15 de Fevereiro, 2025
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MUNDO | DOSSIÊ Albânia Hoje (6) – 25 de julho 2022 | DEBATE | Opinião

Continuamos a publicar matéria relacionada com a Albânia cruzando abordagens do passado com outras mais atuais procurando antes de mais fornecer informação e elementos baseados nas experiências de quem as viveu e relata. As ideias e as opiniões atravessam as narrativas de forma mais ou menos explícita. Por vezes surgem no campo difuso e ambíguo do subliminar. Atendendo a estas incursões, relativamente erráticas, podemos admitir que se justificaria na circunstância a adaptação, eventualmente abusiva, mas apesar de tudo oportuna, do título do último livro de Rui Bebiano para “No Labirinto da Albânia”. O texto de opinião e de relato de experiência que publicamos hoje é de Francisco Melro. O título é nosso e os subtítulos também. SF

OPINIÃO por Francisco Melro

A MINHA OPERAÇÃO ESPECIAL NA ALBÂNIA

Estive na Albânia durante alguns dias no final de 1977. Não fui em visita turística. Participei numa operação especial, partidária, guiada, controlada e com fins muito específicos, conjuntamente com mais três companheiros. O programa envolveu reuniões, encontros, sessões de formação, visitas a algumas das principais cidades e unidades produtivas, agrícolas e industriais, a participação em eventos  e alguns passeios por Tirana, sempre acompanhados. Este enquadramento condicionou o que vimos e como vimos.

Como tudo se passou há 45 anos, há muitas coisas de que já não me lembro e outras de que guardo uma ideia difusa. Mas retenho o essencial do que observei e até uma recordação viva de algumas dessas vivências.

Um país pequeno e isolado

Esta hierarquização das recordações está muito ligada a quem eu era na altura e ao foco decorrente da minha atenção.

Não ia à espera de encontrar um paraíso. Sabia que encontraria um país pequeno, geográfica, política e economicamente isolado, de recursos limitados e pouco desenvolvido. Nisto não me enganei. Ainda por cima, a nossa presença na Albânia coincidiu com a pós-ruptura deste país com a China, de quem vinha dependendo. Mais uma ruptura, a juntar às da Jugoslávia de Tito e da URSS pós-Staline.

Expectativas

Ia vigilante, atento, com olhar crítico reservado e com as manifestações interiores conscientemente e prudentemente aprisionadas. Já tinha maturidade suficiente, o que quer que que isto significasse, mas, ainda assim, esperava encontrar uma sociedade decente, com dirigentes muito ligados ao seu povo, empenhados e dedicados na edificação de uma sociedade mais justa com a colaboração activa da população. Era esta idealização que me afastava da Rússia e me aproximava da Albânia de Enver.

Chegada a Tirana

Chegámos a Tirana, vindos de Belgrado, num pequeno avião jugoslavo. Esta ligação era regular e realizava-se apenas em alguns dias da semana, se bem me recordo. Não sei se foi só por isso que tivemos de permanecer dois ou três dias em Belgrado. A nossa entrada na Albânia foi gerida por representantes do governo albanês em Belgrado.

 O aeroporto em que aterrámos era fora de Tirana e bastante rudimentar, uma pista e uma pequena gare, sem qualquer movimento. Creio ter visto dois ou três aviões militares, provavelmente, migs soviéticos.

Os interlocutores locais

À nossa espera estavam dois ou três dirigentes, não me recordo quais, e o Nico, que seria nosso guia e condutor durante toda a visita.

