19 de Setembro, 2024

Vivemos em democracia? Qual é o nosso futuro?

II – Condicionamento pela comunicação social, crescimento económico e desigualdades, tecnologia avançada, proliferação de lixos

por Filipe do Carmo

Quando as pessoas pensam em democracia, tendem a só considerar o direito a votar regularmente em eleições legislativas e outras e a liberdade de expressão.

Quem manda realmente?

A poucas passa pela cabeça que são permanentemente condicionadas pelos meios de comunicação social, sobretudo os telejornais e os jornais diários, dominados pelo grande capital e cuja acção é fundamentalmente dirigida para ter êxito em tal condicionamento. E o que daí tem resultado é que a maioria – mesmo quando os que a constituem só encontram obstáculos na sua árdua luta por diferentes aspectos de melhorias das suas condições de vida – tem bastante orgulho em viver na apregoada democracia. E esquecem que quem manda realmente, quem determina a generalidade das suas condições de vida é um conjunto (de qualquer modo diversificado) de cidadãos a quem não falta dinheiro mas que procuram por todos os meios conseguir sempre mais. E esse conjunto vai desde os grandes empresários ou meros proprietários (que disponibilizam o essencial dos fundos que financiam os meios de comunicação social e as campanhas eleitorais) até aos que são colocados nas alavancas do poder ou de apoio a tal poder e às grandes empresas (deputados, governantes, advogados, economistas, …). E não se poderá esquecer que os plutocratas não têm deixado de fazer tudo aquilo que podem, incluindo a organização de lobbies para defender os seus interesses junto dos governantes, de modo a aumentar despudoradamente as desigualdades a seu favor.[1]

Investimentos que favorecem os ricos

Ora a acumulação de dinheiro permite a aquisição de bens de luxo – a começar pelo imobiliário, pelos automóveis, pelos aviões a jacto privados – mas serve, em termos fundamentais, o grande investimento. Este incide cada vez mais em tecnologia avançada, a qual é, por sua vez, apresentada não só como necessária ao crescimento económico mas também como indispensável à resolução de problemas que têm vindo a afectar a vida no nosso planeta. Entre tais problemas avultam os de natureza ambiental, tendo-se destacado a tendência para dar a maior importância aos que respeitam ao aquecimento global, muitas vezes com omissão (por inconsciência ou de modo deliberado?) de outras consequências nefastas dos excessos de várias naturezas, sobretudo as económicas, que derivam das práticas de vida que têm “inundado” o nosso mundo. Pense-se por exemplo, entre tais consequências, na acentuada redução da biodiversidade e na proliferação de lixos de natureza cada vez mais diversificada e de maior perigo para as diferentes formas de vida (mas sobre tais questões remeto em particular, por agora, para os meus numerosos textos anteriores sobre questões ambientais). Naturalmente que a acima referida tecnologia avançada poderá em certos casos contribuir para reduzir a importância (solucionar será sempre mais difícil, pelo menos a curto ou médio prazo) de alguns problemas ambientais, mas o que tenho constatado é que, em muitas circunstâncias, avançar com os investimentos correspondentes conduz sobretudo a mais poluição, a um ambiente cada vez mais agredido[2]. E evidentemente a adicionais enriquecimentos dos mais ricos.

Os excedentes populacionais

Outro problema essencial que frequentemente é ignorado ou visto em termos invertidos pela grande maioria dos plutocratas, dos meios de comunicação social, dos investigadores na área ambiental e, consequentemente, da maioria dos cidadãos, é o do excesso populacional. Sabe-se que os recursos do planeta são insuficientes para alimentar ou suportar o modo de vida actual dos humanos, apontam-se soluções que passam sobretudo pela sobriedade, pelo decrescimento, mas os governos (em particular o do nosso país) não deixam de insistir em mais crescimento económico. Não se veem, por outro lado, referências suficientes aos lixos que o nosso quotidiano cada vez mais produz (toneladas de embalagens, por exemplo, mas também computadores e telemóveis) e as alusões ao envio crescente de tais lixos para os países mais pobres são bastante raras. No respeitante especificamente ao crescimento populacional, que já também procurei caracterizar em textos meus anteriores, constata-se que ele deriva actualmente do que ocorre na grande maioria dos países africanos, de ainda muitos asiáticos e também do Médio Oriente[3]. O respectivo crescimento em África (que em termos globais se apresenta como susceptível de se manter mais tempo em níveis elevados) tenderá a contribuir de modo significativo para que os excedentes populacionais resultantes continuem a procurar migrar para países onde possam encontrar empregos, em particular, como actualmente, na Europa. Esse afluxo de mão de obra tenderá, como já acontece, a ser bem-vindo por parte de uma maioria de empresas, sempre no seu esforço para reduzir ao máximo os seus encargos em salários. Não se poderá contudo dizer que tal acolhimento favorável reúna consenso por parte dos cidadãos europeus, havendo muitos que passam a apoiar movimentos de extrema direita, reforçando-os politicamente, como já é visível em vários países. E é uma tendência que se tem vindo a fortalecer consideravelmente com a subida do número de imigrantes.[4]

