O sol na cabeça
LIVROS SEM FRONTEIRAS | Sol na cabeça, Geovani Martins | Editado CR-SF
por Tiago Pereira da Silva
Já dizia a personagem de Philip Seymour Hoffman no filme «Almost Famous» que: “a verdadeira música é que nos escolhe e não o contrário!”. É possível que com a verdadeira literatura isso também aconteça.
Ou se nos lembrarmos da personagem Lesra no filme «The Hurricane», interpretada pelo actor Vicellous Shannon que a dada altura no filme sente a súbita “atracção” pela capa de um livro («the 16th Round» que o próprio Rubin “hurricane” Carter havia escrito na prisão) ao percorrer uma feira do livro, com a sua nova “família” afectiva Canadiana. A realidade é que esse acaso acabou por determinar a defesa de Rubin anos mais tarde e garantir que a justiça imperava num processo absolutamente escandaloso.
Tropeçar em Geovani
Depois desta breve referência no que toca a “encontros e coincidências” literárias venho com alguma vergonha sublinhar que só agora “tropecei” no autor brasileiro Geovani Martins. Se na edição do ano passado da Feira do Livro de Lisboa descobri alguma da obra do também brasileiro Francisco Bosco, este ano, muito por força do que nos tem apontado o notabilíssimo escritor português Valter Hugo Mãe, comprei e devorei em dois dias o livro «O Sol na Cabeça» do escritor carioca, editado em Portugal pela «Companhia das Letras» e que parece estar a revolucionar uma nova geração de escritores no Brasil. Podem crer que este livro “escolheu-me” e não o contrário!
É impossível ficar indiferente a «O Sol na Cabeça» e a um cocktail de personagens ensombradas de esperança e desespero, mas sempre “iluminadas” pelo olhar sensível do narrador que aqui vos apresento, como quando ele nos escreve a passagem
“Seria toda a ligação que eu sentia pulsar entre a gente, apenas coisa da minha cabeça? Será que a verdade é que nascemos sozinhos e morremos sozinhos, sem nunca permitir que o outro habite a nossa intimidade?”
“Deus e o Diabo se sentam à mesma mesa”
A pequena obra é apresentada sob a forma de 13 contos em que Geovani flana suas personagens pelo Rio de Janeiro das favelas, bem longe do cartão postal que alguns insistem em (só) ver da cidade. Histórias que relatam o mundo complexo de milhares de vidas de uma cidade efervescente, numa fronteira gigantesca entre os moradores dos morros da zona sul e os privilegiados, ou como o próprio autor indica em sua obra – em que “a droga é o combustível da cidade. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ónibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada.” A cidade onde de facto “Deus e o Diabo se sentam à mesma mesa” como calibrou tão bem o cineasta Glauber Rocha. Contudo um dos aspectos que mais pode impressionar na obra de Geovani Martins é que o autor, deliberadamente, omite as raças de suas personagens.
Cansado que está, também ele, de que “os negros da literatura sejam definidos, em primeiro lugar, por sua cor.
Tudo isto sem qualquer dose de um “moralismo” paternalisticamente previsível.
«Samba de Guerrilha»
A propósito de sua estreia literária na famosa FLIP (Festa Literária Internacional do Paraty) apercebeu-se justamente dessa condição, quando sublinhou: “ali eu percebi que era negro. Porque era o único. Todos os outros eram brancos”. A questão da pele não pode de todo ser secundarizada quando falamos numa cidade como o Rio de Janeiro. Quem nunca ouviu o mais recente disco do Luca Argel – «Samba de Guerrilha» – músico brasileiro residente em Portugal terá vários motivos de interesse para o fazer. Quando falo em Geovani Martins creio de absoluta pertinência invocar também a obra de Argel. Em primeiro lugar porque Luca é daquela matéria com que muitos brasileiros nascem – destila música por todos os poros. Depois porque há outro grande motivo de interesse, ou não fosse o disco «Samba de Guerrilha» uma aula de história protagonizada e declamada pela incrível Telma Tvon. Mas não uma história qualquer e sim a história negra do Brasil de semente Africana. Ou se quiserem, a história dos “pretos ou quase pretos de tão pobres são tratados” como escreveu Caetano e Gil, dessas que envergonhadamente ainda não contamos na escola (talvez por desconforto com o nosso passado colonizador ou sobretudo porque as questões raciais dominam ainda muitos sectores da nossa sociedade).
