Latouche e a felicidade
L’abondance frugale comme art de vivre – Bonheur, gastronomie et décroissance (Autor: Serge Latouche)
Comentários sobre o conteúdo dos diferentes capítulos
Por Filipe do Carmo
Première Partie: La décroissance et les paradoxes du bonheur – La joie de vivre dans la frugalité
- Les vicissitudes de la « vie bonne »: de la béatitude au bien-avoir (pags. 15-39)
Foi referido no Comentário anterior que a palavra “felicidade” devia ser acrescentada à lista das “palavas tóxicas” (opinião de Ivan Illich). Convém agora chamar a atenção, dado o que Latouche desenvolve logo após a sua Introdução, para o facto de a palavra que até então foi maioritariamente utilizada em francês para o que traduzimos por “felicidade” ser “bonheur”. Ora outras palavras foram utilizadas por Latouche que podem ser traduzidas em português por “felicidade” e o título acima inclui duas (“vie bonne” e “bien-avoir”) ou mesmo três (se lhes acrescentarmos “béatitude”, palavra que no entanto já se traduziu no texto anterior por “beatitude”). Tentar-se-á no presente texto abstrair tanto quanto possível dessa diversidade de palavras francesas que tendemos a traduzir por felicidade, pois a preocupação maior de quem está a comentar é o “decrescimento”. Começar-se-á por prestar atenção ao sentido que beatitude tinha para os religiosos da Idade Média, uma perspectiva fortemente espiritual, celeste mesmo, imaterial e colectiva, enquanto o ideal de vida que se começa a afirmar com o Iluminismo, mas tem precedentes no Renascimento, altura em que foi desencadeado o início de uma mudança radical (Antoine de Montchrestien (1575-1621) – visto por alguns como representante do mercantilismo francês – já afirmava no seu Traicté d’oeconomie politique de 1615 que “L’heur des hommes consiste principalement en la richesse”). Tal mudança é aliás precedida pelo aparecimento da palavra bonheur no século XIII (indo à etimologia, a palavra significa, conforme já referido, “bom augúrio”).
Serge Latouche
Diderot
Atente-se em que Denis Diderot (1713-1784) acrescenta uma palavra, como não poderia deixar de ser, às acima referidas, para intitular o artigo que escreve para a Encyclopédie: “Béatitude, bonheur, félicité”. E o artigo refere: “Le bonheur marque un homme riche de biens de la fortune; la félicité, un homme content de ce qu’il a; la béatitude nous attend dans une autre vie. La jouissance des biens fait la félicité; leur possession le bonheur; la béatitude réveille une idée d’extase et de ravissement, qu’on n’éprouve ni dans le bonheur, ni dans la félicité de ce monde”.
Adam Smith
Latouche afirma que, com a Escola Escocesa do economista Adam Smith (1723-1790), se passa da félicité pública à félicité do público, o que traduz a emergência do bonheur a coincidir com a ascensão da ideologia liberal enquanto projecto de construção de uma sociedade individualista que preconiza a neutralidade ética dos meios governamentais, contribuindo assim para evitar as guerras de religião.
Os comuns
Mas a sociedade individualista começa a afirmar-se mais cedo, com o Movimento das Enclosures (processo que serviu para pôr um termo aos direitos tradicionais que incidia sobre os campos comuns – The Commons – que eram utilizados pelos aldeões tanto para fazer pastar os seus animais como para cultivar produtos vegetais destinados à alimentação), cujo desenvolvimento teve lugar sobretudo a partir do século XVIII nas Ilhas Britânicas, mas com raízes na Holanda desde cerca de seis séculos antes. Esse movimento que, com os desenvolvimentos da industrialização, alastrou ao Norte da Europa, conduziu a que a utilização das terras senhoriais que foram sendo vedadas fosse limitada a alguns indivíduos escolhidos pelos proprietários. A situação foi sendo regulamentada na Grã-Bretanha através de grande número de Enclosure Acts (que se sucederam até final do século XIX) e de que se destacam os de 1773 e de 1845, além do General Enclosure Act de 1801 (cuja maior importância se deve ao facto de ter dado consistência às leis anteriores que foram instituindo as Enclosures).[1]
Felicidade e dinheiro
Assim, e de acordo com Latouche, o buon governo foi-se reduzindo ao que hoje em dia designamos por good governance, ou seja, a gestão mínima do quadro do livre jogo dos interesses particulares, verificando-se que, para os Modernos, a felicidade (actualmente, como se viu acima, designada em francês por bonheur) acaba por estar estreitamente associada ao dinheiro. E se habitualmente se admite que o dinheiro nem sempre leva à felicidade, o que é certo é que existe unanimidade para dizer que a sua ausência torna as pessoas infelizes. Será talvez mais adequado falar de “qualidade de vida” ou “vida agradável” em português (a vie bonne que Latouche refere) quando se procura medi-la através do PIB per capita, conforme é feito com frequência na literatura económica. Ora, para Latouche, essa evolução – uma verdadeira convulsão – a partir do conceito de félicité,que ocorreu entre os séculos XVI e XVII no Ocidente, requer, para ser compreendida, explicação.
(Ponto 1: Les vicissitudes de la « vie bonne »: de la béatitude au bien-avoir – a continuar)
Lisboa, 19 de Abril de 2022
Filipe do Carmo
[1] Para alguns desenvolvimentos consultar em particular na WIKIPÉDIA
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