Os compromissos entre a NATO e a Rússia e a sua evolução recente
MUNDO | Artigo do Le Monde Diplomatique sobre o conflito
Mais uma vez o MDiplo abre artigos anteriores, no caso aquele que divulgamos publicado em 2018, sobre as tensões criadas entre a NATO e a Rússia no seguimento da queda do Muro de Berlim e da nova relação de forças na cena política internacional. Procuramos fornecer elementos de leitura e de reflexão sobre o tema, sabendo que existem outras fontes que vale a pena consultar.
Recentemente o Le Monde Diplomatique – edição portuguesa publicou um artigo com o título Ucrânia: porquê a crise? cujo enquadramento reproduzimos de forma sumária no parágrafo seguinte:.
“Os europeus estão preocupados com uma escalada das tensões na Ucrânia ao mesmo tempo que são os grandes ausentes das negociações abertas entre Moscovo e Washington. Ao alinharem-se pelos Estados Unidos, Paris e Berlim levaram a Rússia a tratar directamente com estes últimos. E deixaram que o Velho Continente voltasse a ser um terreno de confrontos entre as duas potências”
O artigo que hoje divulgamos com a devida autorização tem a seguinte base de reflexão: O ataque do exército russo à Ucrânia representa uma violação clara do direito internacional e da Carta das Nações Unidas. A par de razões falaciosas ou exageradas, Moscovo salienta o receio que tem há vários anos de ver a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nas suas fronteiras, apesar dos compromissos assumidos pelos Estados Unidos aquando do desmantelamento da União Soviética. Este artigo dos nossos arquivos analisa esses compromissos e está agora em acesso livre (Setembro de 2018). Está aberto um capítulo novo, e particularmente perigoso, das relações internacionais.
«A OTAN não irá estender-se nem um centímetro para Leste»
Eles mentiram-nos repetidamente, tomaram decisões nas nossas costas, colocaram-nos perante o facto consumado. Isto aconteceu com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN] para Leste, bem como com a instalação de infra-estruturas militares nas nossas fronteiras.» A 18 de Março de 2014, o presidente Vladimir Putin mostrou o seu rancor em relação aos dirigentes ocidentais num discurso de justificação da anexação da Crimeia pela Federação da Rússia.
Pouco depois, a Revue de l’OTAN respondeu-lhe com argumentos destinados a desmontar este «mito» e esta «pretensa promessa»: «Nunca houve, da parte do Ocidente, qualquer compromisso político ou juridicamente vinculativo de não alargar a OTAN para lá das fronteiras de uma Alemanha reunificada», escreveu Michael Rühle, chefe da secção Segurança Energética (1). Ao precisar o termo «juridicamente vinculativo» acabou por levantar a lebre. Documentos recentemente desclassificados (2) permitem reconstituir os debates da época e avaliar os compromissos políticos ocidentais assumidos com Mikhail Gorbatchov em troca das iniciativas deste para pôr fim à Guerra Fria.
Logo que chegou à liderança da União Soviética, em 1985, Gorbatchov encoraja os países do Pacto de Varsóvia a empreender reformas e renuncia à ameaça de um recurso à força. A 13 de Junho de 1989, assina inclusivamente com Helmut Khol, o chanceler da República Federal da Alemanha (RFA), uma declaração comum que afirma o direito dos povos e dos Estados à autodeterminação. A 9 de Novembro cai o Muro de Berlim. Uma vez passada a euforia, as questões económicas tornam-se prementes em toda a Europa central. Os habitantes da República Democrática Alemã (RDA) aspiram à prosperidade do Ocidente, e um êxodo ameaça a estabilidade da região. O debate sobre as reformas económicas torna-se muito rapidamente um debate sobre a união das duas Alemanhas, e depois sobre a adesão do conjunto à OTAN. O presidente francês François Miterrand aceita a evolução, desde que ela seja feita no respeito das fronteiras, de maneira democrática, pacífica, num quadro europeu (3)… e que a Alemanha aprove o seu projecto de união monetária. Todos os dirigentes europeus afirmam estar acima de tudo preocupados em tratar Gorbatchov com deferência.
