Cartas da Europa resistente, Varsóvia revoltosa e solidária (I)
EUROPA PARA OS CIDADÃOS | Projeto europeu TOTAL PEACE | Varsóvia, em trânsito para Lodz
Carta da Polónia, Varsóvia
Este ano, algures em Abril, ao meio dia, começaram a tocar as sirenes de guerra, os transeuntes pararam nas ruas e por um minuto todos se imobilizaram.Homenagem ao desencadear da insurgência no gueto. Da luta contra a invasão da Polónia pelos nazis. Do terror. Algures este ano em agosto, assinalar-se-à a data da segunda revolta.
por Amélia Resende
Chegada ao aeroporto de Varsóvia, Frederic Chopin, de seu nome. Grande, espaçoso, amigável. Signos em inglês: luggage claim, exit to Town. Orientar-se é fácil, embora para trocar dinheiro numa máquina multibanco fosse preciso pedir ajuda a um local. Veio na forma de um jovem, não muito jovem assim, na ronda dos 40, cabelo curto, óculos e um sorriso, fez-me lembrar certos retratos do Brecht. Dirigiu-se comigo à máquina, contornou o pedido dos 1000 slotis (moeda polaca) e conseguiu fazer a operação bancária a agrado dos dois intervenientes (eu e a máquina). Ainda referi o táxi e a tarifa, informou-me que estava tudo regulado e que entre 35 e 40 era o preço certo.
Nostalgia
Assim foi. Deslizei ao longo da longa avenida que percorre a distância entre o aeroporto e o centro da cidade rodeada de árvores e de verde. Uma surpresa apaziguante para quem sabe que vai entrar numa grande capital. De um país extenso: a Polónia. Que curiosa a sensação que tive ao encostar-me à janela daquela viagem silenciosa: (só música de fundo, o taxista não falava uma palavra de inglês). De repente voltei uns anos atrás, tinha de novo quinze/ dezasseis anos e revisitava a paisagem dos bosques e jardins alemães. Jovens raparigas de rabos de cavalo de cabelo dourado caminhavam ao longo das veredas. Nostalgia. Os poetas e a alma alemã…momentos depois, comparava a Av. Gago Coutinho em Lisboa, despida de árvores, com aquela vegetação doce que os meus olhos presenciavam. Eis-nos chegados ao centro da cidade: grandes e compridos eléctricos amarelos cruzam a artéria principal, anúncios da Samsung erguem-se poderosos no alto dos arranha céus e o Novo Hotel e o Marriot anunciam-se na linha do horizonte. Estamos dentro da cidade nova. A das extensas e planas avenidas. Desliza-se por elas como pelas marginais das cidades tropicais angolanas dos anos 60: Benguela, Lobito. Reminiscências de infância, misturadas com modernidade.
E outros mundos. Países de Leste. 2ª guerra mundial. Reconstrução. Reconfiguração. A Perestroika. A queda do muro em 1989. O fim das repúblicas soviéticas. O capital a fazer as suas incursões: Dior, Hermés, Starbucks, Café Costa e Millenium…
O Ravisson Blu hotel Sobietish é luxuoso quanto baste, 4 estrelas e é muito confortável. Eis-me numa ex república do bloco de leste. A excitação ainda é maior. Qualidade top. Cumpre as expectativas. O empregado da recepção que atende, o único que fala inglês, parece ser indiano. As lourinhas ao lado só sorriem e dão lhe passagem.
Lígia e Leonardo
Lígia chega. A amiga que me deu confiança para eu vir a Varsóvia uns dias antes, sozinha, a uma terra onde quase ninguém fala inglês. Os correios estão abertos? Fechados. Fechados. Diz ele em polaco. Afinal estavam abertos. Sorrimos… Sorrimos, quando vemos num café livraria no museu do Palácio da Cultura e da Ciência um livro de Paulo Coelho traduzido em polaco. Dessa colectânea faz também parte Kahil Gibran, o grande poeta indiano. Ao lado a exposição interactiva de Leonardo da Vinci. Magníficos quadros. Belíssima música. E na sala de entrada as máquinas do gênio: réplicas da catapulta, do canhão, dos artefactos militares, das várias variantes da passarola. E cereja em cima do bolo: ele era vegetariano. Foi chef de cozinha nos seus jovens anos. Que lições logo ali naquela sala silenciosa, onde a Gioconda nos contemplava, mais a Madonna Litta e os seus querubins. Manhã surpreendente ao lado dos cartazes das peças de Kafka e Becket no teatro nacional.
“Lígia, grava aquilo que te digo: somos umas privilegiadas, podermos ver tudo isto com vagar e sem as multidões dos turistas japoneses e europeus”.
Daqui a dez anos está tudo contaminado. Esta inocência, este tempo que o capital ainda não engoliu, esta humanidade ainda um pouco “ralenti”, parecem ser os últimos moicanos…não quero acreditar… os guardas do palácio real trajam uniformes ” ingénuos”, têm caracóis compridos que lhes saem nas nucas por baixo dos bonés e parecem uns púberes. Nada de bélico ali. Como é possível ter-se sido invadido, destruído vezes sem conta e manter, arvorar este olhar? Pasmo. Pasmo ainda.
O aborto
E a Polónia é isto: avenida João Paulo II uma grande artéria que percorre a cidade nova, as igrejas pululam ricas e generosas e depois a legislação do aborto voltou a regredir e para se arranjar a pílula tem de se adquirir no estrangeiro. Os serviços de saúde aqui não fornecem. Dito por uma jovem designer portuguesa que aqui vive há três anos e que tem de trazer a pílula de Portugal. Estamos feitos! Aqui e ali, numa varanda à noite, aparecem sinais de néon, que sinalizam o protesto contra esta regressão civilizacional.
