Há uma luz pura cimeira
COMBATENTES DA LIBERDADE – Olá, Comandante
Olá, Comandante: escreve a Lambida… sabes bem quem sou – ou fui – e estou aqui para te lembrar que me deves a vida… e a tua vida de combate!
Alípio de Freitas
Não quero ser presunçosa… mas os teus e as tuas amigas têm-te por perto, aprendem e discutem contigo… porque eu apareci na tua vida!
Como me conheceste bem… sabes que sempre fui muito convencida e feliz, apesar daqueles tempos no Brasil de miséria, repressão e morte.
Os cães da minha zona de influência não me resistiam. Mas os humanos como tu, ou o meu dono, o António, também não!
Bastava eu abanar o rabo ou a pestana e logo vinham todo(a)s, carinhoso(a)s, fazer-me umas festinhas à procura de mimos e lambidelas.
Consegui sempre afeiçoar-me à gente que passava lá por Goiás. Gente clandestina a quem o meu dono dava guarida sem nada perguntar, que vinha pela noite, partia escondida, vinha meses mais tarde, ficava um dia ou dois e desaparecia de novo sem eu saber porquê.
E eu ficava sempre com saudades de vocês todo(a)s, à espera de vos reencontrar com um osso ou um bocado de arroz que traziam no vosso bornal.
Mas a vida é a vida: a idade foi avançando, comecei a ficar doente. Vivi mais ou menos bem com isso até que comecei a fraquejar.
Mas tu não fraquejaste! Escreveste no “Resistir é Preciso” sobre a tua prisão e as primeiras sessões de tortura: Senti o meu fim próximo e alegrei-me. Uma alegria calma e serena de quem parte por vontade própria. A alegria do combatente que deixa o campo de batalha depois de, em luta desigual, ter derrotado a soberba dos inimigos. Assim eu partia.
Mas não partiste porque quando percebeste que não ias morrer, decidiste resistir.
Eu, porém, tive de partir. O meu amigo António viu bem que eu estava em muito sofrimento. Não teve coragem de me aliviar da dor.
Chegaste, como sempre cúmplice, altivo, sereno. Ele não perdeu tempo: pediu-te para me ajudares.
A tua pistola, sussurravas com os teus botões, era demasiadamente cruel para me mandar em paz.
Por isso, deste-me a tua cápsula de cianeto dissolvida em água com rapadura… e assim me fui sem agonia!
Quem é que se lixou? Tu! Não tiveste tempo de ir buscar uma outra ao farmacêutico do Rio de Janeiro que colaborava com a tua organização…e foste preso.
Ainda bem que não tiveste esse tempo! Hoje os teus amigos e as tuas amigas podem, por isso, comer umas picanhas, um feijão preto e celebrarem o quanto gostam de ti.
Sabes, Comandante… aqui por onde ando disseram-me que o teu Irmão Zeca Afonso, quando esteve preso em Caxias aí em Portugal, escreveu um poema chamado “Há uma Luz Pura Cimeira”.
É isso, Comandante… continuo a sentir-te como uma luz, pura e cimeira.
Por aqui, também ouvi dizer que há oito milhões de anos que a visão humana tem a capacidade de fazer a transdução da luz em sinal neurológico – e por isso vemos. O olho humano foi para lá da perfeição e tem características ímpares.
Comandante: tu já estás para além disso – já não precisas disso – porque és uma Luz, Pura, Cimeira.
Lambidelas muito carinhosas,
Lambida
Texto escrito em Outubro de 2016 (baseado em factos reais) em nome da cadela “LAMBIDA” , do António de Goiás, amigo do Alípio, para o livro “Alípio de Freitas – Palavras de Amigos”. Alípio de Freitas nasceu em Bragança a 17 de Fevereiro de 1929 e partiu para a constelação da utopia 13 de Junho de 2017.
Paulo Esperança
Alípio de Freitas
Canção de José Afonso
Baía de Guanabara santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza
Em Maio de mil setenta numa casa clandestina
Com campanheira e a filha
Caiu nas garras da CIA
Diz Alípio à nossa gente:
“Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil
Ao lado dos explorados no combate à opressão
Não me importa que me matem
Outros amigos virão” lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas
Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome
Fascistas da mesma igualha
Sabei que o povo não falha
Seja aqui ou outra terra
Em Santa Cruz há um monstro
Só não vê quem não tem vista
Deu sete voltas à terra
Chamaram-lhe imperialista baía da Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza