VIVEMOS EM DEMOCRACIA? QUAL O NOSSO FUTURO?
VI – A Plutocracia: do Declínio à Inclemência e da Inclemência ao Declínio
Emmanuel Todd (16 de maio de 1951) é um cientista político, demógrafo, historiador, sociólogo e ensaísta francês
por Filipe do Carmo
O Declínio do Ocidente – um bestseller publicado em 1918 e 1922 por Oswald Spengler (autor tido como conservador, que votou em Hitler em 1932, mas criticou posteriormente o nazismo) – foi recentemente citado por António Guerreiro[1] para pôr em destaque a comparação de “alguns traços fundamentais da situação política e cultural do nosso tempo com aquela que se viveu entre as duas Grandes Guerras”. Esses traços fundamentais, tal como descritos por um colunista do The Guardian do passado 5 de Abril (citação de António Guerreiro), traduzirão sinais de uma grande regressão (crise em que os principais indicadores provêm sobretudo da Inglaterra e dos Estados Unidos):
- Diminuição da esperança de vida (já iniciada antes da pandemia);
- Enfraquecimento drástico da assistência social;
- Crescimento acelerado da pobreza;
- Colapso geracional da habitação.
Face a tal quadro – de que inquestionavelmente temos vivido no nosso país muitos aspectos, pelo menos desde a intervenção da troika (com relevância particular, nestes últimos tempos, para a habitação) – mais do que a comparação da sua natureza específica com o ocorrido entre as duas Grandes Guerras, podemos compreender a importância do título (O Declínio do Ocidente) na sua aplicação ao que se tem passado neste nosso mundo ocidental (desde quando, exactamente? desde o final dos anos 70 / princípio dos anos 80, com a afirmação crescente do neoliberalismo?).
Caracterizar o declínio
Muito haverá a dizer de modo a caracterizar adequadamente tal Declínio – em que o problema habitacional tem um relevância crescente, claramente agravado pelo brutal crescimento das desigualdades (que têm vindo a ser caracterizadas por autores como Piketty e a que tenho dado alguma atenção em textos meus anteriores) – mas, se as nossas preocupações forem sobretudo os problemas sociais, não poderemos ignorar que, em tal perspectiva, o que se passa em muitos dos actualmente designados Países do Sul é francamente mais preocupante. Não se devendo contudo abstrair de que a “diminuição da esperança de vida”, o “enfraquecimento drástico da assistência social” e o “crescimento acelerado da pobreza” ameaçam de facto Todos neste planeta, quando temos em conta a evolução das condições ambientais neste nosso mundo (e não incluo os actualmente incontestáveis problemas habitacionais porque uma consequência possível das degradações ambientais é uma forte diminuição da população mundial; sendo impossível determinar o “onde”, o “quando” e o “quanto”).
Já fiz, em textos meus anteriores intitulados “A Geopolítica no nosso século XXI: o recente conflito Nato-Rússia” (datados de Fevereiro do corrente ano), referências a degradações da condição imperialista dos Estados Unidos (com repercussões, aliás, sobre os estatutos, em particular, dos seus aliados europeus, mas incluindo também japoneses e australianos). Será agora um momento adequado para acrescentar rapidamente outras dificuldades que afectam o sistema imperial americano (dando relevo especial a situações mais recentes), nomeadamente nos domínios político e económico. Mas antes irei recordar, de modo sintético, o que escrevi nos meus textos anteriores a que acabo de fazer referência.
Emmanuel Todd e a guerra
No meu primeiro texto em que analiso o conflito NATO-Rússia, começo por dar relevo à tendência de possível “vassalidade” da Rússia face à China, assim como à crescente dependência em que a União Europeia (e, logo, os Estados que a compõem) se encontra face aos EUA e à NATO. E continuo, descrevendo o que Emmanuel Todd refere a propósito das perspectivas que acompanharam o desencadeamento da guerra que opõe a Rússia à Ucrânia (tanto no respeitante à resistência deste último país como à que a economia russa tem demonstrado face às sanções económicas que o Ocidente lhe tem vindo a aplicar). Situações que são complementadas por desenvolvimentos que evidenciam mesmo a fragilidade americana, a qual tenderá a empurrar o respectivo sistema para o precipício. E Todd afirma, em tal contexto, que nós agora vivemos uma guerra sem fim, um afrontamento que não terminará sem o colapso da Rússia ou dos Estados Unidos. É que, sendo essa guerra não só militar e económica mas também ideológica e cultural, o sentimento de superioridade ocidental é, do ponto de vista geopolítico, um erro num mundo em que a organização patrilinear do parentesco (mantendo-se como tal em 75% do planeta) conduz a uma compreensão das atitudes russas, as quais são entendidas como um conservantismo moral tranquilizador. Situação que, associada à estabilidade social adquirida nos últimos 20 anos pela Rússia (após uma década em que as suas condições internas se degradaram significativamente), terá contribuído para que o comum dos seus cidadãos entenda a guerra ucraniana como defensiva. Guerra essa que Todd interpreta como uma Terceira Guerra Mundial já de facto iniciada, que poderá ter uma duração de 5 anos e cujo resultado não poderá agora ser antecipado.
