DOSSIÊ ICE |A imprensa portuguesa em França: emigração e exílio
SEM FRONTEIRAS | 21 de fevereiro 2021 | DOSSIÊ ICE | Aprofundamento temático | Sónia Ferreira
Depois de José Manuel Cordeiro na primeira semana deste dossiê nos ter conduzido através dos tempos para, de forma minuciosa, nos introduzir aos contextos e às publicações que emergiram entre 1926 e 1974 é a vez de Sónia Ferreira de nos apoiar numa reflexão sobre as práticas e as experiências associadas ao período descrito. Editado CR-SF
A imprensa portuguesa em França: emigração e exílio
por Sónia Ferreira
Nas décadas de 60 e 70 proliferam em França um conjunto de publicações produzidas por ou para os emigrantes e exilados políticos portugueses. Estas publicações são produzidas, distribuídas e lidas tanto por exilados como por emigrantes, ou seja, por todos aqueles que, quer por motivos económicos ou políticos ou ambos, deixaram Portugal e vivem em território francês.
As décadas de 60 e 70 constituem-se assim em França como um dos períodos mais prolíficos da história da imprensa portuguesa nesse país. Numa listagem apresentada por Volovitch-Tavares (1994) podemos contabilizar 86 títulos publicados no período entre 1960 e 1974. Clímaco (1992), especificamente para o período de 1963-1974 refere um número ainda superior, 108 títulos. A maior parte destas publicações encontram-se ligadas a grupos portugueses militantes de esquerda ou esquerda radical (Volovitch-Tavares, 1994: 110), movimentos políticos que se desenvolveram de forma expressiva no estrangeiro, com particular incidência em França.
Jovens desertores ou refractários
Muitos têm comités do “interior” (Portugal) e do “exterior” (França, etc.) e produzem publicações (jornais, boletins, etc.) que visam ou a comunicação interna ou a difusão das suas ideias, tanto pelas populações em Portugal como pelas populações emigradas. Alguns destes grupos dinamizaram ainda em França, na Dinamarca, na Suécia, na Holanda, entre outros países, “Comités de Desertores” que apoiavam os jovens que como desertores ou refractários quisessem sair de Portugal para não cumprirem o serviço militar ou, já incorporados neste, irem combater na Guerra Colonial. Alguns destes comités publicaram boletins, brochuras, jornais e revistas.
A chegada numerosa de militantes de esquerda e esquerda radical e de refractários e desertores vai assim marcar a emigração política portuguesa deste período e subsequentemente a produção de órgãos imprensa e seus derivados (panfletos, brochuras, etc.). Conduzirá também a um centramento das temáticas em discussão nestes órgãos de imprensa na denúncia ao regime ditatorial português e à guerra por este conduzida nas suas colónias africanas. A existência de várias publicações bilíngues ou mesmo apenas em francês demonstra a vontade de levar a mensagem mais longe, para fora do grupo nacional.
Publicações bilingues
Neste período podemos ainda encontrar publicações com outras características, algumas emanando, por exemplo, de associações de emigrantes ou de sectores profissionais específicos, outras ainda ligadas a instituições que mantêm laços estreitos com o regime português (“Notícias de Portugal”[1] (1969), “Correio Português”[2] (1966), “Portugal Popular”[3] (1968)) ou oriundas de instituições religiosas, quer francesas quer portuguesas (“Presença Portuguesa”[4] (1966)).
Por fim, podemos ainda encontrar publicações vinculadas a grupos ou associações francesas, constituindo na maior parte dos casos suplementos de jornais franceses como é o caso do jornal “Portugal Libertário” (1973), suplemento do “Front Libertaire” (1970) ou o “Combate Operário (1973)”, suplemento do “Rouge” (1968). Algumas destas publicações são, como referido, bilingues, como é o caso da “Luta/Lutte” (1972-1975) o “Boletim do Comité de Apoio aos Desertores Portugueses em França” (1973) ou exclusivamente em francês como o “Les luttes de classe au Portugal” (1972). Dentro desta centena de títulos publicados entre 1964 e 1974, dois terços encontram-se ligados à situação política e colonial de Portugal (Volovitch-Tavares, 1994) e sendo verdade que muitos tiveram existência efémera, outros gozaram de uma existência duradoura.
Tipologia das publicações
De um ponto de vista classificatório, Clímaco (1992) propõe sete tipos de imprensa portuguesa em França: 1) publicações de organizações francesas dirigidas à emigração económica portuguesa; 2) publicações de instituições portuguesas (bancos, governo, igreja) dirigidas à emigração económica portuguesa; 3) jornais editados pela emigração económica (meio associativo); 4) jornais editados pela emigração política dirigidos à emigração económica; 5) publicações editadas pela emigração política destinada a si própria enquanto exilados e aos intelectuais franceses (principalmente brochuras e panfletos); 6) publicações dirigidas exclusivamente aos desertores e refractários; 7) publicações internas de grupos políticos.
