Náufragos do socialismo agarram-se à tábua podre do anticomunismo
MUNDO | DOSSIÊ Albânia Hoje (5) – 20 de julho 2022 | DEBATE | Opinião
OPINIÃO por Manuel Rodrigues
Num artigo de 9 de Julho no Sem Fronteiras, Carlos Ribeiro citou e concordou com uma publicação de 1992 saída no jornal Expresso do jornalista Daniel Ribeiro (DR), sobre o socialismo albanês.
É o segundo artigo de Carlos Ribeiro (CR) sobre a sua recente visita à Albânia, integrado numa delegação da AEP61/74-Associação de Exilados Políticos Portugueses, no âmbito do Projecto PEOPLE. Dado que CR esteve na Albânia no tempo do socialismo albanês esperava eu, com esta visita, que nos desse informações sobre a Albânia actual e as diferenças com a daquele tempo.
Mas não, CR foi ao “baú” desenterrar o artigo de Daniel Ribeiro que, naquele tempo, funcionou, na minha modéstia opinião, como certificado de ajuste de contas com o seu passado político. CR aproveitou, assim, a sua visita à Albânia para nos mostrar não a realidade albanesa, mas o seu “processo pessoal de descomunização”, abrindo “fogo” sobre o passado no estilo terra queimada. Lá se foi o espírito da paz por ribeiro abaixo.
Eu, como CR e DR., também sou náufrago do socialismo albanês. Mas não me agarro a essa tábua podre anticomunista e continuo na minha.Vou apresentar alguns dados no sentido de tentar criar obstáculos ao “processo de descomunização” de CR e DR.
Pleno emprego
No tempo do socialismo albanês havia pleno emprego. Agora em Maio de 2022 havia 14,7% de desemprego e nos jovens 20%. É discutível se o pleno emprego era rentável e produtivo, mas essa é uma discussão para outro fórum. No entanto todos tinham o seu emprego
Trabalho igual, salário igual
Para trabalho igual de homens e mulheres havia o mesmo salário. E ai de quem não cumprisse. Agora na Albânia para o mesmo trabalho o salário das mulheres é em média 11,5 % inferior ao dos homens.
Emigração inexistente
Como DR diz no seu artigo a emigração não existia, era proibida e reprimida. Agora no final de 2021 a emigração atingiu cerca de 1milhão 700 mil pessoas, cerca de 43% da população, o que faz da Albânia o país do Mundo com maior taxa de emigração. Claro que não foi inteligente proibir a imigração, até porque poderia ter servido de escape social para o regime. Mas os factos são factos e cada um tira as suas conclusões.
Leque salarial
Sobre o salário DR e CR dizem que era mentira o leque salarial de três para um, mas depois noutra parte da peça dizem e passo a citar “o salário do operário albanês vai 500 a 800 leks e de um alto funcionário 2000”. Digam mal, mas não se atrapalhem.
Habitação para todos
Na habitação era distribuída a cada família trabalhadora um TO, T1 ou T3 de acordo com o tamanho da família, a proximidade do local de trabalho e, vá lá, com a opinião do comité local do Partido do Trabalho da Albânia (PTA). CR e DR podem dizer que essa opinião não era isenta nem respeitava a vontade de escolha de cada família. Sobre a isenção até estou de acordo pois se virmos a prática do partido socialista português (de que CR e DR são adeptos) na atribuição de empregos, subsídios, habitação, e outros favores aos “seus”, também era provável que na Albânia houvesse “cunhas”, embora o “risco” para os praticantes fosse grande.
Acabamentos exteriores das casas não eram bonitos
Já sobre a liberdade de escolha estou de acordo, não existia. Agora existe desde que tenham dinheiro. Por exemplo para um ordenado médio mensal de 45000 leks pode-se escolher entre um T0 de com renda mensal de 36000 leks dentro de Tirana e de 22000 nos arredores. Para um T3 pode-se escolher entre um de 62000 leks dentro de Tirana e 37000 nos arredores. As casas distribuídas não tinham bonitos acabamentos, sobretudo exteriores, aonde a falta de gosto predominava, mas não eram as barracas dos bidonvilles dos operários portugueses, que CR e DR também conheceram em Paris.
Saúde nacionalizada e gratuita
Sobre a saúde, era nacionalizada e não havia medicina privada. É verdade que era deficiente, mas gratuita para todos. Agora é mais avançada, multiplicaram-se os hospitais privados e quem quer ter boa saúde paga-a. O próprio Estado paga aos privados. Com despesas de saúde de 4,8% do PIB albanês e 14,6%do Orçamento anual, só 42% vai para o sector público. O restante 58% vai para os privados.
