9 de Dezembro, 2024

VIVEMOS EM DEMOCRACIA? QUAL É O NOSSO FUTURO?

V – Crescimento demográfico; um “Plano Verde” para fazer face à poluição plástica?

por Filipe do Carmo

Editado por SF 7/07 correção dos dados estatísticos (não inseridos) das previsões de evolução populacional.

Daca, Bangladesh

A acumulação de lixos (muito em particular no que diz respeito aos plásticos) tem, conforme referido no precedente texto, consequências extremamente graves para o ambiente, em particular no que concerne domínios como o clima, a biodiversidade, os solos, os oceanos e a saúde humana. A análise dos resultados da cimeira de Paris relativa à poluição plástica, que ficou de ser feita no presente texto, não poderá levar a que tais resultados possam ser considerados como muito positivos, conforme será especificado mais à frente. De imediato, e dada a possibilidade de a evolução demográfica que nos espera poder contribuir bastante para o agravamento, em particular, de tal tipo de poluição (mas também, sem dúvida, no que respeita a outros tipos de degeneração ambiental), ir-se-á dar prévia atenção às perspectivas dessa evolução. E, também em particular, dando relevo especial ao que se poderá passar numa área do globo em que, já havendo muito sérios problemas de acumulação de lixos, se afigura que o crescimento demográfico possa conduzir a ainda mais graves problemas que os actuais.

Previsões de evolução populacional

Já acima (ver parte final do texto II) se referiram as previsões de evolução populacional e poderá parecer que só um aumento até 2100 de cerca de 25% não será assim tão grave. Se agora se der destaque a previsões específicas (anos de 2050 e 2100) feitas pela ONU, para alguns países de três regiões do planeta (Ásia do Sul, África do Norte e África Subsariana), será difícil evitar uma percepção de que alguma coisa estará errada (com os números abaixo indicados a representarem os valores expressos em milhões para, respectivamente, 2020, 2050 e 2100)[1]:

E as previsões para populações urbanas ainda se revelam mais preocupantes (ou absurdas?), como se pode ver pelos valores seguintes, correspondentes a 2050 e 2100 (previsões publicadas por um organismo da Universidade de Toronto, o Global Cities Institute, com valores também expressos em milhões):

Creio que basta olhar para estes números (e estar consciente de que o planeta não poderá suportar o que constituiria uma agressão fortemente ampliada) para perceber que alguma coisa está a falhar em tais futurologias[2]. Tal falhanço derivará provavelmente, numa primeira perspectiva, da não consideração de que os Estados directamente ameaçados por tais evoluções se verão em breve obrigados a tomar medidas para as impedir (com os próprios habitantes a assumirem atitudes que complementem tais medidas)[3]. Numa segunda perspectiva, esse falhanço poderá derivar da incapacidade de assumir que inevitáveis desastres sociais haverão de resultar desses aumentos demográficos exponenciais, substituindo-se às ditas medidas. Aliás, tais desastres (divulgados pelos meios de comunicação social e geralmente atribuídos às consequências do aquecimento global) já começam a resultar da evolução que se tem verificado nas últimas décadas. E prosseguir com tais aumentos demográficos só poderá amplificar tais desastres e em vias que não serão só as do aquecimento global (o problema dos lixos será uma dessas vias).

Migrantes tentam entrar na Europa

Um tipo de desastre que já ocorre deriva dos acabados de referir crescimentos demográficos. São notícias correntes na comunicação social europeia as travessias do Mediterrâneo por migrantes que tentam entrar na Europa provenientes de países africanos e do Próximo Oriente. Pode-se pensar que muitas dessas tentativas têm como origem razões de natureza política, mas o que estará por detrás (certamente que, muitas vezes, com elevada probabilidade, a dificuldade em alimentar um número crescente de bocas) de tais motivações políticas? O que é certo é que os transportes navais se têm afundado com regularidade e, quando os migrantes conseguem chegar a terra, muitas vezes o que os espera são situações de indefinição que se arrastam em acampamentos onde as dificuldades se multiplicam. Por outro lado, nos países de eventual acolhimento, vão-se gerando reacções que crescentemente conduzem ao reforço de oposições políticas de extrema direita (algumas vezes com mudanças significativas em países em que predominavam orientações de esquerda), as quais, para além da criação de obstáculos à permanência dos migrantes, tendem a criar conflitos sociais que, em termos de adicionais desastres, não se sabe onde poderão chegar. Contudo, no concernente a questões mais pormenorizadas relativas a migrações, elas terão que ser deixadas para um próximo texto.