Com toda a certeza, o Nico pertenceria ao departamento internacional da Segurimi, a polícia política albanesa. Era bastante mais velho do que nós, entre 50 e 60 anos, com aspecto de ancião, vivera na América do Sul, creio que na Argentina, e falava bem castelhano. Era um bom conviva e muito empenhado na sua missão. Já estivera em Portugal em meados de  1977, acompanhando o ministro albanês Gafur Xuxi, aquando da realização de um congresso da organização política portuguesa a que pertencíamos. O chefe do Nico era o Aquile, bastante mais novo, porte e vestuário elegantes e aspecto ocidental. Era distante, reservado, de olhar altivo, intervindo cirurgicamente para dar orientações (esteve algumas vezes em Portugal, uma delas em 1980, participando numa conferência partidária em que apresentei divergências com a maioria do Comité Central. Não era o único divergente e no final foi-me transmitida a mensagem de que, terá sido dito “pelos albaneses” que, se fosse na Albânia, eu e os outros já tínhamos sido expulsos. E outras coisas, pensei eu).

A vivenda de Tirana

Do aeroporto fomos levados para uma vivenda próximo de Tirana, que passou a constituir a nossa base operacional, ali dormíamos e comíamos, fazíamos reuniões, tínhamos sessões de formação político-militar, a nossa missão assim o exigia, e ali regressávamos nas poucas vezes que ao fim da tarde nos era proporcionada uma caminhada guiada e controlada dentro de Tirana.

A vivenda tinha uma pequena equipa alocada, com uma governanta, tendo-nos sido destinados dois quartos.

Na sala de refeições havia um aparelho de televisão que estava ligado à noite, ao jantar, onde passavam notícias que não entendíamos e intervenções do Enver Hodja, com que sucedia o mesmo. À hora do telejornal, os censores abriam centralmente o sinal permitindo o acesso às notícias da televisão italiana, abertura que era interrompida sempre que passava qualquer informação ou abordagens consideradas menos próprias. Foi-nos confidenciado que isso ocorria, especialmente, sempre que falava o Papa. Para além disto, haveria abertura para a visualização dos jogos do futebol europeu, o que nunca tivemos oportunidade de confirmar.

Visitas e Festival da Canção

Na nossa permanência e deslocações a pé em Tirana, fomos uma vez à Casa da Juventude, local de convívio situado no centro da cidade, onde fomos olhados com curiosidade e alguns sorrisos, pareceram-me irónicos, por parte de alguns dos jovens presentes (o Nico confidenciou-nos na altura que tinham alguns problemas com a juventude), de outra vez visitámos a casa onde foi constituído o PTA, noutra fomos ver uma exposição de pinturas de artistas que tinham sido enviados para o campo, noutra fomos a uma escola secundária assistir ao que, supostamente, seria uma reunião de formação da juventude local do PTA (uma aula de “catequese” onde um sujeito mais velho, de ponteiro na mão, despejava doutrina e ralhava aos miúdos), noutras visitámos algumas fábricas, onde éramos recebidos com um pequeno beberete, e numa noite assistimos num cineteatro ao Festival da Canção Albanesa, transmitido pela televisão para toda a Albânia. Fiquei sentado ao lado de representantes chineses com quem não troquei qualquer olhar nem, muito menos, palavra.

A Segurimi

Nas nossas caminhadas de fim do dia pelo centro de Tirana, esbarrávamos com grandes desfiles espontâneos, envolvendo milhares de pessoas, passeando de braço dado, em filas transversais contínuas, conversando animadamente. Não sei de que conversavam mas todos sabiam que a Segurimi nunca os abandonava.

Sempre que viajávamos para fora de Tirana, fazíamo-lo divididos por 2 viaturas Fiat conduzidas por agentes da Segurimi.

As primeiras reacções

Cada um olhou para o que observou à sua maneira. O João era o mais crítico nas nossas conversas, tecendo comentários negativos radicais, o Manuel o mais tolerante , encontrando justificações ou desvalorizando o que nos chocasse. Eu encontrava-me a meio caminho mas controlava o que dizia, como dizia, onde dizia e quando dizia. O Zé Carlos mantinha-se quase sempre em silêncio.

