11 de Setembro, 2024

DOSSIÊ ICE | O Alarme visto por dentro, ou a anatomia do rastilho de Grenoble

SEM FRONTEIRAS | 25 de fevereiro 2021 | Dossiê Imprensa clandestina e do exílio | O Alarme (I)

O jornal “O Alarme”, de linguagem simples e  directa foi um exemplo original na emigração, pela sua concepção, realização, e conteúdo.

por Manuel Branco

“Agora que andam por aí salazares empalhados, sujeitos que se alimentam no chafurdo da indignidade para se arvorarem em salvadores políticos, lendo aos seus apaniguados o catecismo do ódio e da intolerância, ameaçando uns e tentando agredir outros, apetece, mais do que nunca quando a demagogia e a mentira andam à solta, evocar os tempos ominosos de um país amordaçado e nessa evocação gritar: viva a liberdade !….”,  palavras recentes do meu amigo Fernando Paulouro que ilustram o que aqui nos traz.

Assistimos ao renascer de uma ideologia que conhecemos no passado com a qual a nova geração não lidou. Assistimos a uma tentativa de agrupar antigos pidescos fascistas, novos racistas e xenófobos, indivíduos machistas, pessoal sem escrúpulos nem raciocínios de solidariedade ou altruísmo e no meio disto muita gente do povo enganada.

Lobos e cordeiros

A facilidade como estas ideias recomeçam de novo, procurando penetrar e dividir a sociedade, metendo medo, procurando atrair os mais pobres e mais vulneráveis, todos quantos  a sociedade vai deixando de lado, procurando o caos para se irem afirmando como os únicos capazes de instaurar a estabilidade, não nos podem deixar indiferentes. Aludem ser a solução para o descontentamento e o desgaste do cidadão face às falcatruas e desvios de dinheiros públicos a que vamos assistindo com relativa impunidade.

Mas a história está cheia destes exemplos começam como cordeiros, e acabam como lobos.

Para essa ventura já demos  que chega durante quase meio século e cabe-nos hoje a imperiosa responsabilidade de debater, elucidar, ouvir e agir.

Nos anos 61/74, perto de um milhão de portugueses (França), para fugir à fome, decidiu procurar noutros países da Europa condições e sustento para viver e educar os seus filhos. No exílio, muitos deles decidiram combater o regime fascista e a guerra colonial, dando tudo por tudo para acabar com a situação desastrosa de analfabetismo  e miséria que o pais vivia.         

Falar do exemplo de lutas e organização que tantos de nós adoptámos para combater os anos cinzentos do fascismo aqui, ou no exílio, pode ser uma alavanca para nos ajudar a estoirar na raiz tudo quanto possa criar divisão, ódio, arrogância e ataques pessoais no seio do povo e abrir caminho a novas ideais fascistas. Portugal que tanta gente envio para o exílio e portugueses que foram acolhidos por essa Europa fora não pode esquecer hoje aqueles que procuram exílio em Portugal

Como nasceu o jornal “O ALARME”

Grenoble nos anos 61/74

Unidade, solidariedade, organização, comunicação

Maio de 1968 prolongou-se em Grenoble e em1972 a conjuntura política e militante era propicia para a nossa iniciativa, o meio estudantil continuava com uma certa efervescência, Grenoble tinha um presidente da câmara , Hubert Dubedout, humanista e visionário, um grupo de franceses tinha criado o jornal Vérité Rhône-Alpes (VRA) para apoiar as lutas e contrapor a informação que o Dauphiné Libéré ( do grupo Hersant) ia deturpando.

Sem grandes meios, sem jornalistas, sem publicidade, sem apoios outros que a venda do jornal, partindo da força de vontade e de um ideal de acabar com o regime  fascista de Salazar e com a Guerra Colonial um punhado de jovens lançaram-se numa aventura de que não mediram na altura o impacto.

