AMBIENTE E ECONOMIA | DOSSIÊ – Parte 3
A AGRESSÃO AO PLANETA (III)
As desigualdades sociais que já foram expostas a propósito das emissões de GEE (gases com efeitos de estufa) e de outros aspectos da agressão ao meio ambiente têm-se adicionado, conforme também foi evidenciado, às desigualdades que em particular já são bem conhecidas e objecto de lutas entre classes que não deixaram de caracterizar as sociedades humanas desde o desencadeamento da revolução industrial.
Se as disputas sobre a distribuição, a partilha, do que se tem produzido desde então, conduziram ao desenvolvimento sindical, ao surgimento e desenvolvimento do marxismo e mesmo de regimes socialistas, em particular comunistas, já as agressões ao meio ambiente (com o sistema de produção a tornar-se um sistema de destruição) tendem a conduzir que se privilegie outro aspecto fundamental à vivência humana: as condições de habitabilidade do planeta. Assim, se os excessos de produção que estão por detrás das referidas agressões têm levado a que se desenvolvam teorias que defendem o “decrescimento” (em oposição frontal à generalidade dos empresários e maiorias políticas que continuam a considerar essencial o “crescimento económico”) já um filósofo, sociólogo e antropólogo como o francês Bruno Latour propõe outra via para fazer face aos problemas que afectam o nosso meio ambiente. Referindo que a ecologia é a nova luta de classes e que é preciso reforçar, dar um novo sentido, ao materialismo histórico, Latour acha essencial que se tenha em consideração o que as ciências do sistema Terra nos ensinam para além das ciências sociais.
As elites liberais, defensoras do capitalismo, encontraram o modo eficaz de prometer às classes mais pobres, crescentemente desde sobretudo o final da segunda guerra mundial, um “desenvolvimento infinito”. E é isso que tem mantido essas classes numa calma que em períodos anteriores não existia. É essa a percepção que Bruno Latour dá[1], contudo, da situação mais recente, o que o leva a falar de “traição” dessas elites para com essas classes mais pobres, dado estas não terem sido prevenidas de que esse “desenvolvimento infinito” tinha deixado de ser possível. Por outro lado, Latour, aparentemente numa perspectiva de encontrar um termo que possa substituir o “desenvolvimento infinito” de modo a motivar a luta contra o sistema por parte dessas classes menos favorecidas, opta por “prosperidade” – que considera precisamente o que a produção de características destruidoras do sistema torna impossível para a maioria das pessoas – preferivelmente a “decrescimento”. Trata-se, para o filósofo, de abordar a luta de classes em que a ecologia é o ponto central de modo a ganhar ideologicamente tal luta num novo ponto de partida. Essa preocupação de Latour ganha consistência quando lhe perguntam como insere as desigualdades sociais nas lutas pela ecologia. Uma tal questão tem implícita a ideia de que as agressões ao meio ambiente não reflectem desigualdades sociais, ou que não as agravam. E o entrevistado está pleno de razão quando, na sua resposta, pergunta: “Quem é que define o que é um problema social?” E explicita que as desigualdades ditas “sociais” não deixam de resultar de apropriações privadas excessivas do meio ambiente e que incidem sobre os objectos mais correntes: a habitação, a alimentação, a educação, a mobilidade, o trabalho, as relações familiares, a divisão dos géneros (com os conflitos sociais a incidir cada vez mais sobre as condições de habitabilidade). Não deixando de denunciar a utilização das palavras de ordem da antiga luta de classes para as virar contra a nova que mais recentemente começa a ser reconhecida como tal.
A “prosperidade” que Latour defende dá certamente um lugar essencial à habitabilidade e isso é importante quando se pretende criticar o excesso de produção material que alimenta um sistema de consumo desenfreado que leva às descargas exageradíssimas de lixo, em particular os GEE que já poluem a biosfera de modo que começa a ser insuportável e ameaçam o futuro da humanidade. E se em si o “sempre cada vez mais” associado ao “desenvolvimento infinito” não deixa de poder ser antagonizado por essa prosperidade, o que parece poder também ser dedutível deste último conceito para as massas humanas – e isso é claramente inconveniente – é que a prosperidade se alcança com mais consumo. Ora “decrescimento”, conceito que Latour põe de lado, tem a vantagem não só de evidenciar que o excesso de produção material tem que ser contrariado para cada humano em particular (e com maior relevo para os que mais consomem, os que pertencem às elites liberais) mas também a sua incompatibilidade com os números acrescidos que a demografia planetária tem vindo a revelar. É que, mantendo a situação presente de crescimento anual de cerca de 3%, conforme se refere no artigo[2] “Éloge de la décroissance”, dentro de 24 anos a produção e o consumo terão duplicado. O que significa que o tema do controlo do crescimento populacional necessita de ser tomado bastante a sério, já que esse crescimento, por si só, tende a requerer um excesso de produção material ainda mais acentuado. A questão que o artigo em referência tende a privilegiar parece limitar, contudo, os danos dos excessos de produção às emissões de GEE quando os lixos que resultam do processo produtivo têm, de facto, uma muito maior abrangência. O que, no entanto, não impede de reconhecer valor a muitas das posições de Vincent Liegey, em particular quando defende que “O que está em causa é também a renúncia ao produtivismo, ao consumismo, e deixar de entender e organizar a sociedade só através do prisma da economia. É conveniente juntar a esta reflexão uma crítica radical do tecnocientismo, uma alienação que pretende que a tecnologia poderá resolver tudo”.