O texto a seguir sobre o dito conflito (Parte II) é iniciado com referências dadas por um cronista do Le Monde que dão relevo à solidez do sistema russo com base em factores de natureza económica, financeira e política. Solidez que não impediu contudo que a capacidade militar do país não tivesse sido afectada por dificuldades em certos sectores da economia e fortes penúrias de mão-de-obra derivadas do recrutamento militar ou da fuga ao alistamento. Este é um comportamento da economia russa que – mantendo a sua capacidade para suportar a guerra (não obstante o PIB correspondente representar apenas 3,3% do seu equivalente ocidental) – tem explicação, segundo Todd, no facto de o PIB ser uma medida fictícia da produção. Assim, retirando do PIB americano parcelas suas que incluem toda uma série de serviços mal definidos, como por exemplo as actividades ricamente remuneradas de advogados e economistas, compreender-se-á que uma parte importante desse PIB não revela capacidade de produção para a guerra. Ora a produção de trigo na Rússia, de 40 milhões de toneladas em 2014 (data das primeiras sanções que o país sofreu) passou para 90 milhões em 2020 (tendo a equivalente produção americana passado de 80 milhões em 1980 para 40 milhões em 2020) enquanto, em termos de tecnologia com repercussões militares, o país é o primeiro exportador de centrais nucleares e afirma a sua superioridade com os seus mísseis hipersónicos. Por outro lado, tendo presente que é a disponibilidade de engenheiros que permite adaptações nos domínios industrial e militar, Todd dá relevo a que a Rússia dá formação a mais 30% de engenheiros que os EUA, não obstante neste país a frequência universitária global ser 2,2 vezes superior. De qualquer modo, Todd está consciente que o domínio que os EUA têm de certas tecnologias militares mais avançadas tem contribuído e sido decisivo para os sucessos militares ucranianos que têm ocorrido. Mas não ignora a incerteza que marca a guerra em curso – que as duas partes já reconhecem que deverá ser longa – e considera que a sua evolução dependerá do equilíbrio entre tecnologias avançadas e produção em massa. E, numa guerra de atrito, não só os recursos humanos são importantes como a capacidade para se manter na luta depende da indústria de produção de armas menos sofisticadas. Situação essa que – dadas as deslocalizações a que, com a globalização, os Ocidentais procederam – coloca dúvidas sobre a respectiva capacidade de produzir armamentos em quantidade satisfatória (com maior relevo, conforme as notícias ultimamente vindas a público, para o que concerne as munições). Mas também o problema da produção necessária à guerra se coloca do lado russo e o resultado da guerra, segundo Todd, dependerá fortemente destes factores. E, sendo essencial a disponibilidade de armamento para o desfecho da guerra, já o que é descrito pelos meios de comunicação social como um conflito de valores políticos é considerado por Todd, a um nível mais profundo, como um conflito de valores antropológicos. E isso poderá dar mais vantagem à Rússia, que tenderá a ter do seu lado os 75% do planeta em que predominam os regimes autoritários e de organizações comunitárias e patrilineares, face ao Ocidente com os seus sistemas de parentesco bilateral (com a filiação masculina e feminina a revelarem-se equivalentes para o estatuto social da criança e valores a serem repetidamente afirmados como de natureza democrática). Terá sido essa situação de desvantagem ocidental – em que um declínio de longo período dos EUA, sobretudo após os insucessos sofridos no Iraque e no Afeganistão, só não é reconhecido no Japão e na Europa – que levou um responsável político indiano a afirmar que um afrontamento entre a China e os Estados Unidos não viria a produzir vencedor e que isso deixaria espaço não só para a Índia como para vários outros países (mas não Europeus, acrescenta Todd, pois um dos efeitos da retracção do sistema imperial é que os EUA reforçam o seu domínio sobre os seus protectorados). E se os Ingleses e os Australianos serão os primeiros a perder toda a autonomia nacional e se no nosso continente europeu estamos de algum modo protegidos pelas nossas línguas nacionais, isso não impedirá que a perda da nossa autonomia, que já é considerável, avance rapidamente.