Nos fins dos anos 71, tínhamos conseguido uma sala para o trabalho associativo que a Câmara de Saint Martin d’Hères nos emprestou e  em 1972 era criada a Associação Franco-Portuguesa de Grenoble com sede na rua Marcel Peretto. Estes dois locais  passaram a ser o centro de todas as actividades ; folclore, baile, bar, organização de excursões, teatro, projecção de filmes,  jogos de futebol, discussões, cinema, piqueniques, agitação permanente..… A ideia era sempre a mesma, passar dos problemas de cada um, transformá-los em problema colectivo e mobilizar os trabalhadores. A atividade desenvolvida nos bairros em Grenoble, Fontaine, Échirolles, Saint Martin d’Hères crescia, era preciso ir mais longe, unificar todo este trabalho, alargar a nossa influência junto da emigração, levar as nossas ideias a outras terras, fazer participar novos emigrantes .

Nessa altura certamente a minha proximidade com o « Jornal do Fundão » nos anos 60, levou-me a pensar na criação dum Jornal popular de massas que abrisse uma brecha no obscurantismo ambiente, (“O Correio Português” pago pelo governo através dos consulados e “O Portugal Popular” pago pelos Bancos), que encorajasse os trabalhadores na luta contra o regime fascista e a Guerra Colonial.

A primeira reunião

A primeira reunião para lançar a ideia e discutir da necessidade de um Jornal teve lugar numa sala da Associação Franco-Portuguesa de Grenoble (AFPG) no dia 7 de Junho de 1972. Estavam presentes uns 30 trabalhadores, cito de memória ( Agostinho, António Oliveira, António e Teresa  (Pedrinhas), Júlio (de Viana), Chico (da Croix du Pâtre), Shirrah (falecida em 2014), Teresa Couto, Cruz, Ilda, Merita Andrade, Zé Carlos Perdigão, Godinho, Zé Chaves, Christiane, Esteves, Chaves (o Louro-falecido em 2014),Toni (da mota), Nogueira (operário da SDEM), Gomes (o barbas), Guedes, Merendão, Simões, Coelho e mulher, Faria, Manuel Branco entre outros. A ideia foi discutida e bem aceite mas como fazer ?  

Uma certa ousadia, uma aventura que arranca do nada a não  ser a vontade e a determinação de um punhado de homens e mulheres. Não havia tipografia, nem dinheiro nem jornalistas que diabo íamos nós fazer ? 

Michel de Sigoyer (Michel Sigo), responsável do jornal VRA, amigo e camarada de sempre, com quem trabalhávamos há vários anos, aceita a ideia que o nosso jornal seja um suplemento do « Vérité Rhône-Alpes-(VRA)». A emigração local era na maioria oriunda do triângulo; Braga-Guimarães-Pevidém. Era uma emigração rural, sem hábitos de leitura, com pouco tempo para ler, e alguns analfabetos, lembramos que 25,7% da população com mais de 10 anos era analfabeta. Nessa altura o jornal era local e tinha de captar estes possíveis leitores.

Tínhamos receio que a PIDE rodasse por aí…( o que se veio a provar depois do 25 de Abril) , era necessário uma redacção  clandestina e assim foi.

Uma redação no apartamento

A equipa viria a evoluir no tempo, mas Zé Chaves, Shirrah Hurwicz, Merita Andrade, Teresa Couto e Manuel Branco são os iniciadores da obra, de seguida integraram o projecto, o Esteves, o Asdrúbal, o Guedes, etc…  se a memoria não me atraiçoa.

A redacção reúne-se pela primeira vez em meados de Junho de 1972, no rés do chão de um pequeno apartamento habitado pelo Zé Chaves e a Shirrah, num bairro popular (“La Plaine” em Saint Martin d’Hères) nos arredores de Grenoble. O ambiente relacional começa a definir-se assim como a ocupação periódica do local, sabemos que ao fim de cada reunião tudo deve ficar arrumado e limpo, dado que o espaço da redacção se transforma em habitação.