O decrescimento, contudo, levanta uma infinidade de problemas. Em primeiro lugar, os seus proponentes não chegam facilmente a acordo sobre as medidas que será necessário tomar para o fazer avançar. Alguns desses seus defensores – que começam por preferir falar não de decrescimento mas sim de “pós-crescimento” – atribuem grande importância a ideais de solidariedade que se afirmariam pela criação de grupos de compras locais, moedas locais, hortas urbanas e iniciativas de várias naturezas e origens. Essa criatividade local que privilegiaria a autonomia opor-se-ia aos planos que vêm do topo e afirmar-se-ia por modos de governação que seriam policêntricos. Estes são ideais que merecem certamente toda a consideração, mas que não parecem apresentar as respostas que são necessárias ao conjunto de agressões que actualmente atingem o planeta.[3] Em segundo lugar, a defesa do decrescimento encontra dificuldades quando se consideram os países menos desenvolvidos e se procura definir os meios que permitam avançar em tal sentido sem impedir tais países de virem a atingir níveis de qualidade de vida que os aproximem dos mais adiantados nessa particularidade. Dir-se-á em tal contexto que “Se os Ocidentais não têm qualquer legitimidade em procurar impor aos outros os condicionamentos em termos de consumismo que começam a encarar para eles próprios, eles têm a dupla obrigação de reconhecer a sua responsabilidade nas catástrofes, tanto as que já estamos a viver como as que hão-de vir, e de pôr um termo à exploração dos países do Sul” (conforme se diz no texto já referido de Vincent Liegey). Reconhecendo a sua responsabilidade, os Ocidentais deverão não só reduzir os seus consumos como participar financeiramente na reestruturação das economias dos países menos desenvolvidos, de modo a permitir-lhes aceder à referida qualidade de vida sem que a actividade que tenham que desenvolver para tal efeito agrave a situação em termos planetários. Por outro lado, a redução dos consumos e logo a da produção nos países desenvolvidos, levanta problemas enormes: um sistema empresarial dimensionado em termos de activos investidos (sobretudo imobiliários) e de recursos humanos para fazer face a uma procura que irá ter quebras muito significativas, não poderá deixar de ser fortemente afectado e não só uma sucessão de falências será inevitável como os problemas que surgirão com a quebra de rendimentos dos trabalhadores colocarão eventualmente a sociedade numa situação extremamente caótica. E sublinha-se o “eventualmente” porque não se poderá pôr de lado a possibilidade de as instituições que governam os países desenvolvidos (em que será necessário incluir já a China e mesmo outros actores como o Brasil e a Índia que, pelas dimensões demográficas e de esforço produtivo que os caracterizam, não podem nesse contexto ser ignorados) encontrem meios de superar essa ameaça de caos. Capacidade que, neste momento, parece contudo extremamente improvável.
Essa improbabilidade vê-se reforçada por outros factores que até agora não foram referidos neste texto e nos que o precedem com o necessário desenvolvimento. Entre eles figura o crescimento demográfico. Actualmente a população deste nosso mundo deverá atingir perto de 8 mil milhões (éramos cerca de mil milhões em 1800). Quantos seremos em 2100? 10 mil milhões? Evolução que poderá não ser o mais importante pois os 8 mil milhões já produzem resíduos que causam não só grandes dificuldades mas também ameaças que chegam para colocar outros problemas que até agora só podem ser classificados de insolúveis e que estão bastante para além da substituição dos combustíveis fósseis pelas energias renováveis. São questões porém que não poderão ser abordadas neste momento, ficando para um próximo texto.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2021
Filipe do Carmo
[1] Em entrevista publicada em 2021-12-11 no Le Monde (páginas 38 a 40).
[2] Artigo de Vincent Liegey no Le Monde Diplomatique, Outubro de 2021 (página 20).
[3] Ver em particular o livro Vers une société post-croissance, obra dirigida por I. Cassiers, K. Maréchal, D. Méda (Editora L’Aube).