Como disse, estava ansioso por me aperceber da vida quotidiana na Albânia, a ligação da população ao regime, das relações da sociedade com os seus dirigentes e as suas instituições. As minhas recordações mais vivas vêm dos momentos e episódios que me proporcionaram alguma informação. É sobre esses que também agora me irei focar.

Afastados da realidade

Nunca tivemos oportunidade de tomar contacto com a realidade tal como era vista e sentida pelos cidadãos. Nunca entrámos em qualquer habitação, nada soubemos sobre os seus níveis de conforto ou sobre a qualidade de vida dos que as habitavam. Muito menos soubemos sobre a sua satisfação ou sobre as suas expectativas. Nunca conversámos com ninguém fora do controle de alguém do partido. A excepção foi a minha parceira no baile da passagem de ano, de que falarei mais abaixo.

Cimento para os “cogumelos”

Embora também houvesse pequenas vivendas nos bairros históricos, Tirana encontrava-se povoada por torres de apartamentos com o tijolo à mostra. Não se via nem cimento nem pinturas no exterior destas torres. Perante a nossa curiosidade, os nossos acompanhantes esclareceram-nos que se tratava de uma arquitectura de novo tipo, de estilo albanês. Na minha leitura silenciosa, tratava-se simplesmente de carência de cimento, usado intensivamente na construção dos “cogumelos” que povoavam os campos, em parceria com enormes espigões de ferro apontados para os céus, ambos estrategicamente justificados por razões de defesa, perante o perigo de invasão aérea estrangeira. Os cogumelos serviriam de abrigo defensivo, os espigões ajudariam a neutralizar um eventual lançamento de paraquedistas. Os dirigentes acreditavam que a invasão viria pelos céus. Em diversos locais, eram identificáveis portas na montanha que dariam acesso a abrigos escavados, eventualmente equipados com meios de defesa.

No Bloco, com Ramiz Alia

A generalidade dos habitantes vestia-se modestamente e os vestuários denunciavam uso intensivo. Havia muitas fardas. Alguns usavam gabardines de estilo Gestapo. Pelo menos, de Inverno. Os quadros do partido usavam fatos, progressivamente mais finos à media que subíamos na hierarquia, culminando nos vistosos fatos de tecidos de alta qualidade de Enver Hodja, vindos de Paris ou de Itália.

A zona habitacional de Tirana reservada aos dirigentes de topo, era uma espécie de Quinta da Marinha, sem piscinas à vista, com controle de acesso com cancela gerida por militares armados. Era conhecida popularmente por Bloco, como descobri muitos anos mais tarde. Ali entrámos num dos dias, convidados para um almoço em casa de Ramiz Alia, à época ministro da Cultura, posteriormente Presidente da Albânia, sucedendo a Enver Hoxha.

Privilégios dos dirigentes

A zona era ocupada por vivendas com pequenos jardins à volta. Admito que a de Ramiz Alia fosse das mais bem apetrechadas. Dispunha de uma pequena sala de cinema, onde assistimos, a seguir ao almoço, em ante-estreia, à exibição de um filme albanês, apresentada pelo respectivo realizador, sobre um episódio da luta de guerrilhas na Albânia. A habitação dispunha de uma equipa de apoio, cozinha e limpezas, e ainda de jardineiro. Ramiz Alia tinha ao seu dispor uma viatura e um motorista e creio que todos os gastos associados à sua utilização, bem como os da habitação, seriam assumidos pelo Estado, privilégios que manteria enquanto permanecesse na cúpula dirigente, teoricamente, para sempre, apesar do risco de cair em desgraça ou de insurreição por parte da população, como neste caso veio a acontecer, embora bastante mais tarde. Interroguei-me sobre a quanto equivaleriam em Portugal os custos associados a este nível de vida.

Ler Ismail Kadare

A propaganda albanesa dizia que os dirigentes ganhavam apenas 1,5 vezes o salário de um operário. Sem questionar esta convergência salarial, que nunca pude confirmar, interroguei-me, logo na altura, para que é que estes dirigentes precisavam de salário.