Começa a nossa aprendizagem de redactores, compositores, revisores e por aí fora….era um trabalho artesanal. A composição tinha de obedecer ao formato definido com o tipógrafo, Michel Sigo . Vários títulos andam na baila mas acabamos por escolher “O ALARME” parecia evidente, queríamos alarmar e animar a malta….

Para as tarefas, cada um deita a mão ao que melhor sabe fazer. A Shirrah, metódica e persistente o seu forte era a maquina de escrever  e a Merita, com o seu sotaque Madeirense e sempre sorridente depressa se impôs para a revisão das provas. O ambiente das reuniões repete-se regularmente; em cima da mesa um amontoado de papéis, e da cafeteira da cozinha ia chegando o cheiro do café. A Shirrah é mais pelo chá, outros era a cervejinha fresca. Dos cinco comparsas iniciais ninguém fumava o que já era bom para o ambiente fechado em que trabalhávamos.

Não há fotocopiadora, os títulos são feitos à mão com uma caneta de feltro, esferográfica  ou com “Lettra set”, o que tentamos evitar por ser muito caro. Temos uma pequena maquina de escrever portátil, papel, uma borracha, um tubo de cola, uma tesoura, uma régua , um esquadro, uns lápis, umas canetas de feltro preto, o “Liquid Paper” e o ”Typewriter” para as correcções e pouco mais……

Colunas de 7,5 cm

 A tesoura está preparada para os recortes e o tubo da cola aberto. A campainha da porta não vai tocar, o grupo chegava sempre a horas. Lá fora a noite já aperta mas é sempre assim todos trabalham de dia.

Durante as primeiras semanas do mês recuperam-se as informações, ilustrações, fotos, cartas que chegam etc… a ultima semana é para fazer a maqueta e levar à tipografia. O jornal deve estar pronto sábado para ser distribuído no primeiro Domingo de cada mês.

A Shirrah logo que tinha algum tempo livre ia transcrevendo à máquina para avançar o trabalho, como não podia cortar e colar  como estou a fazer ao escrever estas linhas, as novas tecnologias ainda não tinham chegado, quando se enganava numa ou duas letras apagava com o corrector branco e esperava que secasse e quando o erro era maior recomeçava tudo de novo. Tudo tinha de ser escrito em colunas de 7,5 cm para nos permitir uma paginação a 3 colunas no formato definido.

Caixa de correio emprestada

Mas voltamos à composição do jornal. O Zé Chaves, homem eficaz e de poucas falas, era “homem” para toda a colher, deitava a mão a tudo, recuperava as cartas em casa de um amigo nos arredores de Grenoble que nos emprestava a sua caixa do correio.

Todos podiam dar a sua opinião. Quais os artigos que pareciam mais importantes para a primeira página? que titulo vamos dar a este artigo ? o  que nos parece mais oportuno para o as noticias do mês ? . Quando as escolhas eram difíceis, a opinião do autor destas linhas improvisado redactor/paginador era uma voz respeitada, e a Teresa, sempre atenta à defesa dos direitos das mulheres e contra o machismo, não deixava passar nada, ia cortando e colando ao meu lado.

Por vezes a maqueta de ume página estava quase acabada quando nos apercebíamos que o texto não cabia nela e que sobravam duas linhas para a página seguinte, impunha-se reduzir o texto o que por vezes implicava escrever tudo de novo. 

Pela noite fora, quando já é a segunda vez que a tesoura corta uma linha errada do texto, ou que se colou no meio da coluna a parte do texto que deveria ir no final… ou que por vezes o titulo tinha sido colado fora do sitio… ou que o texto aparecia com uma palavra repetida……eram enganos a dar sinal de fadiga.

Era como dar à luz um recém nascido

Cada reunião era um momento de convívio, troca de impressões leitura do material recebido, gargalhadas e ansiedade pelo jornal que ia sair. A saída de cada numero era uma alegria imensa , era como dar à luz um recém nascido. O problema é que não tínhamos 9 meses para realizar o próximo. Ia o jornal para a tipografia e já estávamos a preparar o seguinte.

