CANÇÃO DE PROTESTO E EXÍLIO | Canção política deveria retomar o filão da ironia e do escárnio
SF | 27 setembro 2020 | DOSSIÊ Canção de protesto e exílio | Irene Pimentel brinda-nos no encerramento do nosso percurso temático sobre a Canção de Protesto e o Exílio com um texto sobre José Afonso que vai totalmente ao encontro da intenção inicial do SEM FRONTEIRAS com a organização deste dossiê. No essencial esta iniciativa visou suscitar a reflexão e o debate sobre uma experiência incontornável da história do Portugal contemporâneo cujos protagonistas enchem os nossos corações e povoam as nossas memórias. Quando lemos no texto da historiadora que Zeca Afonso defendia, entre outras opiniões, que a arte panfletária não é, necessariamente, revolucionária e que a canção política deveria retomar o filão da ironia, do escárnio, que era uma atitude tradicionalmente ibérica e, sobretudo, galaico-portuguesa, um pouco à maneira como havia feito Natália Correia, temos um excelente ponto de partida para ir mais longe numa reflexão que importa realizar ou aprofundar. @ Carlos Ribeiro
Zeca Afonso, a canção de intervenção e Grândola
Por Irene Pimental
«Aqui em Portugal, a canção de protesto – a chamada canção de protesto, ou social ou de intervenção, ou política – foi um elemento de perturbação, de agitação no bom sentido» – disse Zeca Afonso, ao lembrar que, antes de 25 de Abril de 1974, esse tipo de música tinha sido «objecto de grandes perseguições, proibições de transmissão, proibições de venda, coacções até sobre os próprios cantores». A partir de meados dos anos 60, foi um cantor comprometido (engagé, à maneira de Sartre), mas sofreu sempre com a contradição de atingir um público real, que não era aquele que na realidade pretendia atingir. «Eu gostaria de cantar para as pessoas para quem a canção poderá representar alguma coisa» – confidenciou- «mas isso não é possível…essa minha interferência, essa minha interrupção soaria como um acto de paternalismo»
Grândola, a canção
O ano de 1964 foi crucial para José Afonso, não só porque partiu para África, como porque foi então que escreveu o poema Grândola, Vila Morena. A Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) convidou-o para actuar, juntamente com Carlos Paredes, em 17 de Maio de 1964. José Afonso contou, mais tarde, ter ficado «brutalmente satisfeito com o convite» da «Música Velha» (SMFOG), descrevendo a «Fraternidade Grandolense» como um «local obscuro, quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca de evidentes objectivos revolucionários, uma disciplina generalizada e aceite entre todos os membros, o que revelava já uma grande consciência e maturidade políticas».
Quatro dias depois do espectáculo, José da Conceição recebeu de Zeca Afonso, então director da SMFOG, que o tinha convidado, uma carta, com um poema dedicado à colectividade: tratava-se de Grândola, Vila Morena. A canção propriamente dita teve quatro versões, a primeira das quais com três quadras: Grândola Vila Morena/Terra da Fraternidade/O povo é quem mais ordena/Dentro de ti ó cidade; Em cada esquina um amigo/Em cada rosto igualdade/Grândola Vila Morena/Terra da Fraternidade; Capital da cortesia/Não se teme de oferecer/Quem for a Grândola um dia/Muita coisa há-de trazer. A última quadra desapareceu, na segunda versão editada no livro Cantares de José Afonso, em 1967. Depois, surgiu, numa nova edição, em 1971, uma terceira quadra: À sombra de uma azinheira/Que já não sabia a idade/Jurei ter por companheira/Grândola, a tua vontade.
Quando, em Outubro desse ano, José Afonso gravou, em Paris, o disco Cantigas de Maio, onde incluiu Grândola, José Mário Branco sugeriu-lhe que repetisse cada quadra por ordem inversas dos versos, como faziam os coros masculinos alentejanos, e foi assim que a canção ficou gravada, com seis quadras, que, na realidade, eram três. Refira-se que, de forma profética, José Afonso afirmou, em 1973, que «Grândola» já não lhe pertencia e que se ia habituando à ideia de já era «uma canção colectiva», sem que ele próprio esperasse jamais que ela viesse a «ser utilizada para o fim que foi».
