14 de Setembro, 2024

Náufragos do socialismo

MUNDO | DOSSIÊ Albânia Hoje (2) – 9 de julho 2022 | PESQUISA SF ©carlosribeiro

Em março de 1992 a capa da Revista do Expresso chocava os setores da extrema-esquerda portuguesa que nos anos antecedentes esteve ligada à corrente albanesa do movimento comunista internacional pondo a nu um país à deriva, pobre e sem esperança. Náufragos do Socialismo foi o título que Daniel Ribeiro e Rui Ochôa (fotos) construíram com arte e saber jornalístico para abrir as portas da revelação.

O país que chegou a ser considerado o Farol do Socialismo na Europa não é hoje mais do que ruína – onde, por ironia, os cortes de luz são constantes” assim abriram o dossier que fomos recuperar para ilustrar a progressão nas últimas décadas deste pequeno território que assumiu, durante muitos anos, o papel de “aldeia de Asterix”contra os romanos do capitalismo, do imperialismo e do social-imperalismo do pós-2ª Guerra Mundial.

Realidade e miragens

“A Albânia é um país sinistrado, as suas fábricas não funcionam, o seu povo perdeu a esperança e nas cidades prospera o caos e a anarquia. A Albânia pertence ao quarto mundo e tem um nível de vida inferior a muitos países da África Negra” o diagnóstico não podia ser mais aterrador. No meio das referências de avaliação da situação os nossos guias do Expresso (no tempo em que o semanário era uma instituição central da informação em Portugal) adiantam uma anedota muito representativa da grande mentira que foram as declarações dos dirigentes do Partido do Trabalho da Albânia ao longo de anos a fio “Na Albânia comunista o leque salarial era de três para um, porque apenas havia pastores de primeira, de segunda e de terceira”.

Era mentira!

“Era mentira e a prova é hoje peremptória“, afirma-se no artigo a propósito da pretensa via albanesa para o socialismo e para a “construção de um socialismo diferente e mais feliz do que o da URSS ou da China”. A realidade é traçada de forma nua e crua sendo destacada a ausência de bens de primeira necessidade, a paralisação ou o abandono das fábricas e das cooperativas agrícolas e a miséria reinante.

“Nós ganhamos muito pouco, o salário de um operário albanês vai de 500 a 800 leks e de um alto funcionário 2000. Vinte dólares correspondem a dois salários mensais.” adianta-se a propósito do quotidiano dos albaneses que se encontram na sua maioria no desemprego.

Privilégios e miséria

Recorde-se que nos tempos da ditadura de Enver Hohxa e do partido único alguns elementos eram bem reveladores de uma sociedade subdesenvolvida na qual prevaleciam privilégios para uns poucos e miséria de forma generalizada para a população das cidades e dos campos:

  • as lojas eram do Estado e todos os albaneses viviam na base de senhas de racionamento;
  • só o Estado e o Partido podiam possuir carros;
  • as empresas, todas do Estado, paravam regularmente por falta de matéria-prima e os resultados da produção eram geridos pelo partido
  • quem acedia ao ensino, nomeadamente o superior, era o partido em função de critérios de interesse ideológico ou de vantagens em benefício próprio
  • os altos dignatários do Estado-Partido possuíam casas de férias em estâncias balneares e nas zonas de montanha mas a eletricidade (que era exportada) não chegava às aldeias remotas e as interrupções de fornecimento de energia eram frequentes,

Presos políticos e liberdade

Os números das vítimas do regime são controversos no entanto segundo a reportagem de Daniel Ribeiro e Rui Ochôa alguns são certos:

“Antes das últimas eleições, que falharam, havia 1200 prisioneiros políticos na Albânia. No total terão passado pelas prisões ou pelos campos de trabalho do ditador Enver Hohxa cerca de 250.000 pessoas o que leva a avaliar em cerca de um milhão ou terço da população total, o número de pessoas que sofreu a repressão. Porque, quando um homem era preso, a sua mulher e os seus filhos também sofriam, e muito eram pressionados e humilhados, limitavam-lhes as senhas para o racionamento e recebiam a visita frequente da polícia secreta, a Segurimi” explicou ao Expresso Kujtim Cashku dirigente do Fórum dos Direitos do Homem. “Temos muitas dificuldades em encontrar números exactos porque eles destruíram os documentos, tentando assim apagar os rastos dos seus crimes. Não sabemos exatamente quantas pessoas morreram com a tortura, calculamos que o número de mortos por motivos políticos andará entre os dez e os vinte mil”.

