Era uma vez na América [1]
ELEIÇÕES NOS EUA – A democracia americana
Não deixa de ser surpreendente que no país onde existem as universidades mais livres do mundo, onde os cidadãos afirmam à boca cheia viver em liberdade como em mais nenhum território do planeta e em torno do qual foi construída toda uma retórica sobre o american way of live baseado na ideia-força do valor supremo da liberdade individual, que se tema hoje pelo futuro da democracia americana.
Invasão do Capitólio, 8 janeiro 2021, ©Tyler Merbler
As eleições nos EUA passaram a ter episódios próprios de países com regimes ditaturiais como o da rejeição dos resultados das urnas validados por instituições credíveis e até assaltos aos edifícios que simbolizam o regime democrático por parte de partidários de candidatos derrotados.
História
Valerá a pena revisitar os acontecimentos e os períodos históricos que marcaram a história da construção de um regime que revela idiossincrasias que, observadas à distância, revelam tudo menos linearidade e simplicidade.
Em 1776, John Adams avaliava, no processo de redação da Declaração de Independência realizado pelos chamados pais-fundadores, o percurso dos regimes democráticos inscritos na história universal e sublinhava que nenhum tinha resistido ao tempo e todos acabariam por se extinguir.
Nessa fase de ponderação sobre a viabilidade da democracia para a futura União existiu mesmo uma certa desconfiança em relação ao potencial do sistema democrático e a inclinação maioritária apontava sobretudo em favor da República e não principalmente para o “governo pelo povo”. República, que também tinha o seu histórico de fracassos, veja-se a própria república romana e as outras que lhe sucederam, mas que apresentava as melhores condições para encaixar, num modelo apesar de tudo oposto às oligarquias e monarquias, as utopias que tanto entusiasmavam os revolucionários americanos daquela época. Estes desejavam criar um novo sistema, original, aberto e favorável às liberdades e aos direitos dos cidadãos.
República, ma non tropo
E assim, na rejeição da plena democracia, foram excluídos muitos setores da população americana com destaque para os afro-americanos escravizados, os povos nativos e as mulheres, fazendo assentar o sistema representativo nos homens brancos proprietários de terras e de escravos.
A questão da escravatura constituiu ela própria a grande perturbação e contradição daqueles que pretendiam seguir os iluministas franceses como Montesquieu e instalar um sistema marcado pela separação dos poderes e pelos direitos individuais e, ao mesmo tempo, manter seres humanos na sua dependência, como uma propriedade, através da violência física e moral.
Note-se que alguns dos pais fundadores como foi o caso de Jefferson, não só os possuía para as suas plantações como vivia em concubinagem com uma escrava, Sally Hemings, da qual teve vários filhos.
Paradoxos
Assim, sem aprofundar aspetos específicos e relevantes desta fase da construção do regime constitucional dos futuros Estados-Unidos [no início a União agrupou 13 Estados e alargar-se-á progressivamente ao longo dos tempos] constata-se que o edifício organizativo e político da nação estadunidense assenta por um lado numa vontade de mudança original [recorde-se que antecedeu a Revolução Francesa] e por outro, paradoxalmente, na preservação do poder numa elite que garantisse o sucesso de um projeto unionista ele próprio marcado por grandes desafios e ameaças que a Guerra de Secessão, entre 1861 e 1865, acabou por comprovar.
Carlos Ribeiro | NSF