A deserção é uma história que parece começar a sair do silêncio
ESPECIAL SF | Comunicação de Miguel Cardina
No 50º aniversário da ODTI, associação francesa da região de Grenoble que se inscreve numa atividade solidária de cunho internacionalista, foram realizadas diversas iniciativas que contaram com o contributo de várias associações e de instituições do ensino superior que trouxeram ao evento uma base reflexiva sobre temas críticos da sociedade francesa e europeia atual.
Uma dessas áreas temáticas, a questão das guerras coloniais e da deserção, foi abordada e desenvolvida por Miguel Cardina que se dirigiu aos participantes da Conferência Internacional promovida pela ODTI em francês e a distância.
Reproduzimos aqui o vídeo da comunicação do investigador e professor na Universidade de Coimbra e divulgamos a versão em português num texto que o próprio Miguel Cardina nos facultou com a sua habitual generosidade e disponibilidade para alimentar o debate sobre causas e temas de desenvolvimento.
Editámos o texto com subtítulos, alguns destaque e multimédia complementar para apoiar o leitor no intenso e apaixonante percurso temático que Miguel Cardina nos propõe.
Vídeo projetado na Conferência
Versão portuguesa do vídeo (em texto)
Portugal e os desertores
Miguel Cardina
Gostaria de começar com uma história situada nestes nossos novos tempos. Em março de 2020, no início da pandemia da COVID, Rodrigo Guedes de Carvalho, um conhecido pivot de telejornal, da SIC, encerrou o noticiário com uma pequena nota. Falando aos jovens, disse-lhes que,
“aos seus avós, tinha sido pedido para irem para uma guerra e que a eles era apenas pedido para ficarem no sofá. A guerra a que Rodrigo Guedes de Carvalho se referia era a “guerra colonial”.
Tratava-se de mais um exemplo de utilização de metáforas bélicas para caracterizar a crise pandémica que ainda vivemos. Mas era também a reprodução de uma certa leitura existente em Portugal sobre a guerra colonial: um conflito que se fez por dever patriótico e ao qual, mal ou bem, a maioria dos jovens dos anos 60 e 70, teve de responder “presente”.
A guerra colonial durou treze longos anos, entre 1961 e 1974. Conduziu perto de 800 mil jovens portugueses para África. A este número deve juntar-se os cerca de 500 mil africanos integrados na tropa colonial para combater os movimentos de libertação. A guerra terminaria com o surgimento de cinco novas nações em África e com uma mudança de regime político em Portugal. A vitória da luta anticolonial trouxe a democracia ao país, uma realidade tão evidente quanto esquecida. Ao mesmo tempo, a guerra colonial deixou marcas sociais e ideológicas ainda persistentes na sociedade portuguesa: ela é parte de um passado colonial que continua a alimentar, quer o racismo sistémico, quer a contínua proliferação de imagens de um país grandioso porque já foi grande, de um país tolerante porque o seu colonialismo era um não-colonialismo. Um simples encontro entre raças e povos, de um país em que as “saudades de África” se cruzam com um sentimento ressentido com a perda. Durante anos, falar da deserção foi abrir espaço a uma narrativa alternativa que nos permite descobrir outros modos de ressignificar este passado.
Dados sobre a desobediência à guerra
Dividirei esta intervenção em duas partes: num primeiro momento, serão avançados dados recentes sobre a desobediência à guerra. Num segundo momento, trago algumas reflexões sobre a memória pública da deserção, evidenciando como ela tem desafiado a memória mais vasta da guerra em Portugal.[1]
Começo com três esclarecimentos prévios, que ajudam a enquadrar o objeto sobre o qual me irei debruçar. Em primeiro lugar, queria anotar a distinção feita entre três categorias relativas à desobediência na guerra colonial, criadas pelo aparato estatal-militar.
A primeira categoria é a de “faltoso”. Ou seja, aquele jovem que não se apresentou em tempo devido à inspeção militar. Segundo dados do próprio Exército, estamos a falar de um número que rondou os 200 mil jovens, perto de 20% do total de rapazes chamados à inspeção. É verdade que não se pode, de todo, associar o aumento do número de faltosos a um estrito sentimento anticolonial. Esse fluxo de jovens corresponde – até na sua proveniência territorial – àquilo que foi o fluxo da emigração desses anos.