O Jornal apoiava-se na tipografia de « La Monta » e Michel de Sigoyer (falecido em 2002 numa « avalanche ») foi o tipógrafo militante sem falhas  que nos acompanhou desde o primeiro numero. Comprometeu-se a imprimir o Jornal para o 1° Domingo de cada mês, com a excepção do mês de Agosto. O Zé Chaves assegurava a ligação com a tipografia que estava situada num local semi-clandestino em St. Egrève (perto de Grenoble). O Jornal era pago com as vendas e nunca havia atrasos nos pagamentos. É interessante ler as contas do jornal publicadas no n°2 “… total dos jornais vendidos 302 Fr. (o jornal era vendido a 1Fr.) O n°1 custou (despesas de impressão, tinta, papel etc.) 272 Fr…..restam em caixa 30Fr ” .  Isto quer dizer que desde o n° 1 o jornal sempre viveu unicamente das vendas, sem recurso a publicidade e nunca havia atrasos nos pagamentos. Após a saída e o sucesso do  primeiro numero a 30 de Julho de 1972 foi necessário estruturar a distribuição.

Os ardinas

Foram criados responsáveis por sector e cada sector organizava grupos de « ardinas ». Em função do local de habitação “os ardinas” decidiam onde iam vender o jornal. No primeiro domingo de cada mês o jornal saía para a rua, para os bairros, para os mercados etc….Cada grupo definia as palavras de ordem que queria utilizar, lembro-me por exemplo no mercado da Abbaye gritavam “comprem O ALARME”, o jornal que fala mal dos patrões !.”.  O primeiro domingo do mês era reservado  para a região, nos domingos seguintes havia grupos que partiam para mais longe, Chambery, Annecy, Lyon, Genève etc..   

Na região não tínhamos grandes problemas nas vendas com possíveis opositores, mas por exemplo na região de Paris por vezes havia confrontos difíceis ao ponto que certos militantes franceses vinham dar a mão aos ardinas do Alarme. Geralmente havia 3 ou 4 ardinas por grupo o que permitia entrar em conversa acesa com os trabalhadores e dar resposta ao  questionamento; “…quem faz o jornal ?..”, “..para onde vai o dinheiro das vendas ? ”, ”.. porque é que vocês são contra os patrões..?”, “..eu fiz a guerra tive que gramar…porque é que vocês são contra…?”, “vocês deviam era falar do meu patrão..” . Procurávamos sempre angariar ideias, testemunhos, contactos para alargarmos a nossa influência. Qualquer escrito, desenho, carta ou recorte de jornais eram sempre matéria preciosa a recuperar. 

O equivalente da assinatura em selo

Pouco a pouco procurávamos criar responsáveis noutras cidades para distribuir e recolher informações. A partir do n° 3 de Novembro de 1972, lançamos a ideia das assinaturas. Recordo-me com certa emoção quando um leitor que queria ser assinante nos enviou o equivalente da assinatura em selos. O jornal crescia, recebíamos cartas, chegavam assinantes, as vendas e as tiragens aumentavam de numero para numero. O jornal era pago exclusivamente com as vendas (1 Franco), sempre recusamos a publicidade e logo no primeiro numero dizíamos « …não queremos que os bancos, as empresas, os patrões, os consulados, ou outros lacaios venham por a pata no nosso jornal…. ». Isto implicava que o número de tiragens tinha de ser calculado sempre em função das vendas para não haver perdas… talvez a razão porque as colecções do Alarme são hoje tão raras….mas como era um menino querido dos militantes alguns nunca se desfizeram deles !

Um Jornal para apoiar a luta dos trabalhadores, em Portugal e na imigração, a recusa do fascismo e da guerra colonial, o trabalho associativo e a luta das mulheres.

Manuel Branco, editor do Alarme e colaborador permanente do SEM FRONTEIRAS

Foto de destaque Merota Andrade, Manuel Branco e Teresa Couto, fundadores do Alarme © Carlos Ribeiro

Editor

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