Pacto Verde para a Europa

Foram, neste e em precedentes textos, feitas amplas referências às consequências da acumulação de lixos para o ambiente (muito em particular no relativo aos plásticos), nomeadamente no que concerne ao enorme perigo que representa essa acumulação para o ambiente, a saúde e o clima. Foi também feita referência às perspectivas que existiam nas vésperas da inauguração da cimeira sobre a poluição plástica que teve lugar em Paris de 29 de Maio e decorreu até 2 do corrente mês de Junho (com uma previsão de presença de negociadores de 175 países e de mais de 1500 cientistas e representantes da sociedade civil e da indústria).

As conclusões que podem ser inferidas dos desenvolvimentos ocorridos na referida cimeira serão objecto de considerações neste texto. Convirá, contudo, dar previamente algumas indicações sobre o “Pacto Verde para a Europa”, cuja proposta foi apresentada pela Comissão Europeia em 30 de Novembro de 2022 com o objectivo de encorajar a reciclagem e a reutilização das embalagens e outros recipientes e acabar com os respectivos resíduos.[4] O objectivo da UE seria levar a cabo até 2030 uma alteração da natureza das embalagens (inferindo-se que também de outros recipientes) de modo a torná-las todas recicláveis (actualmente apenas 65% apresentam tal condição), além de se conseguir reduzir em 15%, até 2040 e uniformemente nos 27 países, os resíduos que elas ocasionam. Previa-se então um trabalho de uma complexidade extrema, ao se ter em consideração que ele requer uma rigorosa apreensão das práticas dos industriais e também dos hábitos dos consumidores (no sentido igualmente de se conseguir ir longe no respeitante à reutilização). Poder-se-á ter uma melhor percepção dos problemas que se tinham como necessário defrontar quando se tem em consideração que além das embalagens plásticas propriamente ditas há as de papel, cartão, vidro, lata, …, além de objectos vários como talheres, cápsulas em alumínio para café, sacos de chá, garrafas, boiões, adesivos autocolantes e o que começava a ser designado por sobreembalagens (embalagens exteriores, como é o caso dos invólucros em cartão que mantêm juntos, por exemplo, boiões de iogurtes). No caso, por exemplo, da reutilização das garrafas para a cerveja e para o vinho, as dificuldades então previstas tinham em consideração que, no caso das de cerveja apenas se antevia como possível uma percentagem de 25% para 2040 (a reutilização actual é de 10%) enquanto para as do vinho ela é de apenas 15% (5% actualmente). Dificuldades parecidas previam-se igualmente no que respeita às embalagens para vendas dos restaurantes para consumo caseiro e para as que são utilizadas nas vendas com recurso à internet. Dignas ainda de atenção, medidas previstas para ajudar o consumidor a integrar-se nos processos de reciclagem, como a promulgação de regras que conduzam à afixação em cada embalagem de etiquetas (também presentes nos cestos de lixo onde elas deverão ser colocadas) de modo a guiar o cidadão a colocar cada tipo de lixo no local correcto. Ora, apesar de magistrados europeus terem considerado que o texto do Plano Verde era “o mais ambicioso no mundo para reduzir a poluição plástica”, não faltaram organizações ambientalistas que, reconhecendo tratar-se de uma “viragem importante”, não deixaram de deplorar que tal Plano tenha constituído “uma ambição revista em baixa relativamente a um projecto precedente”. E também será certamente adequado considerar que a Comissão Europeia foi muito pouco ousada ao esperar que a sua proposta só viesse a ser aprovada 18 meses mais tarde e a respectiva entrada em vigor após mais 12 meses.