Muitas das publicações acima referidas, assim como os seus produtores, circulavam pelos vários espaços do “exílio português” na Europa, mas também em África e no Brasil. Algumas das publicações, brochuras, panfletos produzidas em França eram vendidas ou difundidas também noutros países europeus e enviadas, como acontece com “O Alarme!..” e “O Salto”, aos movimentos de libertação africanos. Por exemplo, n’“O Alarme!..” na rubrica “O Povo Escreve” (nº 21, Junho 1974, p. 2), podemos ler a carta de um leitor (datada de 28/04/74) que se encontra a prestar serviço militar na Guiné-Bissau e que pede informações sobre como assinar o jornal do qual já recebe partes enviadas por um colega que vive em França. O jornal “Portugal Democrático” (1956-1975), produzido no Brasil (São Paulo) por exilados e opositores ao regime português era também vendido em Paris.
Temas laborais
A imprensa referida acima constitui-se nesse sentido como uma fonte importantíssima de análise e compreensão da história da emigração portuguesa e da realidade histórica do Portugal das décadas de 60 e 70 mas igualmente da França, dos movimentos políticos e sociais que acolheu, das relações internacionais e transnacionais que no seu solo se estabeleceram entre militantes e grupos políticos de diversas origens e nacionalidades e também da história do trabalho e dos conflitos e lutas laborais, por serem estes não só temas bastante abordados nalguma desta imprensa – com boletins, por exemplo, no seio de estruturas sindicais como a CGT e a CFDT produzidos em português(“O Trabalhador” (1964) (Silva, 2000), o “Liberdade Sindical” (1967) e “A Voz do Trabalhador” (1969)) e em aglomerados fabris como a Renault (em Boulogne-Billancourt) com o “Ergue-te e Luta” (1972) mas também publicações sobre relações de género como o “Trabalhadora Toma a Palavra e Luta”[5].
As publicações de esquerda de cariz mais militante e ideologicamente investidas permitem assim, por exemplo, analisar o processo de proletarização de uma população essencialmente rural assim como, nalguns casos, da sua politização.
Mas igualmente os seus problemas laborais quotidianos e as relações com Portugal assim como o estabelecimento de laços e redes transnacionais em termos de militância através, por exemplo, dos comités de desertores na Europa e também as ligações que se estabeleciam com os movimentos de libertação africanos.
Representação contra-hegemónica
A sua análise oferece-nos ainda uma representação contra-hegemónica sobre a emigração portuguesa, por ir contra a representação vigente do português como o “bom imigrante” (Espírito Santo, 2013), bem integrado, conservador e de matriz cultural rural que anula os focos de politização, as greves e movimentos sociais em que os emigrantes portugueses estiveram envolvidos. Conteúdos que podemos ler, por exemplo, em jornais como “O Alarme!..” mas também “O Salto” (1970) (Clímaco, 1992), o “O Imigrado Português” (1969) (Espírito Santo, 2013) ou “O Jornal do Emigrante” (1968) (Jelen, 2004).
Sobre a temática: http://monographs.uc.pt/iuc/catalog/view/106/266/433-1
Bibliografia
CLÍMACO PEREIRA, Ana Cristina. La presse de l’émigration politique portugaise en France – analyse du journal O Salto 1970-1974. tese para a obtenção do grau de mestre sob a direcção de Andrée Bachoud, Universidade de Paris VII, 1992.
CRUZ, Alfredo. Présence portugaise. L’immigration portugaise vue à travers un journal de l’Église catholique de France. tese para a obtenção do grau de mestre sob a orientação de Annie Fourcaut e Antoine Prost, Universidade Panthéon-Sorbonne, Paris, 1996.
ESPÍRITO SANTO, Inês. Du clandestin au citoyen européen Quand les immigrés portugais font figure de travailleurs (France, 1962-2012). tese para a obtenção do grau de doutor em Sociologia, EHESS/Paris, 2013.
JELEN, Brigitte. “La presse portugaise et maghrébine des années soixante-dix, entre communauté et société”, in: Hommes et Migrations, 1250, 2004.
SILVA, J. La CGT et les travailleurs portugais immigrés en France, à travers l’étude du journal O Trabalhador, mensuel de la CGT pour les travailleurs portugais, (1972-1979). tese para a obtenção do grau de mestre, Universidade Panthéon-Sorbonne, Paris, 2000.
VOLOVITCH-TAVARES, Marie Christine. “Les Portugais dans la région parisienne depuis la fin de la Deuxiéme Guerre Mondiale jusqu’en 1974”, in: MARÈS, Antoine et MILZA, Pierre. Le Paris des étrangers depuis 1945. Paris: Publications de la Sorbonne, 1994.
[1] Promovida pelo governo português.
[2] Subvencionado pelas autoridades consulares.
[3] Financiado pelas instituições bancárias portuguesas com presença em França
[4] Publicação ecuménica francesa publicada pelo Serviço Inter-diocesano dos Trabalhadores Imigrados. Ver: (Cruz, 1996).
[5] Conhece-se um exemplar desta publicação datado de Março de 1972 mas desconhece-se se será esse o ano de início da publicação.
Primeiro artigo so Sónia Ferreira para o Dossiê Imprensa Clandestina e do Exílio do SEM FRONTEIRAS; o artigo seguinte será sobre o jornal O Alarme.
Sónia Ferreira
Investigadora | CRIA – Centro em Rede de Investigação em AntropologiaProfessora Auxiliar Convidada | Departamento Antropologia | NOVA FCSH Investigadora Associada | URMIS | Univ. Paris