Só tentei emigrar

Os ex-prisioneiros políticos viviam com imensos problemas. Um deles detido durante 17 anos num campo de trabalhos forçados de Fieri, no sul do país, apesar de ter sido libertado há um ano, ainda não se adaptou à liberdade. Não quer falar do que viveu, comove-se, afirma que não foi preso por ser político – eu só tentei emigrar – explicou. Muitos ex-prisioneiros permanecem nas regiões onde foram deportados, sem dinheiro para a viagem de regresso e a família não sabe o seu paradeiro. Duas centenas de “internados” não querem abandonar o local, e aí vegetam vivendo em cabanas em condições infra-humanas (alguns deles há perto de 20 anos).

Durres

Durres possui como Vlora um porto muito activo. Foi destes dois portos que os refugiados albaneses partiram para Itália quando da crise dos embaixadores. Em apenas um ano emigraram cerca de 500.000 albaneses, um número enorme num país com três milhões de habitantes. Durres parece estar em estado de sitio. O porto é protegido por devesas barreiras de tropa e arame farpado. Os militares albaneses e italianos, receiam que a população assalte os barcos. “Há muitos albaneses armados, faz parte da tradição local”afirmam os militares para os quais este elemento é particularmente crítico para a missão que têm que cumprir.

Novas ondas culturais

“Num passado muito recente uma pessoa corria o risco de ser presa se fosse apanhada a ouvir música deste tipo – românticas italianas, Beatles, Rolling Stones, etc – por isso ouvíamo-la clandestinamente, com o som bem baixo, por causa dos vizinhos que nos podiam denunciar” declarações de Arben que se considera um comunista moderado.

Ramiz Alia

No dossier a que nos reportamos, Daniel Ribeiro teve oportunidade de entrevistar Ramiz Alia. O ex-número dois do regime de Hohxa surge com uma avaliação crítica face aos pontos fundamentais da governação na última fase e condena a incapacidade de impulsionar a economia e de não ter sido facilitada a propriedade privada e a iniciativa económica não-estatal.

Também nas liberdades e garantias de direitos Alia reconhece que houve falta de lucidez, excessos e que o pluralismo é essencial “o que hoje chamamos de partido-estado foi um dos maiores erros porque o Estado foi transformado num partido. Foi um erro porque o partido é sempre uma minoria na sociedade. Deveria ter sido um aparelho de Estado independente a dirigir o país e não o partido”.

Ramiz Alia confessou que os aspetos nacionais prevaleceram sempre sobre os aspetos ideológicos, nos grandes debates com a URSS, a China e a Jugoslávia e que os partidos europeus que apoiaram o PTA foram muitas vezes “utilizados” nestas contendas, porque para os albaneses o que contava verdadeiramente era a Albânia independente e senhora da sua soberania nacional “falávamos com eles dos aspetos nacionais, mas , de facto quando discutíamos com os outros dirigentes marxistas-leninistas sobre as nossas divergências com a URSS, por exemplo, estes aspetos nacionais eram muito atenuados , valorizávamos as questões ideológicas. Eram estas últimas que estavam em primeiro plano nas discussões” e à pergunta sobre a crítica que era realizada a Tito da Jugoslávia como sendo fundamentalmente nos aspetos nacionais, Alia confirma “Exatamente. Não se tratava de uma discussão de princípios. Eram, sem dúvida, as questões nacionais as mais importantes.

Fonte : REVISTA DO EXPRESSO 7 de março de 1992 – Jornalista DANIEL RIBEIRO Fotógrafo Rui Ochôa

Artigo e pesquisa que se insere no Projeto PEOPLE | Europa para os Cidadãos | Contributos para o combate à Opressão, Repressão e Perseguição nos regimes autoritários na Europa | Carlos Ribeiro

Editor

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