O nosso dever de memória
MEMÓRIAS E EXÍLIOS | Encontro de Narradores e Autores, 8 de junho 2022
Por Helena Pato, 10 de junho 2022
Vídeo | Imagens do Encontro
A memória e «A Noite Mais Longa de Todas as Noites» *
Helena Pato
1. O NOSSO DEVER DE MEMÓRIA
A preservação da memória do regime fascista, que continua tão descurada – e, não raramente, desprezada – pelas diversas instituições do Estado, é, a meu ver, uma questão cada vez mais oportuna na nossa cidadania. Desde logo, para procurarmos impedir que se escamoteiem os progressos obtidos com a implantação da nossa democracia. Custa-me ler e ouvir diariamente frases como “o Tarrafal está entre nós” e afirmações do género “actualmente está-se pior do que dantes” – o que reflecte um desconhecimento profundo do que era o país antes do 25 de Abril.
Considero de extraordinária importância tudo o que possa ser realizado e produzido com o objectivo de carrear memória e memórias do período de 1926 a 1974 para a História que, nas Universidades, se desenha, se escreve e se vai construindo. Importam, a meu ver, não apenas o contacto directo com os jovens nas escolas e as visitas a museus da Resistência, mas também a divulgação de trabalhos dispersos de pesquisa, tais como artigos, documentários, biografias e, na área da ficção, romances, peças de teatro, vídeos, filmes. Constituem sempre valiosos contributos para a informação e consciencialização das crianças, dos jovens e daqueles que não viveram esse período da História de Portugal, ou cujas vidas se desenvolveram, então, à margem ou na ignorância da realidade do regime. A história do regime fascista e da Resistência, desde a ditadura militar até 1974, está ainda demasiado circunscrita à investigação no espaço das academias, mas tem de ser levada às novas gerações, usando todos os meios e com a objectividade desde já possível. E quando digo às novas gerações, penso também nos novos professores de História que, em grande parte, ignoram o que foram a Ditadura do Estado Novo e a Resistência.
O tempo urge. A divulgação do que foi a miséria no regime opressivo e repressivo dos 48 anos de Ditadura em Portugal – a mais longa ditadura no mundo – é um factor fundamental na prevenção da ascensão da extrema direita ao poder. O desconhecimento das ditaduras do século XX tem-se revelado um facto sempre que ficamos perante as causas dos retrocessos anti-democráticos no mundo.
2. AS REDES SOCIAIS
Há 12 anos criámos, no Facebook, um grupo destinado a dar voz a resistentes anónimos e a divulgar testemunhos, lutas, e atrocidades do regime, evocando momentos duros e, também, momentos empolgantes da resistência. Nasceu o «Grupo Fascismo Nunca Mais» (um grupo distanciado dos partidos políticos, hoje com 19 mil membros, apesar de ser um grupo fechado e de as entradas serem submetidas a escrutínio contra a extrema direita). Por essa altura (2013), abrimos também uma página, para inclusão de biografias de resistentes antifascistas com ideologias diversas. «Antifascistas da Resistência» é um espaço de memória plural, que vimos alimentando com modestas notas biográficas cujo número se aproxima já do milhar. Temos contado essencialmente com a colaboração da professora Maria João Dias e de João Esteves, um historiador que partilhou nessa página umas dezenas de biografias de cidadãos sem nome, mortos às mãos da PVDE e da PIDE ou vítimas das maiores torturas, revelando-nos por essa via uma resistência oculta, muito surpreendente.
3. O LIVRO A Noite Mais Longa de Todas as Noites
Todavia, nesse contexto de memória que incentivamos no Facebook, muito raramente tenho uma intervenção personalizada, aludindo ou escrevendo acerca da minha vivência, como vítima ou testemunha directa do fascismo. E porque me fui apercebendo dos enormes buracos negros, que existem nas escolas sobre o regime em que a minha geração nasceu, cresceu e se tornou adulta, eu tive, pessoalmente, vontade de me lançar num passo diferente. Senti um outro dever de memória: dar um testemunho que poderia ser útil a quem faz História. Sem pretensões autobiográficas, (não se trata de uma autobiografia), dei corpo ao meu 3º livro de memória da resistência. «A Noite Mais Longa de Todas as Noites» são, de facto, memórias que deixam aos leitores alguns elementos autobiográficos, mas apenas as decorrentes das descrições de situações vividas por mim, na Resistência. O livro é construído à volta de «histórias» (em sequência numerada), narradas na primeira pessoa e continuamente contextualizadas por pequenos textos de cariz histórico, social e político.
As histórias (reais) têm o objectivo de prender os leitores, mais pelas emoções, que naturalmente despertam, enquanto que os textos se propõem informar com o rigor possível. Este é um livro a pensar no presente, mas que olha apenas para o passado.
Sentei-me em frente das teclas do computador, a correr atrás de lembranças, a desfiar nomes, datas e lugares; a ler cartas (com, e de, familiares) já esquecidas: umas inúteis, outras fúteis, outras apaixonadas, e tantas, tantas delas, em raiva ou em drama. Saltitava no Google, a confirmar acontecimentos históricos, que me ocorriam, entrelaçados com diversos factos pessoais adormecidos. O computador sempre aberto, enquanto eu via fotografias e consultava notas dos anos secretos da minha vida. A folha word em branco e eu sem saber por que ponta puxar. Como começar. Foram meses de espera. Um dia, sem quê nem porquê, de repente, a primeira frase irrompeu: «Foram precisos muitos anos, muita vida, muitas vidas para vermos com clareza a razão de ser…». A partir dessa frase, saltaram-me das pontas dos dedos, as ideias, as recordações, os factos, tudo a atropelar-se numa escrita compulsiva, numa ânsia de não me perder de mim nem da verdade. Queria que a minha história, que era a história de tantos homens e tantas mulheres da minha geração, tanto quanto possível, me saísse rigorosa e rápida, agora que não me restava muito tempo de vida para falar do que vivi, do que muitos de nós vivemos. Desejava que a minha escrita pudesse não se tornar uma seca para os jovens, mas que o conteúdo do livro lhes fosse oferecido com o rigor de um testemunho, dado com seriedade e sem demagogia. O meu livro nasceu desse modo – espero em breve que chegue a 5ª edição – e é, ou eu gostaria que fosse, o que a escritora Maria Teresa Horta escreveu no longo prefácio que lhe escreveu.
Helena Pato
(*) texto guião para uma intervenção oral, a convite de Carlos Ribeiro, no IIº Encontro de Narradores-Autores, realizado no Museu do Aljube Resistência Liberdade, no passado 8 de Junho