Um instituto superior de engenharia na Tratori
Sobre a educação, era universal, gratuita e pública. O acesso ao ensino superior não era só para as “elites” do partido como dizem CR e DR. Por exemplo, na principal fábrica metalúrgica de Tirana (Tratori), que visitei, um complexo com cerca de 4000 trabalhadores e trabalhadoras, havia uma escola secundária e um instituto superior de engenharia, integrados no complexo e frequentado por operários da fábrica.Agora é diferente. Todos podem ter acesso a um curso superior desde que tenham dinheiro. As universidades privadas multiplicaram-se. Para tirar um curso superior de 4 anos numa privada é necessário dispor de 2000 a 6000 euros anuais. Para quem ganha em média cerca de 200 euros mensais é obra.
Não havia máfias
Sobre a segurança ela foi levada ao extremo e exagerada, mas não havia nenhuma mafia organizada por medo. Agora há cerca de 15 famílias mafiosas com forte influência não só na Albânia, mas também em França e na Inglaterra.
Albânia independente dos blocos militares
Sobre a política de defesa, CR e DR ridicularizam os milhares de “cogumelos” existentes em toda a costa adriática albanesa, esperando uma invasão que ainda não chegou. Um exagero, sem dúvida, com elevado peso no orçamento do Estado. A Albânia era independente da Nato e do Pacto de Varsóvia, os dirigentes do PTA temiam a Invasão, mas nunca tiveram pretensões de invadir os vizinhos (ou pelo menos a manifestaram, porque nos Balcãs os nacionalismos são assunto complicado). Agora a Albânia pertence à Nato e o Império Americano está a negociar a construção de uma base em Porto Romano, de apoio à Sétima Esquadra e às Forças Especiais Americanas no quadro de preparação da mobilização da força de intervenção rápida da Nato de 300.000 efectivos. Cheira que não é para defender a Albânia dos vizinhos.
Liberdade de imprensa não existia
Sobre a liberdade de imprensa CR e DR têm razão não existia. É sem dúvida um dos grandes fracassos do socialismo albanês e de outros socialismos. Agora existe, com alguns problemas. Sobre eles cito quem sabe da poda, os Reporters Sem Fronteiras (2021)
“Na Albânia a independência editorial da imprensa está ameaçada por uma regulamentação partidária. Os jornalistas são vítimas do crime organizado e às vezes da violência policial, incentivados pelo fracasso do Estado em garantir protecção.”
“Uma parte significativa do mercado da imprensa albanesa está concentrada nas mãos de quatro ou cinco empresas. O financiamento público responde por uma grande parte da receita, mas a sua distribuição, opaca e discriminatória, levanta suspeitas de tráfico de influência”.
A liberdade política, cultural e religiosa
Sobre a liberdade política, cultural e religiosa, CR e DR têm razão, embora exagerem. É sem dúvida outro dos grandes fracassos do socialismo albanês e de outros socialismos. CR e DR dizem que em 1992, cito, “havia 1200 prisioneiros políticos na Albânia”. Depois num passe de mágica dizem que foram cerca de 250.000. Conheço CR e DR há cerca de 45 anos e os números nunca foram o forte deles.
Nunca me senti utilizado
CR e DR dizem que O PTA “utilizava” os partidos europeus que lhe eram próximos. Em representação do meu Partido nunca me senti utilizado. Se CR e DR se sentiram utilizados é lá com eles. Mas cuidado, quem se deixa utilizar uma vez pode ser utilizado 2 ou 3. E o imperialismo americano e a direita europeia têm larga experiência na utilização dos incautos na sua já longa luta para desacreditar o socialismo.
Foi uma experiência, não foi o paraíso
Ao colocar estes “obstáculos” no processo de descomunização de CR e DR não pretendo dizer que na Albânia Socialista foram 45 anos de “paraíso”. Foi uma experiência do povo albanês que na minha modesta opinião deve ser contextualizada no tempo, avaliando os seus sucessos e fracassos.
De acordo com os dados que apresentei anteriormente penso que estes 30 anos de “Democracia Albanesa” integrada no Império Americano não são “o melhor dos mundos”.
Para nós, náufragos do Socialismo Albanês, analisar os fracassos e sucessos de cada experiência acho bem melhor do que agarrar a primeira tábua podre de anticomunismo que nos apareça.
Editado CR| Sem Fronteiras | (subtítulos)
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