Problematizar a distinção rígida entre “emigração política” e “emigração económica”
Mas também é certo que a distinção rígida entre “emigração política” e “emigração económica” – uma distinção que importa problematizar, como o historiador Victor Pereira tem feito – acaba por dificultar a compreensão do fenómeno.
Na verdade, no gesto de emigrar intersectavam-se as questões relativas ao sustento material e à busca de oportunidades de vida no exterior, com o escape a constrangimentos de outro tipo, entre os quais pesava para os jovens o fantasma de ser mobilizado para combater numa guerra a milhares de quilómetros de distância de casa.
Refratários e desertores
As outras duas categorias eram as categorias de “refratário” e de “desertor”: os primeiros eram aqueles que compareciam à inspeção, mas já não compareciam à incorporação para a recruta. Os segundos, os desertores, eram aqueles que se ausentavam da sua unidade militar (passando ao oitavo dia de ausência a essa condição de desertor).
Um estudo que fiz conjuntamente com Susana Martins, apontamos para a existência de cerca de 9000 desertores (com lacunas pontuais em certos anos e setores militares), devendo a isso associar-se um número de refratários na ordem dos 10 a 20 mil jovens.[2] Será já de evidenciar o número relativamente significativo de desertores e refratários. Isto poderá ter várias explicações:
em primeiro lugar, a maior debilidade das estruturas militares e do Estado para vigiar a juventude mobilizada para a guerra;
em segundo lugar, a existência de canais e de redes familiares e comunitárias instaladas na emigração europeia (particularmente em França);
em terceiro lugar, a crescente ilegitimidade social de uma guerra prolongada e distante.
O percurso dos desertores
Segunda nota: qual é o percurso que seguem? Todos os trajetos biográficos são singulares, mas é possível agrupá-los em três grandes grupos.
O primeiro grupo corresponde às deserções que ocorrem ainda em Portugal. Estas ocorrem entre homens que, na maioria dos casos, ainda não tinham tido experiência no terreno de guerra, e que em geral se dirigem para a emigração europeia (França sobretudo, mas também Holanda, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Luxemburgo, etc.).
O segundo grupo, corresponde aos desertores africanos integrados na tropa portuguesa, e que seguem rotas variadas: alguns regressam às suas comunidades de origem, outros fogem para países limítrofes, outros ainda passam para as fileiras dos movimentos de libertação.
O terceiro grupo, mais circunscrito, agrega os portugueses que desertaram de África, já em situação de combate.
A discussão sobre a deserção
Uma terceira nota. A discussão sobre a deserção foi, desde cedo, um tema de debate no seio das oposições à ditadura. Logo em 1961, com o início da guerra em Angola, o PCP (Partido Comunista Português), principal força da oposição, definiu um discurso de denúncia da guerra. Em julho de 1967, uma resolução do Comité Central clarificava a posição oficial do partido: os militantes comunistas “não devem desertar, senão quando tenham de acompanhar uma deserção colectiva ou corram iminente perigo de ser presos em resultado da sua acção revolucionária”[3]. Apesar da sua localizada inserção social, seria o campo dos católicos progressistas e, mais vocalmente, da chamada extrema-esquerda (particularmente o que se poderia designar como o campo “marxista-leninista ou maoista”) a propagandear abertamente a deserção como gesto político legítimo e necessário. Viria depois a desenvolver-se no estrangeiro uma ação de denúncia à guerra, que obtinha amparo e auxílio de estruturas de socorro ou de visibilidade da questão colonial e na criação de Comités de Desertores em vários países europeus.[4]
Argélia, no início da década de 1960
Fazer a história da deserção na guerra colonial portuguesa é também confrontarmo-nos com uma história que transborda as fronteiras da nação. Uma história que é parte da história do imperialismo europeu, uma história que é parte da história da Europa do pós-guerra, uma história que é parte de um mundo em mutação, com o impacto do movimento de descolonização em África e na Ásia. Uma história que é feita de encontros e desencontros, de cruzamentos e de solidariedades. No início da década de 1960, é a solidariedade de novos países, como a Argélia, que permite a instalação de redes militantes ligadas aos movimentos de libertação africanos, particularmente, PAIGC (Guiné e Cabo Verde), FRELIMO (Moçambique) e MPLA (Angola) e da oposição portuguesa. Esta tinha na FPLN[5] uma plataforma que agrupava membros de várias correntes da oposição antifascista portuguesa e recebeu vários desertores, vindos sobretudo da Guiné. Vários deles prestavam declarações a rádios antifascistas e anticolonialistas, explicando as razões da sua deserção. Analisei, já num outro momento, 16 desses discursos e deteto neles cinco funções primordiais.[6]
Testemunhos
Em primeiro lugar, estes depoimentos servem para auxiliar a luta antifascista e anticolonial. A sua difusão fazia parte do esforço de tornar visível a guerra, mesmo que, por vezes, estes testemunhos tivessem escassa circulação no interior de Portugal. Para uma parte muito considerável da sociedade portuguesa, a guerra era uma invisibilidade. A imprensa era censurada, os partidos políticos proibidos, um debate sobre a guerra só tardiamente foi surgindo no país, e ainda assim vigiado e punido.
