A democracia local em Portugal
OPINIÃO | Livro A democracia Local | António Cândido de Oliveira
Por Nelson Anjos
A breve epígrafe, logo na primeira página do livro de António Cândido de Oliveira, anunciando que “o principal desígnio desta coleção resume-se em duas palavras: pensar livremente”, e considerando também que o conceito de democracia tem mais a ver com ideias de política do que com aspetos administrativos, no sentido técnico-profissional do termo, levaria a pensar que “A Democracia Local em Portugal” não fosse aquilo que o autor fundamentalmente escreveu: um breve resumo comentado de Regulamento de Administração Pública.
A coleção “Ensaios da Fundação” – Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) – de que o volume em apreço é o número 116, bem como outras publicações da FFMS, fora da coleção, abarcam já um vasto leque de temas que, dos que li, me deixaram sempre, uns mais outros menos, a disposição para o elogio. Saúda-se pois o magnífico serviço – é disso que se trata – que a FFMS vem prestando à comunidade, em tantas áreas onde é necessário ensinar, colmatando as muitas lacunas deixadas pelas instituições a quem tal, por lei e inerente obrigação, compete: as escolas. Mas não é este o caso. Numa área – a educação para a cidadania – parente mendigo num vasto oceano de iliteracias, A Democracia Local em Portugal, tolhida por códigos, regulamentos e medo de pisar algum risco academicamente proibido, não arrisca uma única ideia que pudesse levar qualquer Doutor do Templo a franzir o sobrolho.
Não indo além do enunciar a realidade, diz-se nas primeiras linhas da introdução: “A ideia de que a democracia local é fundamentalmente a eleição periódica de presidentes de câmara municipal e de presidentes de junta de freguesia está muito divulgada, mas é pobre e perigosa. (…) É perigosa porque afasta os cidadãos de uma prática regular da democracia, tornando-os mais súbditos do que cidadãos (…)”
Ora, acontece que, ao diagnóstico certeiro deveria corresponder prescrição para o tratamento. Mas, aí, em vez de pensar livremente, a pena do ensaísta inibiu-se. E, da longa lista de “Sugestões para aperfeiçoamento e consolidação da democracia local”, fico-me pelo ponto 7); onde se refere “o direito à formação dos eleitos locais (…)”, e onde, por mim, substituiria direito por obrigação. É sabido o que se verifica amiúde: a incompetência e impreparação dos eleitos a ser muitas vezes colmatada pelo saber de experiência feito dos trabalhadores das câmaras e juntas de freguesia. De corrupção e compadrio autárquico e ausência de escrutínio efetivo o autor também desconhece, “e aos costumes disse nada”.
Não penso que a pobreza da nossa democracia se deva a falta de leis, ao incumprimento de umas, ou à qualidade questionável de outras. Mesmo onde isso aconteça – e o autor dá exemplos – os problemas maiores são outros.
Desde logo o tão rebatido afastamento dos cidadãos da vida pública – sobejamente atestado pelos números da abstenção em atos eleitorais – onde culpas próprias não mitigam culpas alheias: o cinzentismo das propostas eleitorais, a indisfarçável ignorância e impreparação de muitos candidatos (há exceções e o mal é esse: serem exceções), os programas das diversas listas candidatas que em regra se ficam por um enunciado de medidas desconexas, avulso, muitas vezes repetindo, por manifesta falta de imaginação, saber e criatividade, o que foi dito quatro anos antes, apostando no esquecimento do eleitorado. Sendo normalmente denominador comum a ausência de qualquer visão ou perspetiva estratégica, para o concelho ou freguesia, consoante o caso. Claro que, assegurar com qualidade a prestação de serviços tais como o saneamento básico, a distribuição de água ou a manutenção das vias públicas, entre outros, sendo necessário não esgota a tal Democracia Local. Que em muitos casos começa e acaba com os dois ou três “notáveis” do costume, a encabeçarem a lista do costume, onde o resto é isso mesmo: o resto do costume. Para perfazer o número necessário de elementos, dois ou três dias antes do prazo limite bate-se à porta da Maria, do Manel e do Zé, que “são dos nossos”, e mendiga-se “o nome p’rá lista”. É mais ou menos assim o “boneco” na pequena freguesia rural, mas é-o também, cada vez mais, – com alguns cuidados em cosmética e adereços – em unidades administrativas de maior dimensão. Concelhos e freguesias.
Sobre este estado de coisas, e ideias para o debelar, Cândido de Oliveira nada diz. O que, como resultado de pensar livremente é pouco. Claro que os intérpretes da democracia adormecida que temos agradecem não ser incomodados. (Mas cá para nós que ninguém nos ouve: depois, não se queixem dos “populismos”! …)
nelson anjos