Sobre o Bloco e a vida da casta que governava a Albânia, a relação entre eles e deles com os cidadãos em geral, vale a pena ler dois livros de Ismail Kadare a Filha de Agamémnon e o Sucessor, este último em torno do assassinato de Mehemet Sehu, à altura Primeiro-Ministro. É extraordinariamente ilustrativo e Kadare sabe muito bem do que fala. Era deputado e expoente máximo da componente cultural dessa nomenclatura, a quem eram tolerados alguns “desalinhamentos” e alguma liberdades, devido ao seu prestígio internacional.

A resignação silenciosa dos “de baixo”

Sobre a relação dos “de baixo” com os de cima, observei episódios de diferente tipo.

Nas relações dentro da estrutura, guardo a memória da atitude beata da governanta da casa ao escutar uma palestra televisiva de Enver Hodja, bebendo com ar efusivo e extasiado cada palavra, juntando as mãos e lançando alguns esgares aqui e ali. Chocou-me mas depois deu-me pena, aderindo à interpretação radical do João.

Num outro episódio, em Elbasan, principal complexo industrial da Albânia, supostamente com milhares de operários, de que não me apercebi na visita, quando o primeiro secretário do Comité do PTA deste complexo industrial, operário, vestido de operário e com ar disso, nos dava civilizadamente as boas vindas numa das fábricas, o responsável regional que nos acompanhava cortou-lhe a palavra, porque já estaríamos atrasados para o almoço, deixando-o de boca aberta e cabeça baixa, perante a humilhação. Chocou-me a atitude do dirigente e a resignação silenciosa do operário. Nas minhas expectativas, o dirigente regional nunca se atreveria a tal perante um dirigente operário e este não deixaria passar a afronta, rebelando-se e dizendo o que tinha a dizer.

Neste complexo industrial de Elbasan constatei que a maquinaria pela qual íamos passando exibia a sua origem com etiquetas em chinês e que muita estava com ar abandonado, sem ninguém a operar. Terá sido um dos preços pagos pela ruptura com a China. Muitos técnicos chineses abandonaram a Albânia nesse período.

O livro das apreciações

Numa outra situação, na visita a uma exposição de pinturas de artistas enviados para o campo, quando o artista que nos servia de guia apontava para uma das pinturas, explicando que se tratava de uma pequena ilha grega, o Nico deu-lhe uma forte palmada na mão e uma agressiva reprimenda em albanês, corrigindo-o que se tratava de território albanês. Pelo que deduzi, era uma daquelas situações de disputa entre os dois países.  Aqui também , o artista humilhado levou e calou. Nesta visita tivemos um encontro imprevisto. No final da visita fomos convidados a escrever a nossa apreciação sobre a exposição no respectivo livro. Terminada a tarefa, afastámo-nos e eis que vemos o Nico correr em direcção ao livro, fechá-lo abruptamente e retirá-lo da frente de um dos visitantes presentes que, aparentemente, se prepararia para escrever a sua apreciação. Tratar-se-ia de um membro da embaixada russa que pretenderia recolher informação a nosso respeito.

Shkodra, futebol e resistência passiva

Também na visita a Shkodra, cidade do Norte junto a um lago com o mesmo nome que faz fronteira com Montenegro, após o jantar no hotel onde dormimos, estando sentados no átrio da entrada, observámos que um dos motoristas que nos tinham levado de Tirana, sem se aperceber da nossa presença, apalpou grosseiramente uma das mulheres que nos tinha servido ao jantar, sem que esta esboçasse qualquer protesto, limitando-se a escapar assustada rapidamente dali, perante o sorriso trocista do agressor.