Em segundo lugar, estes testemunhos permitiam divulgar as razões da deserção. Este elemento surge através da menção a de experiências-limite incitadoras da vontade de desertar. É o caso de José Ervedosa, major aviador que participara num ataque com napalm em Angola, e que esclarece: «Num dia de fevereiro de 1962 a carne doeu-me finalmente. São dois corpos a arder, dois corpos inocentes para além de toda a dúvida: uma mulher e uma criança. Quem traz o avião de volta é o co-piloto. Uma vez aterrado, vou para casa e ali passo, fechado, uma semana».
Em terceiro lugar, estes depoimentos operam uma reconfiguração das fraturas através das quais se estabelece o discurso dominante sobre a guerra. Procuram mostrar a deserção, não como um gesto de cobardia, mas como um gesto de coragem. Procuram mostrar a deserção, não como um gesto antipatriótico, mas como um gesto patriótico. Nessa linha, caracterizam o outro lado do combate, não como inimigo, mas como amigo. Como diz o soldado Manuel Matos:
«Os militantes do PAIGC receberam-me sempre como um amigo. Dormiram no chão para que eu pudesse dormir numa cama. Deram-me a comer o que tinham de melhor. Vestiram-me, deram-me cigarros e tudo o mais que eu tinha necessidade».
Em quarto lugar, estes testemunhos buscavam romper com a lógica de lealdade que sedimenta o corpo militar como um todo. Mais do que um discurso genérico contra os militares, há o desenho de uma clivagem entre os oficiais de topo, determinados ora pela malvadez, ora pela cobardia; e, no seu reverso, a tropa a quem competia enfrentar no terreno a guerra, vistos no geral como «infelizes» que lutam num contexto política e ambientalmente adverso.
Por fim, e porventura o traço mais relevante, estes testemunhos servem para denunciar a violência da guerra e do colonialismo. Manuel Matos conta várias histórias de massacres a aldeias, com matança generalizada e violação de mulheres. Conta também a história de uma tortura a um militante do PAIGC – deixado amarrado a uma árvore durante cinco dias – que consistira e, cortar-lhe, regularmente, uma parte do corpo: uma orelha, depois outra, depois um dedo, acabando por ser metralhado.
Estes testemunhos visavam objetivos políticos claros: denunciar a guerra, mostrar que a deserção era possível, explicitar a sua justeza, desmoralizar as tropas e associar a guerra ao fascismo e não ao povo português. Nessa medida, eles se configuraram como uma narrativa alternativa relativamente àquela que era a imagem da guerra, não só durante a ditadura, mas também ao longo das últimas décadas no Portugal democrático.
Memória fraca
Apesar a deserção já ter sido mencionada como um tópico marginal na memória pública portuguesa, um novo interesse se tem operado nos últimos anos. Esta recente profusão de trabalhos e de atividades não significa que o tema da deserção tenha deixado de ser o que o historiador Enzo Traverso designa como uma «memória fraca»[7]. A deserção ainda é observada, em múltiplas circunstâncias, como um gesto inadequado, e a sua recordação vista como uma espécie de desonroso desafio à memória da guerra e dos seus combatentes.
Algumas razões ajudarão a explicar a dificuldade em abordar o tema da recusa da guerra. Em primeiro lugar, e apesar do papel dos militares no derrube da ditadura e na criação de condições para o fim da guerra, desde o pós-25 de abril que não se viram surgir condições para abordar duas dimensões críticas do acontecimento: a violência da guerra e os seus modos de expressão, ainda hoje conhecida de forma parcelar; e o lugar da desobediência à estrutura militar, parte da quebra de legitimidade social da guerra nos anos finais da ditadura.