Lisboa, 27 de Maio de 2023 Filipe do Carmo


[1] Não posso deixar de repetir algo a tal respeito que já explicitei em textos meus anteriores: Thomas Piketty, numa das suas recentes crónicas no jornal Le Monde (2022-11-07, pág. 31) com o título “Redistribuer les richesses pour sauver la planète”, refere que, em França (mas o que refere é verificável em termos gerais também em muitos países deste nosso mundo e não só do Ocidente) as 500 maiores fortunas passaram, entre 2010 e 2022, de 200 mil milhões de euros para um milhão de milhões (1 bilião), ou seja, de 10% para perto de 50% do PIB (duas vezes mais de tudo o que possuem os 50% mais pobres). Mais escandaloso ainda que esse enriquecimento de 800 mil milhões, refere ainda Piketty, foi que esses beneficiários apenas tenham pago de imposto sobre o rendimento, durante todo esse período, o equivalente a menos de 5% desse enriquecimento (e tudo isso é mais ou menos equivalente ao que se passa nos Estados Unidos em termos de tributação dos seus milionários – ou bilionários?). Piketty chama ainda a atenção para o facto de que, se o governo francês fizesse incidir uma tributação excepcional de 50% sobre o tal enriquecimento de 800 mil milhões, poderia ter reunido 400 mil milhões de euros. Ora eu constato que tal posição até é muito pouco ousada por parte do cronista, dado que, mesmo com tal tributação excepcional, as tais 500 maiores fortunas ainda teriam passado a valer 600 mil milhões em 2022, quando em 2010 eram de 200 mil milhões (uma multiplicação por 3!). Convém de facto ter presente que, nos tempos de Roosevelt (anos 30), nos EUA, tributações da ordem dos 80-90% foram introduzidas com sucesso e mantidas durante meio século, inclusivamente em países europeus. O escândalo da baixa tributação dos excessivamente ricos em França (que tem paralelos em praticamente todos os países do mundo) vai, no entanto, ainda mais longe quando se sabe que, recentemente, foram vetadas pelos poderes instituídos decisões do parlamento francês no sentido de aumentar em reduzidos milhões de euros investimentos na renovação térmica dos edifícios e das redes ferroviárias (que contribuiriam para reduzir o aquecimento global), sob o pretexto de que não havia meios financeiros para tais generosidades…

[2] Num artigo recente de David Larousserie, “Le numérique au défi de la sobriété énergétique”, publicado no Le Monde de 2023-05-03, pgs. 31,34-35, refere-se que a quantidade de GEE (gases com efeito de estufa) que é emitida pelo sector digital aumenta anualmente de 6%, quando, para respeitar os Acordos de Paris de 2015, seria necessário diminui-la em cerca de 7%/ano. Daí se concluindo que “o digital faz parte do problema e não só da solução” e que será necessário dar um mais adequado sentido aos discursos triunfalistas daqueles que promovem as tecnologias digitais como susceptíveis de revolucionar a saúde, os transportes, a agricultura, o ambiente, etc. É referido, por outro lado, que a parte do sector nas emissões mundiais de GEE atinge valores equivalentes ao do tráfego aéreo. Ora, segundo o que é referido no artigo, as emissões de GEE caracterizam-se ainda, e sobretudo, por constituírem apenas uma parte reduzida da pegada ambiental do digital. Assim, enquanto em França as emissões de GEE representam 11% dessa pegada, a influência sobre essa mesma pegada dos recursos em metais e fósseis é de 52%.

[3] O total populacional atingia em 2020 cerca de 7,8 mil milhões de habitantes, dos quais 2,8 mil milhões vivem na China e na Índia (países no entanto em que já cessou o crescimento ou que para lá caminham rapidamente). Segundo as projecções da ONU, o total mundial irá continuar a subir até 2100, ano em que se chegaria a 10,8 mil milhões. Segundo outras projecções conhecidas (o caso do Institute for Health Metrics and Evaluation, sediado em Seattle, nos EUA) o pico populacional ocorrerá contudo antes, em 2064, com 9,7 mil milhões de habitantes, seguindo-se um declínio que faria descer esse total a 8,8 mil milhões em 2100 (evolução que, na minha opinião, será mais provável que a prevista pela ONU). As expectativas que existem em tal contexto, apontam para que na maioria dos países em que já se verificam taxas de fecundação (nascimentos por mulher) inferiores a 2,1 – em particular os europeus, o Japão, a China e os da América do Norte – as populações venham a atingir cerca de metade do que se verifica actualmente. Haverá, contudo, a possibilidade de que em alguns desses países os valores populacionais tendam a manter-se a níveis próximos dos actuais em função de saldos migratórios positivos.

[4] O reforço político dos opositores às imigrações já tem muitos exemplos, dos quais um recentíssimo, que foi objecto de um artigo (“Autoridades gregas gravadas a levar refugiados de terra para o alto-mar”, pág. 18) no jornal Público em 2023-05-21. O primeiro parágrafo de tal artigo é o seguinte: «A Grécia foi esta semana acusada de mais um crime contra um grupo de requerentes de asilo. O diário norte-americano The New York Times relata como um grupo de 12 pessoas, entre elas várias crianças pequenas (e um bébé), que estavam em terra firme na ilha de Lesbos, foi levado a entrar numa carrinha branca, transferido para uma embarcação e desta ainda para um bote insuflável no meio do mar Egeu. E ali foi deixado.»

Filipe do Carmo

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