químicos, 240 quilos de combustível e tonelada e meia de água cristalina. Outro exemplo que bate todos os outros em tal perspectiva é o do circuito integrado que, pesando apenas 2 gramas requer um total de matérias primas que atingem 32 quilos.
Esta questão dos recursos necessários à produção do sector digital é vista numa perspectiva um pouco diferente, mas complementar da que acaba de ser descrita, numa das crónicas semanais do jornal Le Monde da autoria de Stéphane Lauer[5]. Tal crónica incide sobre a transição ecológica que visa o desenvolvimento do automóvel eléctrico e confronta-nos com as contradições que essa transição nos transmite. Sendo o ar limpo a promessa que nos faz vislumbrar o advento do carro elétrico, refere o autor, alguns acreditam que a economia acabaria por se tornar um caminho de pétalas de rosa, finalmente livre da poluição e da dependência de matérias-primas. Mas coloca-se a questão da produção de energia eléctrica para operar esse parque automóvel de forma sustentável, o que leva as pessoas a interrogarem-se sobre se haverá o suficiente para fabricar as dezenas de milhões de baterias necessárias para essa gigantesca transição. Assim, a demanda dos metais necessários para fabricar baterias (alumínio, cobalto, ferro, chumbo, lítio, manganês e níquel) deverá aumentar significativamente até 2050, a Comissão Europeia estimando em particular que as necessidades em lítio da UE serão multiplicadas por dezoito até 2030, enquanto as de cobalto serão cinco vezes mais elevadas no mesmo horizonte (esperando-se uma escassez de cobalto até essa data). No que respeita ainda em particular ao lítio, e sabendo-se que a sua extração polui a água e os alimentos, isso leva a uma reavaliação do custo real da mudança para a pretendida mobilidade sustentável. Compreende-se assim que milhares de pessoas se tenham manifestado no mês passado em diversas cidades da Sérvia contra um projecto de extração de lítio, bloqueando estradas, e o governo do país tenha suspendido a sua lei de expropriação de moradores que eram prejudicados por tal projecto. É aliás uma situação que tem alguns paralelos com o que se tem passado em Portugal, onde (em freguesias do norte do país) tem havido protestos às intenções de exploração desse metal. Em termos, por outro lado, da exploração do cobalto, área em que a República Democrática do Congo (RDC) concentra grande parte da produção (cerca de 70%) e reservas mundiais, sabe-se que actualmente a China controla quinze das dezanove minas existentes, as quais são exploradas a maior parte do tempo em condições calamitosas, não só no domínio ambiental mas também social. Mas não só o lítio e o cobalto apresentam problemas graves de exploração ou outros. A produção de metais abundantes como o cobre (essencial para a electrificação do planeta) e o alumínio (uma multiplicidade de utilizações, mas com destaque para diversos meios de transporte), causando poluições e requerendo grandes consumos de água, tem sido deslocalizada pelos países desenvolvidos, em particular para a China. As terras raras (essenciais para a produção de veículos eléctricos e instrumentos ou infraestruturas do digital), cuja extração é extremamente destruidora do meio ambiente, têm também sido objecto de semelhante deslocalização. O silício, por seu lado, muito utilizado para a produção de painéis solares mas requerendo uma refinação que exige muita electricidade, também tem sido deslocalizado para a China, que utiliza centrais a carvão para o efeito.[6]
A produção de electricidade, eis uma questão que é presentemente central no domínio ambiental e que na COP26 recebeu uma atenção especial. Nessa altura, as posições no sentido de substituir as origens em combustíveis fósseis por energias renováveis foram predominantes. Insatisfatoriamente, as atitudes contra a energia nuclear foram menos insistentes e as intenções de vários países em manter, e mesmo aumentar, o recurso a essa energia continuam a ter expressão. É o caso, por exemplo, da China (que tem 56 reactores em serviço e 14 em construção), da Índia (23 e 6, respectivamente), da Coreia do Sul (24 e 4), da Rússia (38 e 3) e do Japão (33 e 2). E os países que mais reactores têm, Estados Unidos (93) e França (56), embora pouco activos neste momento em termos de construção, não dão sinais claros de vir a reduzir as respectivas dependências relativamente a tal energia (no caso francês, o presidente Emmanuel Macron, candidato a reconquistar o seu cargo nas eleições que vão ter lugar em Abril próximo, já anunciou a sua intenção de continuar a investir no átomo).