A administração norte-americana apoia o chanceler alemão, que avança em passo acelerado. Em Moscovo, a 9 de Fevereiro de 1990, o secretário de Estado americano, James Baker, multiplica as promessas perante Eduard Chevardnadze, o ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, e Gorbatchov. Este último explica que a integração de uma Alemanha unida na OTAN irá perturbar o equilíbrio militar e estratégico na Europa. Defende uma Alemanha neutra ou que participe nas duas alianças — a OTAN e o Pacto de Varsóvia —, que se tornariam estruturas mais políticas do que militares. Em resposta, James Baker agita o fantasma de uma Alemanha entregue a si própria e capaz de se dotar da arma atómica, ao mesmo tempo que afirma que as discussões entre as duas Alemanhas e as quatro forças de ocupação (Estados Unidos, Reino Unido, França e URSS) devem garantir que a OTAN não vá mais longe: «A jurisdição militar actual da OTAN não irá estender-se nem um centímetro para Leste», afirma ele três vezes.
«Supondo que a unificação tenha lugar, o que prefere?», questiona o secretário de Estado. «Uma Alemanha unida fora da OTAN, absolutamente independente e sem tropas americanas? Ou uma Alemanha unida que mantenha laços com a OTAN, mas com a garantia de que as instituições ou as tropas da OTAN não irão estender-se para Leste da fronteira actual?» «A nossa direcção tenciona discutir todas estas questões em profundidade», responde-lhe Gorbatchov. «Escusado será dizer que um alargamento da zona OTAN é inaceitável.» «Nós concordamos com isso», conclui Baker.
No dia seguinte, 10 de Fevereiro de 1990, é a vez de Khol vir a Moscovo tranquilizar Gorbatchov: «Nós pensamos que a OTAN não deve alargar o seu alcance», garante o chanceler da Alemanha ocidental. «Temos de encontrar uma resolução razoável. Eu entendo bem os interesses da União Soviética em matéria de segurança.» Gorbatchov responde-lhe: «É uma questão séria. Não deve haver qualquer divergência em matéria militar. Eles dizem que a OTAN sem a RFA vai colapsar. Mas, sem a RDA, também será o fim do Pacto de Varsóvia…»
Em Julho de 2015, Putin esboça um ricto ao evocar este episódio fundamental da história das relações internacionais perante o realizador americano Oliver Stone: «Nada foi passado para o papel. Foi um erro de Gorbatchov. Em política, tudo tem de ser escrito, mesmo que uma garantia em papel também seja tantas vezes violada. Gorbatchov apenas discutiu com eles e considerou que essa palavra bastava. Mas as coisas não são assim!» (4).
A história acelera. Todos os regimes da Europa central caem. As únicas garantias sólidas que sobram à URSS nas negociações são os Acordos de Potsdam de Agosto de 1945 e a presença de 350 mil soldados soviéticos em solo alemão. James Baker regressa a Moscovo a 18 de Maio de 1990 para demonstrar a Gorbatchov que as suas posições são tidas em conta: «A OTAN vai evoluir no sentido de se transformar sobretudo numa organização política. (…) Estamos a esforçar-nos, em diversos fóruns, para transformar a CSCE [Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, futura OSCE] numa instituição permanente que se tornará uma pedra angular da nova Europa.» Gorbatchov leva-o à letra: «Afirma que a OTAN não se dirige contra nós, que se trata apenas de uma estrutura de segurança que se adapta à nova realidade. Então vamos propor entrar nela».
Miterrand encontra-se com Gorbatchov a 25 de Maio de 1990, em Moscovo, e diz-lhe: «Insisto em lembrar-lhe que sou pessoalmente favorável ao desmantelamento progressivo dos blocos militares». Acrescenta: «Sempre disse que a segurança europeia sem a URSS é impossível. Não porque a URSS seja um adversário dotado de um exército poderoso, mas porque é nossa parceira». O presidente francês escreve a seguir ao seu homólogo americano dizendo que a hostilidade de Gorbatchov à presença da Alemanha unificada na OTAN não lhe parece «fingida nem táctica», precisando que o dirigente soviético «já não tem qualquer margem de manobra».
