La plus secrète mémoire des hommes
LIVROS E MÚSICA | Luísa Semedo – Paris
Antes de tudo… tão feliz pelo Mohamed Mbougar Sarr e o seu Goncourt para o “La plus secrète mémoire des hommes”, cujas palavras eu havia partilhado por aqui há uns dias. A literatura tem destas coisas, quando o autor partilha connosco da forma mais sincera possível aquilo que é, a matéria de que é feito, os seus desassossegos, as suas esperanças, no fim temos a impressão de o conhecer, de passar a ser um íntimo. Ao ouvir há pouco as entrevistas do Mohamed estava emocionada e orgulhosa como se ele fosse um “petit-Grand Frère”.
Não tenho dúvidas que, ainda mais do que em conversas ou em entrevistas, é através da literatura que brota a verdade.
Que se ousa dizer mais de si e da sua relação com o mundo do que através de qualquer outra forma de expressão, mesmo se através de caminhos tortuosos, e mesmo se não nos damos conta daquilo que no escapa e que afinal é a verdade mais profunda. Mas se estivermos atentos está lá tudo (ou quase tudo). E essa é também uma das maiores forças do livro do MMS. Costumo dizer aos meus filhos e alunos que a arte é generosidade, é dádiva. O artista decide partilhar connosco o seu íntimo, o seu mundo, a sua solidão. Considera-nos dignos dessa partilha, dessa confiança.
MMS passa o tempo a interrogar-se sobre o sentido da literatura, sobre o sentido da vida, dentro da grande questão sem fim sobre a natureza humana.
“La plus secrète mémoire des hommes” é um livro obrigatório para quem escreve, independentemente do seu “estatuto” no “mundo das letras”. É também um livro para quem vive ou viveu o exílio, a busca por outra vida, a busca do sentido, a revelação daquilo que está para além da montanha.
A ambição de MMS enquanto escritor está presente em todo o livro, e essa ambição é estranhamente tocante e ao mesmo tempo inspira o respeito. Tocante porque lemos os defeitos, lemos aquilo que lhe falta viver para poder contar, nomeadamente em relação às mulheres. Nesse campo a escrita de MMS ainda é frágil e por vezes cai no estereótipo ou na visão idealizada da mulher ao serviço do imaginário erótico do homem. MMS não é perfeito e isso é tocante porque na sua fragilidade coabita a procura do aperfeiçoamento, e é precisamente aí que entra o respeito. A ambição de MMS é acompanhada de exigência. E essa exigência obriga-nos a ser também mais exigentes naquilo que escrevemos, naquilo que fazemos.
Não me vou alongar sobre a ambiguidade de sentimentos que MMS tem em relação a este tipo de recompensas.
Considero que não foi o Goncourt que o recompensou, foi ele que recompensou e prestigiou o Goncourt com a sua presença.
O prémio como fim não importa, até porque o júri em algumas declarações, como previsto, desiludiu. Isto de premiar um “escritor africano” tem as suas armadilhas marotas. O prémio é importante porque é um meio, um meio para que MMS possa continuar a escrever (os artistas também comem), que a sua voz chegue mais longe, que sirva de modelo a tantas e tantos outros, que seja traduzido, inclusive em português (espero, etc.).
Mohamed Mbougar Sarr é um escritor senegalês, é negro, chama-se Mohamed. E num mundo não racista ele não precisaria de se justificar sobre a verdadeira razão deste prémio, não precisaria de dizer que o prémio se deve à qualidade literária e não a outras razões descabidas, partilhadas de forma indigna em tantos comentários à sua vitória. Num mundo não racista os artistas negros não precisariam de ser o tempo todo reduzidos às questões raciais, sobretudo quando as suas obras contêm tantas outras dimensões (que o diga a Chimamanda Ngozi Adichie que mesmo quando escreve um livro sobre a questão do luto depois da perda dos seus pais, obrigam-na em França, no maior programa literário, a dialogar com três outros convidados sobre a questão da escravatura e do racismo, quando ela queria manifestamente falar de outro tema). Impossível para MMS de fazer impasse sobre a questão do racismo no seu livro, mas não é de todo esse o tema central,
um artista negro também ambiciona à universalidade, a ter o direito de escrever sobre a natureza humana.
O artista negro será sempre suspeito por falar de mais ou de menos da sua cor de pele. Se “fala demais” é um ativista perigoso, se fala de menos obrigam-no a não sair das suas supostas fronteiras. Não te estiques, ó africano! (Isto também é válido para outros domínios como por exemplo na política.) No livro, Mohamed põe estas palavras na boca de um personagem: “Será que as coisas hoje são diferentes? Fala-se de literatura, de valor estético, ou fala-se de pessoas, do seu bronzeado, da sua voz, da sua idade, dos seus cabelos, do cão, do pelos da gata, da decoração da casa, da cor do casaco?”
E partilho mais este excerto, mas na língua original, sem a traição da tradução: “Ce que tu penses être la vérité entière n’est qu’un fragment parmi mille fragments.” O mesmo é válido para os artistas negros que têm direito a ser o múltiplo dentro da unidade do ser.
Partilho um último excerto bonito (mas o melhor é mesmo ler o livro) :
“Je te dis qu’il vaut mieux ne pas écrire si tu n’as pas au moins l’ambition de faire trembler l’âme d’une personne ».
Mission accomplie, cher Mohamed Mbougar Sarr. Bravo pour le livre.