Uma outra razão que explica o silenciamento do tema da deserção na memória pública portuguesa consiste na permanência da tal ideia de «dever patriótico», mesmo que em circunstâncias de risco físico e psicológico extremo. Razões culturais associadas ao patriotismo, à honra, ao orgulho e à masculinidade agiam então nesse sentido, mantendo alguma vigência ainda hoje. Ir à tropa era fazer-se homem. Combater os terroristas africanos – ou os “turras”, expressão ainda hoje usada para designar as crianças irrequietas – era um ato de dever.
Em terceiro lugar, e apesar de ser um tema de debate aceso no seio das oposições, a deserção não viria a ser reivindicada, como património memorial, por nenhum grande partido de esquerda no pós-25 de Abril, nem se constituíram estruturas associativas que, direta ou indiretamente, reivindicassem essa história.
Por fim, em quarto lugar, a própria carência de produção historiográfica, até aos tempos recentes, acabou por contribuir para esta invisibilidade.
O discurso de Marcelo
Nas últimas décadas, o tema da deserção surgirá por algumas vezes no espaço público. Mas foi mais recentemente, em boa medida através do trabalho da Associação de Exilados Políticos Portugueses, que o tema ganhou nova visibilidade.
Cito um pequeno exemplo. Nas últimas comemorações do 25 de Abril, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, decidiu falar da guerra e do colonialismo, numa altura em que passavam 60 anos do início do conflito. Foi uma opção inesperada e as referências à violência e à escravização são muito pouco comuns em discursos solenes desta natureza, ainda para mais na boa de um presidente oriundo da ditadura e filho de um antigo governador colonial. Foi surpreendente também que o discurso tenha iniciado com uma palavra sobre essa guerra que marcou indelevelmente quem combateu, mas também, “a vida daqueles que, por opção de princípio, recusaram aquela partida e rumaram a outros destinos, iniciando ou continuando uma luta”[8] contra a ditadura, a guerra e o colonialismo.
Veremos o que se passará nos próximos tempos, particularmente no longo ciclo comemorativo do 25 de Abril que aí se aproxima. Creio, na verdade, que uma mudança se começa a esboçar: em Portugal, a deserção é uma história que parece começar a sair do silêncio.
[1] Cf. Cardina, Miguel; Martins, Susana (2019), “Evading the war: deserters and draft evaders of the Portuguese army during the colonial war”, E-Journal of Portuguese History, 17, 2, 27-47; Cardina, Miguel (2020), “A deserção à guerra colonial: história, memória e política”, Revista de História das Ideias, 38, 181-204.
[2] Cardina e Martins (2019), op.cit.
[3] “Resolução sobre Deserções”, Avante!, nr. 382, Setembro, 1967.
[4] Sobre a extrema-esquerda nesses anos ver, entre outros: Bebiano, Rui (2002), “A esquerda e a oposição à guerra colonial”. In Rui de Azevedo Teixeira (ed.), A Guerra do Ultramar. Realidade e Ficção. Lisboa: Editorial Notícias; Madeira, João (2004), “As Oposições de Esquerda e a Extrema-Esquerda”. In Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira (eds.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974). Lisboa: Editorial Notícias, 91-135; Cardina, Miguel (2011), Margem de Certa Maneira. O Maoismo em Portugal (1964-1974). Lisboa: Tinta-da-China; Pereira, José Pacheco (2013), As Armas de Papel. Publicações periódicas clandestinas e do exílio ligadas a movimentos radicais de esquerda cultural e política (1963-1974). Lisboa: Círculo de Leitores; Pimentel, Irene Flunser (2014). História da Oposição à Ditadura. 1926-1974. Porto: Figueirinhas, pp.411-596; Cordeiro, José Manuel Lopes (2017), “A polémica sobre a deserção durante a guerra colonial”, In Ana Sofia Ferreira, João Madeira e Pau Casanellas (eds.). Violência Política no Século XX. Um balanço. Lisboa: Instituto de História Contemporânea, pp. 209-222.
[5] Sobre a primeira fase da FPLN ver: Martins, Susana (2018), Exilados Portugueses em Argel. A FPLN das origens à rutura com Humberto Delgado. Porto: Afrontamento.
[6] Sigo aqui alguns elementos explorados mais detalhadamente em Cardina (2020), op.cit.
[7] Traverso, Enzo (2012), O Passado, Modos de Usar. Lisboa: Edições UNIPOP.
[8] Marcelo Rebelo de Sousa, Discurso na Assembleia da República na Sessão Solene Comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril, 25 de abril de 2021.