Apesar da degradação económica, Gorbatchov consolida o seu poder. Tendo sido eleito presidente da URSS em Março, afasta os conservadores durante o Congresso do Partido Comunista da União Soviética que tem lugar no início de Julho. O último acto político acontece a 16 de Julho, na aldeia montanhosa de Arhiz, no Norte do Cáucaso. Em troca da retirada das tropas soviéticas da futura Alemanha unida e membro da OTAN, Khol compromete-se perante Gorbatchov a aceitar as fronteiras de 1945 (linha Oder-Neisse), a não ter qualquer reivindicação territorial, a diminuir para metade os efectivos do Bundeswehr, a renunciar a qualquer arma ABQ (atómica, bacteriológica ou química) e a pagar uma substancial «ajuda à partida».
O acordo é selado no Tratado sobre a Reunificação da Alemanha assinado em Moscovo a 12 de Setembro de 1990. Mas este texto só aborda a questão da extensão da OTAN a propósito do território da antiga RDA após a retirada das tropas soviéticas: «Forças armadas e armas nucleares ou ogivas de armas nucleares estrangeiras não ficarão estacionadas nesta parte da Alemanha e não serão para lá deslocadas» (5). No último minuto, os soviéticos torcem o nariz. Para conseguir a sua assinatura, os alemães acrescentam uma alteração que esclarece que «todas as questões relativas à aplicação da palavra “deslocadas” (…) serão resolvidas pelo governo da Alemanha unida de maneira razoável e responsável, tendo em conta os interesses de segurança de cada parte contratante». Nenhum texto fixou o destino a dar aos outros países do Pacto de Varsóvia.
No início de 1991 chegam da Hungria, da Checoslováquia, da Polónia e da Roménia os primeiros pedidos de adesão à OTAN. Uma delegação do Parlamento russo encontra-se com o secretário-geral da OTAN. Manfred Wörner diz-lhe que treze dos dezasseis membros do conselho da OTAN se pronunciaram contra um alargamento, e acrescenta: «Nós não devemos permitir o isolamento da URSS».
Andrei Gratchov, antigo conselheiro de Gorbatchov, compreende as motivações dos países da Europa central «ainda agora libertados da dominação soviética» e mantendo na memória as «ingerências» da Rússia czarista. Em contrapartida, lamenta a «velha política do “cordão sanitário”» que em seguida conduzirá a um alargamento da OTAN a todos os antigos países do Pacto de Varsóvia, e até às três antigas repúblicas soviéticas bálticas: «A posição dos falcões americanos é muito menos admissível, revelando uma profunda ignorância da realidade e uma incapacidade de abandonar as limitações ideológicas da Guerra Fria» (6).
Philippe Descamps
(1) Michael Rühle, «L’élargissement de l’OTAN et la Russie: mythes et réalités», Revue de l’OTAN, 2014.
(2) «NATO expansion: What Gorbachev heard», National Security Archive, 12 de Dezembro de 2017, https://nsarchive.gwu.edu. Salvo indicação contrária, todas as citações são tiradas destes documentos.
(3) Cf. Maurice Vaïsse e Christian Wenkel, La Diplomatie française face à l’unification allemande, Tallandier, Paris, 2011.
(4) Oliver Stone, Conversations avec Poutine, Albin Michel, Paris, 2017. Entrevistas também transmitidas na France 3, de 26 a 28 de Junho de 2017.
(5) «Traité portant règlement définitif concernant l’Allemagne», www.cvce.eu.
(6) Andreï Gratchev, Un nouvel avant-guerre? Des hyperpuissances à l’hyperpoker, Alma éditeur, Paris, 2017.
Foto da Revista da OTAN e em destaque Andrei Gratchev