O cônsul que desobedeceu
OPINIÃO | 28/07/2022 | Opinião | Artur Monteiro
por Artur Monteiro, Paris
A evocação do aprisionamento coletivo do Vel d’Hiv e a participação-colaboração da polícia francesa fizeram-me pensar na cumplicidade ou submissão da administração francesa e dos funcionários públicos a ela submetidos (sem poder opor-se ou desobedecer) ou funcionários públicos com consentimento ativo… Em junho de 1940, um cônsul mostrou que se pode desobedecer
Face ao avanço das tropas de ocupação nazis em França, em 1940, milhares de refugiados, civis e soldados, franceses e estrangeiros, fugiram para o sul à procura de visto para o exterior. A população de Bordeaux foi assim multiplicada por três.
Aristides Sousa Mendes
Foi então que o Cônsul Geral de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, perante a afluência massiva de requerentes de vistos, decidiu ignorar as instruções do Estado português.
A circular n.º 14 de novembro de 1939 do governo de Salazar, manifestamente de inspiração racista, proibia a entrada no país aos apátridas, aos judeus expulsos do seu país, aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, aos russos…
Obedecendo apenas à sua consciência e à sua convicção cristã, o Cônsul Geral de Portugal em Bordéus assinou vistos sem distinção de situação e origem a partir de 17 de Junho de 1940. O seu Consulado tinha jurisdição sobre Bayonne e Hendaye e ele teve que intervir directamente em Bayonne porque o vice-cônsul, sob suas ordens, estava relutante em emitir esses vistos.
No comboio de refugiados
A 23 de junho, Aristides de Sousa Mendes foi convocado a Hendaye por um emissário de Salazar e pelo embaixador português em Espanha para pôr termo à sua ação. Desrespeitando essas instruções, em 25 de junho acompanhou um grande “comboio de refugiados” que atravessou a fronteira de Biriatou (no País Basco) onde a notícia da proibição ainda não havia chegado…
Demitido de suas funções no Ministério das Relações Exteriores, foi condenado em outubro de 1940 por uma comissão disciplinar. Ele então se viu privado de renda e incapaz de sustentar sua família de treze filhos. Ele, no entanto, declarará ao rabino Kruger, a quem veio em auxílio de Bordeaux:
“Se milhares de judeus sofrem por causa de um cristão [Hitler], certamente um cristão pode sofrer por um número tão grande de judeus.”
Contribuiu assim para salvar mais de 30.000 refugiados, incluindo 10.000 judeus, que conseguiram sair de França com visto português. Diplomata de carreira, ingressou no Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1910, dois meses antes da queda (5 de outubro) da monarquia portuguesa. Sousa Mendes ocupou vários postos consulares em todo o mundo, incluindo Bordéus, para onde foi nomeado em agosto de 1938. O seu humanismo levou-o a ser definitivamente afastado do rol diplomático do governo de Lisboa.
Justo entre as Nações
Morreu em 1954, em grande miséria. Aristides de Sousa Mendes, reconhecido e nomeado “Justo entre as Nações” por Israel em 1966, só foi reabilitado em Portugal em 1988 (catorze anos após a Revolução dos Cravos). Agradecimentos em particular à Comissão Sousa Mendes, criada em Bordéus em 1987, cujo objetivo foi o reconhecimento da sua atuação como Cônsul. Em 1998, o Parlamento Europeu em Estrasburgo também lhe prestou homenagem.
Porquê esse lembrete?
Não, a extrema direita não passou e não há semelhança na França entre a violência e a ocupação de ontem e a realidade de hoje. Além disso, muitos opositores de Macron, e muitos de nós, deram-lhe seu voto para “evitar” o risco lepenista.
As eleições legislativas abriram as portas da Assembleia ao FN-RN e a contribuição, En Marche, do partido do presidente possibilitou a concessão de duas vice-presidências na Assembleia a deputados lepenistas. Isto deveria, penso eu, alertar os cidadãos porque sublinha que esta “normalização” é também fruto da vontade do Eliseu.
Este lembrete é, portanto, a vontade de compartilhar aqui o significado dessa “desobediência”. E recordar, por ocasião de uma data tão importante para a luta contra a barbárie e pela dignidade, como a que evoca a batida do Vel d’Hiv, que a democracia continua frágil. O liberalismo económico que hoje dirige o Estado e seus ataques ao serviço público contribui para o empobrecimento e a discriminação social, terreno fértil para a demagogia e a extrema direita.
“Desobedecer” hoje…
A desobediência, aqui por parte de um funcionário público, é um acto mas também um compromisso cívico que diz respeito a todos nós. E as cidadãs e os cidadãos, que sistematicamente lançam publicamente alertas, mostram-nos hoje o que é a solidariedade humana e social… Como sabemos, há sempre o risco de não “obedecer” às injunções e ditames de um poder presidencial incluindo aquele que quer ser ora Júpiter ora Vulcano mas sempre um “ego-mitológico”.
Hoje, em França, os alertas vindos dos agentes da polícia que denunciam o racismo no seio da corporação, sancionados, demonstram que sob Macron “desobedecer” é um ato de “lèse majesté”. Não há vontade, nem se procura investigar, para perceber, a razão desse ato, pelo contrário reprime-se o que encaixa às mil maravilhas na forma de exercer o poder desta modernidade En Marche.
Veja aqui, /juste-avant-son-depart-didier-lallement-pris-en-flagrant-deni-de-justice* sobre um policial negro em paragem prolongada do trabalho vítima dessa discriminação. Mas também o destino de Amar Benmohamed, policial que lançou o alerta e que foi sancionado pela sua hierarquia por ter tido a coragem de denunciar os maus-tratos e o racismo de policiais na área de detenção do Tribunal de Paris, saudado por / anticor-et-ses-prix- ethics -para-2022
E finalmente outro “desobediente” de Macronie é Cédric Herrou, agricultor, defensor emblemático dos migrantes que atravessam a Roya. Seu ato de acolher e acompanhar os migrantes é um ato puro de “desobediência” contra a repressão discriminatória de um prefeito e de um Estado desumano.
Cédric Herrou en conférence après son film
Veja aqui /cedric-herrou-le-barbu-decontracte-et-heros-du-documentaire-libre, uma referência ao documentário LIBRE dedicado a ele por Michel Toesca, apresentado no Festival de Cannes em 2018. E o encontro de Freddy Mulongo com Cédric, no Festival Internacional de Jornalismo em Couthures-sur-Garonne.
Saber que o Estado francês, hoje, processou este cidadão (que não tem outra filiação senão a humanidade) por um “crime de solidariedade” porque demasiado humano, permite-nos compreender como a extrema direita avança neste país… contra todas as formas de desobediência !
- referências :
- o livro de Manuel Dias Vaz, edições Quatorze, Memórias e encontros, ajudaram-me a compreender melhor o percurso de Aristides de Sousa Mendes e o compromisso do autor com a comissão Sousa Mendes da qual é um dos dirigentes.
- O documentário de Patrick Séraudie, lançado em 2020, L’Héritage d’Aristides, permite-nos acompanhar melhor a luta do Cônsul de Portugal… /catalogue/lheritage-daristides
- O catálogo da exposição ‘‘1940. Exile for Life’’ publicado por Quatorze (Comité Sousa Mendes * 14, cours Journu-Auber * 33300 Bordeaux)
Artur Monteiro | Paris | Texto inicialmente publicado no Blog Le Club de MEDIAPART