Começar por uma redução drástica do recurso ao plástico

Relativamente ao que sucedeu na cimeira acima referida, relembre-se o que se disse no texto precedente sobre a necessidade de fixar “níveis de obrigatoriedade” em associação com o princípio do poluidor-pagador. Ora, sendo reconhecido que a poluição pelo plástico equivale a uma “bombe à retardement”, haverá que, antes de pensar em reciclagem e reutilização, começar por uma redução drástica do recurso ao plástico. Avaliando os resultados da cimeira, um negociador europeu admitiu que se evitou o pior. Isso porque, começando pelo que se decidiu sobre a votação relativa ao futuro tratado (a qual deverá ter lugar em meados de 2025), vários países (em que predominava a Arábia Saudita) do Golfo Pérsico, a Rússia, o Irão, a China, a Índia e o Brasil, opuseram-se à sua aprovação – no caso de não haver consenso – por uma maioria de dois terços. Se bem que essa posição não tenha tido sucesso (tal modo de aprovação já havia sido validado na anterior cimeira de Novembro de 2022), esses Estados “obstrucionistas” não renunciaram a um direito de veto sobre o resultado final das negociações. Assim, se por um lado um grande conjunto de países em que se incluem a maioria dos europeus, mas também o Japão e vários africanos[5], procuram pôr fim à poluição plástica até 2040 (o que me parece pouco optimista), já os países produtores de gás e de petróleo, a China (primeiro produtor de plásticos) e os Estados Unidos (primeiro consumidor), não querem ouvir falar de medidas demasiado constringentes nem de restrições que possam estorvar o desenvolvimento dos seus grupos petroquímicos.[6]

Lisboa, 20 de Junho de 2023

Filipe do Carmo


[1] Não resisto a referir que nos anos 50, na minha escola primária, me ensinaram que a população de Angola era, na altura, de cerca de 4,5 milhões.

[2] Por exemplo, dois dos países acima referidos passariam a ter densidades populacionais extremamente elevadas em 2100: Paquistão (457 habitantes/km2) e Nigéria (805 habitantes/km2). Compare-se com o que sucede hoje em dia com os países mais populosos: China (146/km2)e Índia (426/km2); e, na Europa, com o Reino Unido (258/km2) e Alemanha (233/km2); ou, por curiosidade, com o nosso país (112/km2).

[3] Um exemplo de tais medidas está no que se passa na Índia (que, com os seus 1,4 mil milhões de habitantes, terá ultrapassado recentemente a China), país que, procurando evitar esses excessos populacionais, tem reagido e já apresenta um índice de fecundidade de 2,0 (nas zonas urbanas tal índice é de apenas 1,6 e nas zonas rurais de 2,1), quando em 2015-2016 ele era de 2,2 e em 2005-2006 de 2,7. Isso foi possível com um planeamento familiar que, oficializado há décadas, procurou subir a idade do casamento e tornar acessíveis métodos contraceptivos a todos (diferentemente do que se passa nos países ocidentais, onde a pílula contraceptiva tem a preferência das mulheres, as indianas têm privilegiado a esterilização). Outros exemplos de planeamento familiar, os da Indonésia e do Bangladesh (países de dominante muçulmana), conduziram mesmo a resultados melhores em matéria de baixa das taxas de natalidade. E na própria Índia, o seu Estado mais alfabetizado – o Kerala – já havia apresentado nos anos 1990 quedas da fecundidade para valores inferiores ao nível de substituição (induzindo-se portanto que, tal como na Europa, tais valores para a fecundidade estão correlacionados com os do nível do ensino).

[4] Ver a tal propósito, por um lado, o artigo de Virginie Malingre, “L’éxecutif européen veut recycler tous les déchets d’emballage” (Le Monde, 2022-12-02, pág. 8) e, por outro, o que é apresentado no link https://france.representation.ec.europa.eu/informations/pacte-vert-pour-leurope-en-finir-avec-les-dechets-demballages-encourager-la-reutilisation-et-le-2022-11-30_fr#:~:text=Le%20grand%20objectif%20vise%20%C3%A0,sans%20modification%20de%20la%20l%C3%A9gislation.

[5] Alguns países em desenvolvimento, tidos como as principais vítimas da poluição pelos plásticos, procuram formar uma nova frente nestas questões, defendendo que sejam os países industrializados a financiar a solução dos correspondentes problemas e mostrando-se favoráveis à criação de um novo fundo, quando, por exemplo, a UE prefere a manutenção do recurso ao GEF (Global Environment Facility, geralmente designado em português por Fundo Mundial do Ambiente; sobre este fundo veja-se https://www.thegef.org/).

[6] Sobre este conjunto de questões veja-se mais um artigo de Stéphane Mandard: “Pollution au plastique: vers un traité mondial” (Le Monde, 2023-06-05, pg. 13).

Filipe do Carmo

Editor

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