Musica Nova, no Coliseu dos Recreios, em Março de 1974
Segundo uma versão, o facto de alguns elementos do MFA terem assistido ao espectáculo do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em 29 de Março de 1974, menos de um mês antes do golpe de Estado que levou à queda da ditadura. Esse importante espectáculo, chamado Música Nova, revelador de que o regime ditatorial já havia perdido a hegemonia, a favor da oposição de esquerda foi vigiado pelo agente da DGS João Baptista Cabral da Costa, segundo o qual a segunda parte tinha sido preenchida pela distribuição dos prémios da Casa da Imprensa de 1970, cujo principal galardão fora entregue ao Dr. José Afonso, aplaudido por toda a assistência delirantemente durante cerca de 5 minutos.
Também o célebre Américo Paulo Maltez Soares, que dirigia a tropa de choque da PSP, elaborou, em 30 de Março de 1974, um relatório sobre o espectáculo, enviado ao Governo Civil de Lisboa e à DGS, onde assinalou o predomínio da juventude. Na segunda parte da sessão, tinham actuado os cantores José Jorge Letria e Manuel Freire, que disseram ter “«perdido» as canções que gostariam de cantar. O último acrescentou «que toda a plateia sabia muito bem onde as podia encontrar», tendo esses «apartes» provocado inúmeros aplausos da assistência.
A jornalista Regina Louro, que cobriu o espectáculo para o Diário de Lisboa, deu no seu artigo evidentes recados nas entrelinhas, descrevendo com humor o evento. À sua prosa deliciosa não faltou uma alusão à presença da PSP e da DGS:
Já o Coliseu estava guardado. As ruas próximas invadidas de veículos azuis, e muitas fardas nos corredores, mais os estranhos rostos onde não morava o desejo de assistir ao espectáculo. Havia ainda os bombeiros, porque, entre cinco mil pessoas, é extremamente fácil fazer saltar a faísca, e da faísca chegar ao incêndio (…).
Após José Jorge Letria ter deixado cair a piada: «Vamos cantar todos juntos, senão não nos aguentamos», Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo, o conjunto Intróito, Adriano Correia de Oliveira e José Afonso irromperam pelo palco, cantando, primeiro, individualmente, as «canções (poucas) que conseguiram fazer passar na alfândega”. Ao chegar a vez de José Afonso cantar a sua «também única (em princípio) canção, é que se sentiu como o calor tinha invadido a sala»:
Era como se em Grândola estivessem, no pino do Varão. (…) O público foi quem mais ordenou. À falta de cantigas, Zeca Afonso teve de repetir a que do Alentejo veio. Nessa altura, as luzes apagaram-se, Mas, quando a luz regressou à sala, viam-se, na plateia e na geral, os corpos cerrados acompanhando o ritmo. Ao lado da de Zeca Afonso, muitas vozes se elevavam. Mas não era apenas um conjunto de vozes. Era como que um grande canto colectivo.
Grândola, o hino
Um mês depois desse espectáculo, ocorreu um golpe de Estado do MFA, precedido por dois sinais de saída das tropas revoltosas. Às 22,20 horas, fez-se ouvir a voz de João Paulo Dinis, dos Emissores Associados de Lisboa, com o primeiro sinal, a canção Depois do adeus, de Paulo Carvalho. A segunda senha deveria ter sido Venham mais cinco, também de José Afonso. Um dos membros do MFA na Marinha, o comandante Almada Contreiras contou que, na segunda-feira anterior ao dia do golpe, se encontrara com o jornalista Álvaro Guerra, para preparar a última emissão do sinal de aviso às forças armadas, mas confrontara-se com o facto de Venham mais cinco estar proibida pela Censura, na Rádio Renascença (RR).