As degradações da condição imperialista dos EUA – a fragilidade americana – têm sobretudo que ver com a perda crescente de apoio que Todd assinala e que poderá, em primeiro lugar, ser associada à guerra aparentemente sem fim que é travada com a Rússia, embora com a utilização de meios humanos que são sobretudo fornecidos pela Ucrânia. A referida fragilidade terá uma maior expressão no apoio que a Rússia tenderá a reunir por parte dos 75% do planeta em que predominam os regimes autoritários (que terão do seu lado organizações comunitárias e patrilineares). Será em particular de ter em consideração os insucessos americanos sofridos no Iraque e no Afeganistão e as posições de responsáveis políticos indianos no sentido de que não só a actual guerra poderá fragilizar ainda mais o sistema americano, mas também que um afrontamento entre a China e os EUA deixaria espaço para a Índia e para outros países não europeus. São questões que também são objecto de análises detalhadas de professores universitários (Radhika Desai – Univ. de Manitoba, Canada –, Michael Hudson – Univ. do Missouri, USA – e Michael Dunford – Univ. de Sussex, U.K.) na área da geopolítica económica. Num encontro recente entre eles (Maio de 2023) tiveram ocasião para apresentar elementos – em particular sobre questões ligadas à guerra em curso na Ucrânia e às dependências económicas face a interesses americanos a que esse país se tem sujeitado[2] – que corroboram ou reforçam as análises de Todd.[3]
Ainda mais especificamente sobre a guerra na Ucrânia, haverá muito a dizer, em particular sobre as circunstâncias que a provocaram (que são muito anteriores a Fevereiro de 2022), mas não me irei alongar a tal propósito. Há bastantes textos que poderão ser consultados que contradizem a versão mais divulgada pelos meios de comunicação social ocidentais. Limitar-me-ei em tal contexto a dar o seguinte link de um artigo bastante recente,
e uma mera passagem do mesmo:
Por outro lado, no que diz respeito às consequências na actualidade de referida guerra (embora tais consequências possam, no entanto, ter também parcialmente origem nos desenvolvimentos da economia neoliberal e mais em particular na pandemia que teve o seu início em 2020) será de destacar, para já, a questão da forte inflação que atinge os países ocidentais. É um tema que tem sido abordado com elevada frequência nos últimos tempos e em que as medidas que são tomadas pelos bancos centrais para reduzir tal inflação têm sido objecto das mais variadas avaliações. Destaque poderá ser dado, em particular, ao que se passou recentemente no Banco Central Europeu, sobretudo com as interpretações que Lagarde expandiu no sentido de conseguir travar ajustamentos salariais (interpretações recheadas de inclemência que foram contestadas no nosso país pelos meios governamentais). Destaque que deverá ser estendido naturalmente a reacções que vão desde as dos meios de negócios às dos partidos políticos e às análises feitas pelos meios de comunicação social.
A inflação que afecta os países ocidentais estará em princípio para durar. É aliás essa a opinião de uma economista (Gita Gopinath) com responsabilidades no FMI, tal como foi expressa em Sintra no recente fórum anual do BCE. Tal opinião aponta como razões da inflação, em primeiro lugar, a insuficiência de matérias primas e os transportes e a energia com custos mais elevados. Tais problemas terão sido agravados por tensões geopolíticas, não só a já referida guerra da Ucrânia mas também as perturbações que se têm desenvolvido entre a China e os EUA[4]. Mas ainda, sem dúvida, devido aos custos crescentes da transição climática. A segunda grande razão do desenvolvimento da inflação será, por outro lado, a evolução demográfica, com os países ocidentais (com baixa fecundidade, conduzindo a desequilíbrios em que as idades mais baixas têm uma cada vez menor representação) a defrontarem-se com faltas de mão-de-obra e as consequentes pressões no sentido da subida dos salários.[5] Essa evolução demográfica terá ainda tido um curso mais desfavorável para as empresas (menor disponibilidade de oferta de mão de obra de baixo custo) com os obstáculos que têm vindo a ser criados em países europeus à imigração. Gina Gopinath apresentou ainda uma terceira grande causa da inflação, que denominou como “políticas orçamentais bastante generosas”, as quais terão surgido para apoiar as empresas e o poder de compra dos cidadãos (o que constituiria uma continuação do que já se havia verificado no decurso da pandemia).[6]
Termino por agora, lastimando não fazer os desenvolvimentos de pontos importantes que tenho vindo a indicar de modo extremamente reduzido (deixando em particular a questão das imigrações para outro texto). E faço-o procurando ainda lembrar que os custos (nomeadamente os que respeitam a armamento) da guerra na Ucrânia para a generalidade dos países ocidentais têm subido de modo significativo. O que se depreende facilmente da inclemência das exigências americanas (que como se sabe só lucram com a guerra, não só com a subida dos preços do petróleo mas também com as vendas de armamento), as quais de início apontavam para que se caminhasse para 2% do PIB e agora começam a referir que tais 2% deverão ser um mínimo. E serão os encargos previstos para os orçamentos estatais (assistência social, em particular saúde, infraestruturas, etc.) que irão ser ainda mais sacrificados e que contribuirão fortemente para o crescimento acelerado da pobreza.
