15 de Setembro, 2024

TEATRO | A partida

Por Ricardo Correia

“Ainda hoje levei coisas do Jorge Silva Melo para falar dele aos alunos. É uma pena a sua partida!” assim comentou de forma franca e direta Ricardo Correia a partida de Jorge Silva Melo que queríamos destacar, pelo homem e pela obra, aqui no Sem Fronteiras. E que melhor texto que aquele que o professor, o dramaturgo e encenador de Coimbra escreveu sobre JSM para espelhar de forma viva e particularmente sentida o que vai na alma da comunidade informal do teatro.

Ainda ontem falava do Jorge Silva Melo numa aula de História de Teatro aqui em Coimbra.Ainda ontem li o seu prefácio ao teatro de Esquilo num livro da editora Estampa. E continuaremos a falar dele, sempre.

Na verdade conheci-o há pouco tempo, mas é como se fizesse, desde sempre, parte do território que habito no teatro. Lembro-me d` A Queda do egoísta Johann Fatzer que os Artistas Unidos fizeram com um elenco, que me pareceu do tamanho do mundo, no Theatro Circo, em Braga, talvez em 1999. Depois fui um frequentador assíduo do espaço A Capital dos Artistas Unidos no Bairro Alto.

Um fim-de-semana em Lisboa era passado sinónimo de me empanturrar n`A Capital´ com espetáculos ou a fazer workshops. Lembro-me da energia e atração gravitacional que este teatro gerava. Uma fábrica de teatro. O JSM, antes da Ryanair e EasyJet trouxeram magotes de turistas internacionais, já ele trazia `charters´ com inúmeros dramaturgos internacionais e com isso lançou as bases para a expansão da dramaturgia contemporânea internacional em Portugal.

Vi e li pela primeira vez Sarah Kane, Harold Pinter, Samuel Beckett, David Harrower, Francisco Luís Parreira, Arne Sierens, Duncan McLean, Spiro Scimone, Jon Fosse, entre tantos outros na A Capital e nas edições dos Artistas Unidos. A Revista dos Artistas Unidos, publicada desde 1999, fazia a síntese entre a teoria e a prática, ladeada posteriormente pelos Livrinhos de Teatro, já com mais de 140 números. Edições que permitiram a um preço acessível democratizar o acesso a textos de teatro contemporâneo traduzido para português.

Fui acompanhando as deambulações dos Artistas Unidos à procura de espaço em Lisboa até assentarem no Teatro da Politécnica. Lembro-me em 2004 de ir ao Teatro Taborda ver Jon Fosse encenado pelo João Fiadeiro; em 2008 o inesquecível espetáculo Esta noite improvisa-se com a Lia Gama e o Cândido Ferreira no Teatro Nacional D. Maria II; das suas passagens pelo Teatro São Luiz, até assentarem no Teatro da Politécnica onde, entre outros, me rendi ao dramaturgo Enda Walsh. Não posso omitir as passagens que fizeram por várias cidades, onde também fui espectador assíduo, mas sobretudo recordo-me das suas vindas a Coimbra.

No TAGV Orgia do Pasolini com o José Airosa e Sylvie Rocha, 2006; Misterman de Enda Walsh, com o Elmano Sancho, 2016. No Museu dos Transportes, Sabat Mater de António Tarantino, numa interpretação inigualável da Maria João Luís, 2007. Na Oficina Municipal do Teatro / O Teatrão assisti a Ana de José Viera Mendes, com António Simão, Pedro Lacerda, Rita Brütt e Sylvie Rocha, em 2009 (com direito a Masterclasse com o JSM); O espetáculo A 20 de Novembro de Jon Fosse, com o João Pedro Mamede, em 2013; A Estalajadeira de Goldoni, com a Catarina Wallenstein no papel principal, também em 2013; Jogadores de Pau Miró, com o Américo Silva, António Simão, Pedro Carraca e João Meireles, em 2015; entre outros espetáculos.

Um teatro feito com autores e atores, com uma presença contínua e assídua em inúmeras cidades do país. A sua presença cá em casa faz-se pelos dvd`s que documentam a vida e obra de vários sobre artistas plásticos, quer pelas Revistas, Livrinho de Teatro e inúmeros livros de bastantes editoras portuguesas: Relógio D`Água, Cotovia, Quasi, Bicho do Mato, entre outras. E claro, pela literatura-do-eu com Século Passado e A mesa Está Posta, livros que dão lugar à palavra, à memória como forma de resistência, e mais do que nostalgias de fim de vida, lançam debates e futuro para o tecido teatral.

Tudo isto serve para registar a influência, quer individual, quer no panorama teatral português do percurso singular de JSM como ator, encenador, homem do teatro, cineasta, tradutor, escritor. Numa vida incomensurável e dedicada à Arte. Chamava-me ó minhoto! Um dia a trocar ideias sobre a revisão dos livrinhos de teatro, lembrou-se da sua passagem pela minha terra Barcelinhos e claro, dos seus engarrafamentos para se atravessar a ponte. Fizemos, nesse dia, uma viagem na minha terra. A ele, à família, amigos, e aos Artistas Unidos um abraço enorme”.

Reproduzido com a autorização do autor; originalmente publicado no seu mural das redes sociais.

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