Era a vida no palco (7)
REVISITAR EXPERIÊNCIAS | O Teatro e o combate à extrema-direita (7)
Entramos num segundo ciclo do dossiê sobre Teatro e o combate à extrema-direita divulgando casos concretos de atividade de Grupos de Teatro nos países de acolhimento de exilados, desertores e imigrantes económicos, como é aqui o caso de Grenoble em França, antes do 25 de abril 1974. Editado CR – Sem Fronteiras
GRUPO DE TEATRO DE GRENOBLE
por José Carlos Godinho
O Grupo de Teatro Português de Grenoble surgiu, como o jornal O Alarme e depois o Cinema Operário, em resposta à necessidade sentida por um grupo de militantes antifascistas portugueses de meios que permitissem intervir e fazer agitação política junto da Comunidade Portuguesa em Grenoble. Nasceu, por isso, num contexto bem específico e para responder a questões bem concretas – nos antípodas da arte pela arte, ou opções estéticas similares.
Teresa Couto e o Alarme
Porquê esta forma de expressão artística tão peculiar, o teatro ?
O motivo é óbvio: dois elementos do grupo já haviam feito teatro, tinham alguma experiência de encenação e representação (tinham levado à cena, numa aldeia de Portugal, a peça A RAPOSA E AS UVAS, do brasileiro Guilherme de Figueiredo) e, por isso, conheciam as potencialidades desta arte na interacção com as pessoas.
Decorria, naquela altura, uma grande luta numa empresa de construção civil onde trabalhavam muitos portugueses, e pretendia-se intervir no sentido de apoiar essa greve. Quando esses dois elementos propuseram uma intervenção baseada num espectáculo teatral, explicando o impacto que poderia ter, o pequeno grupo de activistas concordou com entusiasmo. Tomada a decisão, fui incumbido de escrever e encenar um texto colocando em cena essa luta de algumas dezenas de operários contra a empresa Lucius, e assim nasceu TODOS UNIDOS VENCEREMOS.
Deixar margem para o improviso
Foi fácil encontrar um grupo de jovens interessados em fazer teatro, entre os quais algumas mulheres. O elenco era constituído na sua maioria por operários fazendo o seu próprio papel, um estudante e alguns ex-estudantes, nessa altura proletarizados. O tempo urgia porque a luta estava a decorrer, e pretendia-se participar, apoiá-la, mas a tarefa revela-se gigantesca – estava tudo por fazer. Com pouco tempo e um elenco que desconhecia em absoluto o que fosse representar, pareceu-me que o melhor seria não sobrecarregar os actores com muito texto para decorar e deixar uma boa margem para o improviso de cada um, pois que faziam o seu próprio papel.
O fundamental seria conhecerem a estória que iam contando, atribuir algumas frases chave a cada personagem e deixar a acção decorrer e os actores irem compondo o seu papel, até porque os dois elementos mais experientes também representavam e podiam ir dando rumo ao espectáculo. Compreende-se, assim, que o que escrevi era mais um guião que iria ser adaptado, refeito, mero instrumento para a construção de um espectáculo, onde se delineava o esqueleto de cada personagem que depois iria ser vestido pela imaginação e criatividade de cada actor. Indicavam-se ainda momentos em que deveriam passar algumas músicas do Tino.
Grupo os Camaradas com Tino Flores, Arnaldo Franco e Ângelo.
No final, discussão com os espectadores
Este trabalho foi apresentado 3 vezes, proporcionando momentos de grande empolgação, e sempre com discussão com os espectadores no final.
Dado esta experiência teatral ter sido avaliada como muito positiva, foi decidido prossegui-la e fazer outra peça, e fui de novo incumbido de a escrever. Como desta vez não havia um leitmotiv, um assunto específico que a motivasse, achei importante escrever e encenar uma peça sobre a luta contra o fascismo e o capitalismo, falando do trabalho e da exploração numa mina, onde a repressão a uma greve iria mobilizar e unir os mineiros, associando também as mulheres a esta luta. Assim nasceu TODOS JUNTOS TIRÁMOS O JOÃO DA CADEIA. O texto final era discutido em termos políticos, e acontecia as cenas serem alteradas, o que, em alguns casos, resultava numa perda do impacto pretendido, ou alterava características importantes do personagem. Mas prevalecia sempre a opinião política. No caso desta peça o título foi atribuído pelo grupo, que achava que devia ser uma palavra de ordem; eu discordei, até porque o título que prevaleceu não é uma palavra de ordem.
Festa de Fontaine com 300 pessoas
Apesar dos condicionalismos, esta peça já representa uma evolução relativamente à primeira, como momentos de tensão e personagens modelados, quando a outra se aproximava mais do teatro vicentino, no sentido de que tínhamos apenas um problema vivido por personagens tipo, que se moviam num ambiente maniqueísta. Agora alguns personagens mudam as opiniões, atitudes, vão-se consciencializando ao longo da estória, e era evidente a mudança de comportamento dos espectadores, ora de riso pelas situações apresentadas, ora de grande expectativa sobre a situação que viam em cena. Recordo, em particular, a festa de Fontaine com 300 pessoas, onde, no momento em que, no palco, um rapaz procurava o pai que tinha sido preso e o Tino cantava “O meu amigo está preso”, se ouviam as moscas na sala… Representámos esta peça mais 2 vezes em Grenoble e depois em Paris. Ainda sobre a festa de Fontaine, remeto para o romance “A SALTO” (no prelo) onde é detalhadamente descrita.
Uma peça que não chegou ao palco
Na sequência, e continuando o trabalho com teatro, escrevi uma terceira peça, mais profunda, onde era apresentada a nossa perspectiva sobre diversas outras questões, como a situação da mulher na sociedade capitalista, o problema de aborto – muito actual na época, com manifestações de rua, prisões de activistas, etc, – e toda a problemática ligada à luta anticapitalista e anticolonialista. Resultou um texto muito mais conseguido, mais abrangente nos seus objectivos, com claros momentos de relaxe e outros de grande tensão, e que sem dúvida daria um excelente espectáculo. Contudo, divergências no momento da discussão do texto, impediram-me de o encenar. O grupo ficou com o texto, que acabou por se perder; o próprio grupo se dissolveu. Pouco depois eu fundava o Cinema Operário, no âmbito do qual realizei 3 filmes. Mas essa é outra História.
Dois textos publicados
A análise feita a esta experiência de agitação com teatro permitiu-nos observar a pertinência desta forma de expressão artística, ao permitir uma intervenção política rápida, se necessário, perfeita adequação à situação em causa – era a vida no palco, muita discussão política com o elenco e com os espectadores, e permitia que mais facilmente estes se revissem na estória, tomando partido – por exemplo, quando insultavam os pides, ou aplaudindo na vitória dos trabalhadores – … e sem grandes custos de produção.
Os dois textos foram publicados posteriormente, mas já não participei nesse trabalho. Foi um erro, porque os textos originais estavam pejados de emendas, alterações, contributos diversos, todo tipo de anotações que eu próprio, que as havia escrito, teria dificuldade, na altura da edição, em decifrar. A equipe que os editou fez o que podia. Mas enfim…. Têm o mérito de existir e sempre podem dar uma ideia do que poderão ter sido os espactáculos.
José Carlos Godinho