Mas também foi em Shkodra que assisti aos primeiros momentos de desalinhamento, ainda que passivos, por parte da população. O dirigente desta região que nos recebeu e nos foi acompanhando em diversos eventos e que exibia  sempre uma pistola à cintura, levou-nos a ver um jogo de futebol entre o clube local e o clube de Vlora, cidade portuária do sul do país. Como chegámos atrasados, as bancadas já estavam cheias, pelo que tivemos de ir forçando a passagem para alcançar o camarote do dirigente no topo da bancada, o que se revelou difícil, porque os espectadores faziam-se despercebidos e demoravam quanto podiam para corresponder. E à saída, a cena repetiu-se. Os espectadores saíram primeiro e foi o cabo dos trabalhos para que o carro em que seguíamos conseguisse atravessar a multidão. Apesar das buzinadelas e dos protestos enraivecidos do dirigente e do motorista, os cidadãos faziam-se de surdos, sem olhar, continuando a sua marcha como se nada se passasse. Refira-se que não vi mais nenhuma viatura a abandonar o recinto. Não me apercebi da razão do dirigente andar ostensivamente armado, nem me atrevi a perguntar.

O jogo da bola era de qualidade similar aos da segunda divisão portuguesa, que conhecia bem do acompanhamento dos jogos do União de Tomar.

A choça de Enver

A visita a Schkodra foi bastante preenchida, proporcionando-nos uma visita, uma boa confraternização e uma boa almoçarada numa cooperativa agrícola e uma visita a uma antiga mesquita que tinha sido transformada em pavilhão desportivo. Os albaneses tinham-se declarado constitucionalmente ateus, reprimindo todas as manifestações e agentes religiosos e convertendo os templos em espaços de utilização diversa.

 Assistimos ainda a uma sessão de variedades nocturna, com cantores e uma pequena peça de teatro num cineteatro, caricaturando os dirigentes russos que rodeavam Estaline no momento da sua morte.

Os cantores foram apresentados dizendo o seu nome e o título artístico. Pelo que percebi, havia títulos hierarquizados para os artistas, já que voltei a observar idêntica apresentação no Festival da Canção da Albânia e em alguns programas de televisão. O cantor que ganhou o Festival da Canção, uma espécie de Festival de S. Remo mas muito mais rasca, terá interpretado um tema que, supostamente falaria de uma choça que foi habitada por Enver Hoxha durante a guerrilha. O referido intérprete pertencia à elite destas categorias artísticas. Só podia.

O baile do ministério

Foi no baile de passagem de ano que vivemos o momento mais tenso da nossa operação especial. Na véspera, fomos convidados para o jantar e o baile do Ministério da Defesa, o que lançou o alarme nas hostes, já que dois da comitiva, o Manuel e o Zé Carlos, não sabiam dançar. A questão tornava-se ainda mais séria pelo facto do Manuel ser o chefe oficial da nossa comitiva e, por isso, dificilmente escaparia à obrigação do pé de dança.

Dado o alarme, organizámos um treino de dança num dos quartos. Ligámos o rádio para uma estação jugoslava que passava música e João e eu fizemos de professores e pares de dança dos outros dois. A sessão durou toda a noite mas os resultados foram desastrosos. Mas lá fomos para o embate.

Não tínhamos levado nem roupa nem fatos adequados ao momento e lembro-me de ter rapado frio. Não podia ir de canadiana para o baile.

Fomos convidados para a mesa do ministro, partilhando o espaço com as suas duas filhas e respectivos maridos e com o Nico, claro, senão não haveria qualquer diálogo. Não me recordo do que comemos e bebemos, embora devamos ter bebido vinho tinto, como era habitual.

Os quartos vigiados

A um dado momento, as duas filhas do ministro levantaram-se e convidaram-nos, ao João e a mim, para dançar. Estranhámos o facto do Manel ter sido preterido, já que os albaneses se revelaram muito intransigentes nesta coisa das hierarquias. A viatura do Manuel era sempre a primeira, o Manuel tinha direito a pantufas no quarto, era sempre o primeiro em tudo. Só havia uma explicação: sabiam que o Manuel não sabia dançar. Tínhamos os quartos vigiados, o que já antevíamos.