[7] Tudo isso não obstante o enorme número de incidentes que têm tido lugar desde que há reactores (ver a longa lista que consta da página https://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_d%27accidents_nucl%C3%A9aires da Wikipedia, em que é dado o maior destaque às catástrofes ocorridas em Three Mile Island em 1979, Chernobil em 1986 e Fukushima em 2011; como tem sido divulgado, este último desastre assume contornos mais trágicos após a decisão recente tomada pelo Japão de despejar as águas contaminadas no oceano). Mas não são só os percalços, maiores ou menores, que podem atingir as instalações nucleares que devem contar. Há, por um lado, resíduos altamente radioactivos que resultam da respectiva laboração e mantêm a sua perigosidade durante milhares de anos e, por outro, problemas que se arrastam durante dezenas de anos com o desmantelamento das unidades que vêm chegar o final do seu período de utilização. Também os elevados custos envolvidos (negados pelos partidários dessa “solução”) constituem um forte argumento contra as centrais nucleares. Num caso que tem vindo a ter a atenção dos meios de comunicação social franceses, a central de Flamanville, que devia ter entrado em funcionamento em 2012 após um investimento de cerca de 3 mil milhões de euros, não só continua actualmente em construção como o seu custo deverá ser de 6 a 7 vezes superior. O mais absurdo de tudo isto é que os proponentes dessas centrais têm vindo a considerar que elas vão produzir energia verde, dado que irão substituir as energias fósseis. Esse é aliás o argumento que a França terá utilizado para pressionar a Comissão Europeia para incluir o nuclear na proposta que vai definir as regras de apoio ao financiamento de energias sustentáveis. Questão que levou a reacções de membros do governo e do parlamento alemães, que se manifestaram contra a proposta.[8] Reacções que eram de esperar e que confirmam a posição assumida pela Alemanha desde o desastre de Fukushima no sentido de desactivar as suas centrais, posição que tem vindo a ser implementada desde então.
A França está aqui perto de nós e só nos podem inquietar a sua dependência do nuclear (67% da produção de energia do país) e os planos que vão sendo feitos para construir mais centrais. Mas o Japão, que repôs em funcionamento 33 reactores no ano passado e está a construir 3 novas centrais, tem desde o passado mês de Outubro um primeiro ministro que parece estar a dar prioridade ao nuclear por razões que apresenta como de natureza ambiental e económica[9]. A China, por seu lado, já com um total de produção de electricidade de origem nuclear que só é ultrapassada pelos Estados Unidos, anunciou, também recentemente, a construção de mais 150 novos reactores no seu solo (procurando deixar de estar dependente do carvão) e de cerca de 30 destinados a exportação. Pergunta-se: Que mais nos espera?
Lisboa, 23 de Janeiro de 2022
Filipe do Carmo
[1] Ver, a tal propósito, o artigo “Numérique, le piège climatique”, publicado no Le Monde de 2021-01-11, páginas 18 e 19.
[2] Conforme referido no artigo “Le numérique carbure ao charbon” (Le Monde Diplomatique, Março de 2020, página 3).
[3] Ver também a tais respeitos o artigo referido na nota anterior.
[4] Le Monde Diplomatique de Outubro 2021, páginas 1 e 18-19.
[5] Crónica com o título “Foire d’empoigne sur les batteries”, publicada em 2021-12-14, página 33.
[6] Ver também a crónica de Jean-Michel Bezat no Le Monde de 2021-09-21, página 31, intitulada “Les trous noirs de la révolution verte”.
[7] Ver o editorial do Le Monde de 2021-11-2021 e os artigos no mesmo exemplar do jornal “Relance du nucléaire: huit questions pour un débat radioactif” (páginas 18-19) e “Ces pays qui continuent à miser sur le nucléaire” (página 20).
[8] Ver o artigo “Alemanha e França em rota de colisão na UE por causa da energia nuclear” (Público de 2022-01-03, página 18). Ver também, sobre os mesmos assuntos mas também sobre o encerramento recente de várias centrais nucleares francesas devido a vários problemas que as têm afectado, alguns artigos publicados mais recentemente no Le Monde: em 2022-01-19, “La Commission européenne, clairement sous influence allemande, apparaît duplice sur la question du nucléaire” e “Les enjeux du programme de réacteurs EPR méritent d’être discutés démocratiquement” (página 32); em 2021-01-20, “Nucléaire: les déboires en cascade d’EDF et de l’État actionnaire” (páginas 16 e 17) e “L’ASN met en garde contre «une double fragilité inédite»” (página 17).
[9] Ver o artigo “Le nucléaire, priorité du Japon pour la neutralité carbone” (Le Monde, 2022-01-07, página 16).