Por isso, a escolha da canção da senha recaiu sobre Grândola, por sugestão do jornalista Carlos Albino, que a deveria passar, na noite de dia 24 de Abril, no seu programa Limite, transmitido por essa estação radiofónica. Carlos Albino encarregou o jovem locutor Paulo Coelho de passar a canção e, finalmente, acabou por ser Manuel Tomás a gravar o programa, no dia 24, com a ajuda do locutor Leite de Vasconcelos, às 24 horas José Afonso afirmaria que só, mais tarde, «com o 28 de Setembro, o 11 de Março, quando recomeçaram os ataques fascistas e a Grândola era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo», se apercebeu do seu significado e teve, naturalmente, «uma certa satisfação».
Ele próprio concordou com a escolha, pois a canção «era aquela a que mais condições reunia para ser uma espécie de lugar geométrico, de pontapé de saída», pois era a única que se cantava em conjunto, de braço dado e de pé. Após Abril de 1974, Zeca Afonso viria a ser obrigado a cantar vezes sem conta essa canção, chegando mesmo a queixar-se de que, sendo ela de uma certa época específica, corria o risco de se vir a transformar num canto «revivalista». Por isso, afirmou que gostaria de ver «ultrapassado» o facto de essa composição se ter transformado num hino. Conforme lamentou, a canção, após 1974, passou a ser «um elemento, já não tanto de agitação, mas de mobilização», que, infelizmente, acabou por ser «instrumentalizada», «de tal forma que se lhe tirou a eficácia» e ela deixou de ser de «intervenção». Ao aludir ao «enterro do canto de intervenção», afirmou que tudo se resumia na seguinte pergunta: «para quem é que nós cantamos e em que circunstâncias cantamos?»
José Afonso reconheceu que ele próprio procurara «despir a canção de um certo número de subterfúgios» e, «talvez em prejuízo da música e do texto, utilizar um processo narrativo mais directamente popular», para que a realidade vivida pelos trabalhadores envolvidos no processo político viesse ao de cima, sem ser «afogada por letras e música demasiado apuradas». Afirmou que, no PREC, a canção, de certo modo, havia ficado reduzida a «um instrumento de combate antifascista» sem qualidade, que se limitava a dizer coisas da forma mais óbvia possível, para que o povo não tivesse o mínimo de trabalho de reflexão.
Noutra ocasião, afirmou que o canto de intervenção era «uma tentativa de infiltração na marcha social, ou melhor, na luta de classes», mas constituía também «uma relação entre a canção em si própria e as massas populares a quem se deve dirigir», originada, não apenas pela música, mas por uma dinâmica que «se estabelece no preciso momento em que se canta». A canção de intervenção implicava, segundo ele, um envolvimento e uma identificação crescente do próprio cantor com o que se estava a passar nas diversas lutas, em que ele intervinha, não apenas ao nível da canção, mas ao nível do seu compromisso como homem político.
José Afonso procurou um equilíbrio entre a qualidade estética e a eficácia interventiva da canção, embora, consoante as circunstâncias, tivesse dado mais ou menos importância a cada um desses dois pólos. Ao mesmo tempo que assinalava que a «arte panfletária não é, necessariamente, revolucionária», afirmou que a canção de intervenção não se deveria esgotar «num perfeccionismo que reduz a sua capacidade mobilizadora», defendeu que a canção política deveria retomar o filão da «ironia», do «escárnio, que era «uma atitude tradicionalmente ibérica e, sobretudo, galaico-portuguesa», um pouco à maneira como havia feito Natália Correia. Recusando a autonomia da forma, por considerar que esta nada podia significar, independentemente do conteúdo, ao serviço do qual devia estar, José Afonso afirmou porém, como Sartre, que era a partir da arte ou da literatura que o artista e escritor criavam uma dimensão política, e não o contrário.
Este texto baseia-se no livro de Irene Pimentel, José Afonso. Fotobiografias Século XX, dir, J. Vieira, Lisboa, Círculo de Leitores/Temas & Debates, 2010 (1.ª ed.)