Vve aqui há três anos e que tem de trazer a pílula de Portugal
O Supremo Tribunal americano, com alguns juízes, juízas escolhidas por Donald Trump afirma que a legislação do aborto é inconstitucional e vários estados estão a rever as suas posições. Para onde vamos? Quantos anos de saltos para trás? Tudo isto é estarrecedor. E complexo. Como se faz tábua rasa do passado? Que novos fenómenos são estes que não entendemos…?
Cidade velha
Perguntas feitas. Deambulações pela velha cidade. Pequenas ruelas, praças, esplanadas e muralhas. Uma fortificação. Reconstrução? Vestígios de épocas antigas? Puzzle resolvido. Originária do século XIII, com pequenos prédios de dois, três andares, com formas irregulares, fazem lembrar o centro histórico de algumas cidades alemãs. De cunho medieval. E longinquamente portuguesas. Guimarães. O casco do centro histórico. Mas afinal, tudo aquilo foi bombardeado e o que temos, são réplicas do original. Tudo aquilo foi destruído na segunda guerra mundial. Anos 39/45. E a ficção impõe se à realidade. Mesmo reconstruídas, estas casas fazem agora parte do património da Humanidade, credenciadas pela Unesco, como se tudo isso lhes restituísse autenticidade. Carisma. E se calhar, sim. A vontade heróica de superar, de dizer vocês não apagam a memória, está lá. Espantoso o que as pessoas ainda hoje são capazes de fazer. De viver. Uma cidade e um país vezes sem conta ocupado. Retalhado. Grandes chefes políticos o decidiram: Staline, Churchil, Roosevelt. Como Hitler anteriormente.
Vocês não apagam a memória
Revolta no gueto
E depois as pessoas comuns. E muitos deles continuam aqui. A perseverar. A invadir as tardes com as suas crianças e jardins. A saírem em bandos de jovens para festejar a sexta à noite, como em todas as quimeras do mundo… Outros porém, só olham de longe. Ou nem isso. Tenho amigos, cujos familiares pereceram aqui no gueto e nos campos de concentração, que emigraram para outros lados. Para o Brasil. E que refizeram outra vida. Outras lembranças. Nunca voltaram á Polónia. Nem querem mesmo ouvir falar. Há mesmo muitas formas de se continuar. De continuar. Como se fosse preciso esquecer. Esquecer?
Muitas questões se levantam. O tempo. Como persiste” na memória das gerações mais novas a guerra, os horrores do nazismo? Auschwitz e Birkenau ficam a 4 horas de comboio de Varsóvia. A repressão. O gueto. O medo. A revolta. O “uprising”. Nome do museu que celebra a luta dos insurgentes do gueto de Varsóvia. O holocausto. Este ano, algures em Abril, ao meio dia, começaram a tocar as sirenes de guerra, os transeuntes pararam nas ruas e por um minuto todos se imobilizaram.
Homenagem ao desencadear da insurgência no gueto.
Da luta contra a invasão da Polónia pelos nazis. Do terror. Algures este ano em agosto, assinalar-se-à a data da segunda revolta. Mais tarde será a chegada das tropas soviéticas. O resgate dos prisioneiros, dos sobreviventes. E depois os libertadores ajudaram a reconstituir. O Palácio da Ciência e da Cultura, um edifício monumental que possui a torre mais alta da Polónia foi oferta dos soviéticos. Bom sinal? Mau sinal? Os comunistas sempre deram muita importância à ciência. Curiosamente há uma estátua de Copérnico, na zona de transição da cidade nova para a cidade velha. Os faróis da razão. Do espírito científico.
Olhar sobre o passado
O que ficou destes anos todos de regime comunista? Quando o avião começa a sobrevoar os arredores da cidade, vão se perfilando os vários blocos de apartamentos que realojaram as famílias após a guerra. Arquitetura sóbria, mas sólida. De repente temos um olhar sobre o passado. Ficou aqui uma marca de austeridade, mas também de promessa. De reconstrução. Mas essa libertação não foi pacífica. Em certos momentos estiveram juntos no combate aos nazis, mas no final da guerra também há registos de assassinato de certas elites do exército de libertação da Polónia.
Mais recentemente até houve revelações de massacres, que evidentemente os russos negam. (massacre da Floresta de Katyn).
Portanto voltamos a repetir, essa ocupação não foi pacífica. E enquanto os russos celebram a 10 de Maio a vitória contra os nazis, os polacos que a deveriam celebrar a 9, não a celebram. Ficou um sabor amargo desses tempos. Um sentimento recalcado, mas que existe.
Hoje criamos o futuro
Em frente do hotel, num muro do lado de lá da rua está escrito: ‘hoje criamos o futuro’.
Lá fora, não muito longe daqui, perto da fronteira polaca, a Ucrânia foi invadida. Ouviram– se de novo as sirenes. As bombas. Os canais de televisão reportam da mesma forma que na Europa ocidental. O registo é o mesmo. Por aqui, muita apreensão inicialmente. Nas primeiras semanas. Depois arregaçaram as mangas e receberam os seus vizinhos. Abriram- lhes as portas de casa. Ao pesquisar os hotéis aqui em Varsóvia, antes de vir, descobri que em alguns deles havia a informação: ‘se é refugiado ucraniano o alojamento é grátis’. Espantoso. Pessoas comuns. Pessoas comuns socorrem pessoas comuns. E a vida continua.