As minhas danças com uma das filhas, de que não me lembro o nome, correu muito bem. Deveria ter a minha idade, era bastante descontraída, conversadora, dançava bem e tinha vivido durante algum tempo em Paris, onde se tinha licenciado em medicina dentária, pelo que conversámos em francês. Exercia medicina no Hospital de Tirana. Mantive, sempre prudentemente, conversas de circunstância. Mas tive pena de não ter sido mais ousado. Creio que teria havido abertura para outros temas mais interessantes.

A irmã tinha um perfil similar, pelo que relatou o João.  Também estudara em Paris, luxo reservado aos filhos da nomenclatura. Sobre a vida social da nomenclatura, das relações desta com os seus filhos e deste conjunto com a sociedade, vale a pena ler o livro atrás referido de Ismail Kadaré.

Grupos rivais na liderança do PTA

Mas o ponto historicamente mais relevante da nossa visita acabou por acontecer na parte final do evento. Terminadas as danças, envolvendo sempre os mesmos pares, e regressados à mesa, estabeleceu-se uma amena conversa, animada pelo ministro, sobre a crise recente no PTA, em 1976, com divergências e expulsões, intimamente associadas às divergências com os chineses.

Segundo a narrativa, o Ministro albanês da Defesa, de regresso de uma visita à China, tinha à sua espera no aeroporto um grande aparato militar que comandou de seguida triunfalmente numa manifestação de força pelas ruas de Tirana. O Ministro da Defesa estaria em divergência com as posições oficiais e próximo das posições chinesas. O grupo que apoiava Enver interpretou esta manifestação de força como uma manobra intolerável de intimidação e lançou uma campanha visando isolar os cabecilhas dissidentes, a  partir das bases partidárias, identificando, isolando e neutralizando cada um dos seus apoiantes. No final, caíram sobre os cabecilhas com o apoio massivo do Partido, entretanto depurado. Terminada a narrativa ministerial, o João resolveu fazer um aditamento com um “E depois…”, fazendo um gesto de corte de pescoço com a mão aberta. Instalou-se um silêncio sepulcral, enterrei-me pela cadeira abaixo e pensei “isto vai dar bronca”. Trocámos olhares e vimos que estávamos todos na mesma onda, excepto o João que continuou com um ar natural.

Não houve mais conversa e o jantar e festa acabaram quase de seguida. Seguimos em silêncio nas viaturas para a vivenda e nenhum de nós falou sobre o tema quando chegámos aos quartos. Só voltámos ao assunto quando estivemos sós e depois já mais à vontade, no regresso a Portugal. Que aconteceu um ou dois dias depois. A relação do Nico connosco nunca mais voltou ao que era.

Comida e bebida à parte

Numa das nossas visitas fomos a Durres, uma cidade no Adriático perto de Tirana. Passeámos pela praia mas era Inverno e não dava para tomar banho. Foi-nos dito que fora uma estância de férias da nomenclatura soviética, antes da ruptura. Em Durres visitámos um coliseu romano arruinado.

Os vinhos albaneses não eram maus. Bebiam-se. Lembro-me de ter bebido um tinto de casta Cabernet Sauvignon. Nas recepções e no início e final das refeições era usual beber raki, cognac/aguardente local, e fazer saudações, guezuar (não sei se é assim que se escreve mas é assim que se diz, lembro-me que faleminderit significava obrigado). O pequeno almoço incluía sempre uma malga de iogurte caseiro.

Num dos dias almoçámos em casa dum casal de brasileiros que trabalhava na Rádio Tirana. Comemos uma boa feijoada à brasileira e convivemos bem, como sempre acontece entre irmãos. Não me pareceram muito felizes por estarem na Albânia.

Texto Francisco Melro | Editado CR/Sem Fronteiras

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