Lisboa, 11 de Julho de 2023
Filipe do Carmo
[1] “O Ocidente, onde o Sol se põe”, Público, Ípsilon, 2023-04-14, pg. 30.
[2] Ver o texto publicado sobre tal encontro (tradução portuguesa) no link https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=rm&ogbl#label/Viagem+dos+Argonautas%2FGuerra+da+Ucr%C3%A2nia/FMfcgzGtvsTcGxCsMWVWxPzgjpwHHbjv. Elementos aparentemente provenientes de um artigo do corrente ano de Michael Dunford, “China’s development path, 1949-2022”, permite a este autor apresentar dados sobre a evolução das economias do leste europeu no período de 1989 a 2019, com a Ucrânia a ter-se sujeitado a uma redução significativa do seu PIB de 43,2%. O que contrasta com os crescimentos verificados na Polónia (151,7%), na Bielorrússia (94,8%) e na Rússia (18,3%). Remetendo-nos ao que diz Todd sobre a aptidão do PIB para caracterizar adequadamente as capacidades produtivas, poderemos naturalmente interrogar-nos sobre o significado real de tais percentagens. Dificuldades que se apresentarão também sobre os dados relativos à China, que terá aumentado o seu PIB em quase 15 vezes (ou seja, um crescimento de quase 1500%), mas que suscitam interrogações sobre a capacidade de Radhika Desai – que no encontro manifesta entusiasmo pela possibilidade de outros países, em particular a Rússia, de repetirem o sucesso chinês – em compreender o mundo em que vivemos. Acreditar que o crescimento económico em forte ritmo, sobretudo em países de elevadas populações, ainda é possível nos tempos que correm, é para mim mera inconsciência.
[3] Mas as degradações da condição imperialista dos Estados Unidos são também visíveis no reforço das relações da China com todos os grandes produtores de petróleo do Médio Oriente, em particular no que concerne ao alinhamento, em termos de guerra tecnológica, da Arábia Saudita com essa potência imperial em expansão. Tenha-se por outro lado em atenção a atitude dos Emirados Árabes Unidos, assumida em Fevereiro de 2022, de (além de aprofundarem os seus laços com a Rússia) comprarem aviões de combate à China, tendo previamente desistido de um acordo para comprar F35s americanos. Ver, a tais propósitos, os desenvolvimentos feitos pela Professora Helen Thompson em artigo consultável no link https://aviagemdosargonautas.net/2023/07/10/espuma-dos-dias-sera-que-o-ocidente-perdeu-o-controlo-do-petroleo-por-helen-thompson/.
[4] Perturbações, acrescento eu, que vão desde os boicotes que os EUA têm exercido (sanções que aliás os americanos têm feito todos os possíveis para que sejam também adoptadas pelos restantes países ocidentais) sobre as importações provenientes da China – em particular visando desenvolvimentos industriais na área do digital – até ao favorecimento de uma “desglobalização” que tem começado por incentivar uma reindustrialização (seria conveniente, a tal propósito, ter em consideração o IRA – Inflation Reduction Act –, uma lei que as instituições políticas americanas aprovaram em Agosto passado visando criar condições para tal reindustrialização e combater a inflação, mas é algo que não é possível fazer neste texto) no seu território (e que países de UE procuram seguir). Sabemos que a fraca inflação das últimas décadas que os apoiantes do neoliberalismo têm atribuído aos desenvolvimentos de tal sistema económico tiveram em grande medida como causa as importações de produtos chineses de baixíssimos preços. Ou seja, a globalização que agora se começou já a fazer recuar.
[5] Situação que, segundo as notícias que vão aparecendo, está em fase mais avançada no Reino Unido e nos EUA. Mas em que Lagarde se quis apoiar para convencer os governantes portugueses de que a causa da inflação em Portugal é, ou podia vir a ser, o crescimento dos custos salariais (parece claro que tal crescimento está em curso num sector específico – o turismo – mas por razões específicas associadas à forte “invasão” turística dos últimos tempos).
[6] Sobre tal intervenção da economista do FMI no fórum anual do BCE ver a crónica de Philippe Escande no Le Monde de 2023-06-28, página 16 (“Inflation, ces trois vérités qui dérangent”).