Medo
Há por isso aspectos que se cruzam na obra «Samba de Guerrilha» de Luca Argel e de «O Sol na Cabeça» de Geovani Martins – como o medo. Mas se na obra do músico exalta-se o medo que os tiranos sentiam do povo no período da escravatura, daí a sua imposição e estabelecimento por séculos e séculos, na obra do escritor esse medo permanece perpetuado no obscurantismo de certas classes sociais, onde na condição de pobreza há o medo real das crianças que brincam e emergem num contexto muitas vezes de glorificação do narcotraficante. Como dizia Chico Buarque há uns anos: “não tem como um adolescente crescer numa favela e não se sentir atraído pelo universo do narcotraficante. Os seus amigos que trabalham com o bagulho ostentam os fios de ouro, os ténis de marca, ou a garota mais foda de toda a favela”.
Mas há sobretudo em «O Sol na Cabeça» o medo real das intervenções desproporcionais da polícia na favela e as vítimas das balas perdidas, numa guerra que nunca mais parece ter fim. Em que como reconheceram os cineastas brasileiros: José Padilha ou Fernando Meirelles “no Rio o tipo de armas que é utilizado no narcotráfico é utilizado em outras partes do mundo para fazer a guerra”. Brasil que como nos lembra Luca Argel pela voz de Telma Tvon, emerge neste século XXI herdeiro de uma “tradição” esclavagista de mais de 350 anos. Mais de metade da idade do país.
“Quantas pessoas foram escravizadas? Pelo menos 5 milhões. E onde estava a maioria deles? Precisamente no Rio de Janeiro. (…)”
“Por volta do ano de 1840 quase metade da população do Rio era de escravizados. Aliás o Rio tinha por esses dias do século XIX mais africanos do que qualquer outra cidade em África” só para se ter uma noção histórica dos números. Escravatura essa, que como sabemos, só viria a ser abolida no decreto do 13 de Maio de 1888 no Brasil.
Falar do Rio de Janeiro é falar desta história e é não esquecer a história. Geovani Martins emerge como um dos filhos mais legítimos deste caldo multi-cultutal de contrastes. E o seu livro é um arrombo, que se torna ainda mais urgente no Brasil actual em que o seu líder máximo quer basear a sua natureza politica: na exclusão, no medo, na ditadura do preconceito, propagandeando uma envangelização religiosa irracional no pensamento do brasileiro comum em contraste com a verdade do que a ciência nos traz.
Construção de linguagens
Alguns reputados críticos literários sublinham a capacidade que Geovani tem ao longo de toda a obra de “pular entre a oralidade mais rasgada” – em que a representação real da oralidade da gíria “Carioca” das favela quase se torna impercetível para um leitor mais distraído – para “o português mais canónico”. Lembramo-nos ao ler «O Sol na Cabeça» de referências universais da nossa língua como o brasileiro João Guimarães Rosa e o seu «Grande Sertão: Veredas» em que o autor inova justamente pela construção de linguagens, a começar na narração do seu protagonista Riobaldo e suas andanças pelo sertão brasileiro, em que se traduz essa cristalização da oralidade popular de cada uma das suas personagens.
Mas o que mais “rola” aqui com ou sem Glossário é que Geovani parece narrar o quotidiano carioca bem ao estilo de um Realismo Urbano consagrado por nomes como o cubano Pedro Juan Gutiérrez e a sua respeitadíssima «Trilogia Suja de Havana». Criando no leitor a sensação, o tempo todo, de uma ficção que se mistura com o real. Bem que se poderia dizer que mais do que ser fruto de sua criatividade, «O Sol na Cabeça» parece ser um compêndio de coisas que Geovani viu acontecer consigo e seus companheiros de infância e adolescência, na sobrevivência diária que é ou deverá ser o dia-a-dia numa favela. “Nascido e criado nas favelas cariocas”, Geovani deixa-nos com o seu «O Sol na Cabeça» 13 contos em forma de relatos, em que
“o amor, a amizade, o prazer dos banhos do mar, as brincadeiras de rua, a adrenalina das pinturas de murais, namoros fugazes”
tendo quase sempre as favelas como pano de fundo e as limitações da vida do habitante comum resultantes do barómetro do narcotráfico como o espelho real e fervilhante do que é o rio.
Chamam-lhe uma das novas grandes vozes da literatura escrita em português. Se por estes dias for à Feira do Livro (Porto ou Lisboa), confira também!
Tiago Pereira da Silva
Professor do Ensino Oficial e Professor Assistente no Ensino Superior. Treinador e orientador de práticas desportivas.