15 de Setembro, 2024

Na cidade de Mussolini

21 de outubro, 2022

Forlì – Project PEOPLE – 6-8 de Outubro de 2022

por Helena Cabeçadas

O Projecto People é um projecto europeu que está em curso, integrado no Programa “Europe for Citizens”, e que se debruça sobre as grandes perseguições políticas, étnicas e religiosas que tiveram lugar durante os regimes totalitários de alguns países europeus, no decorrer do século XX. Integram este projecto cinco países: Portugal, Itália, Bulgária, Croácia e Albânia.

A AEPP 61-74 (Associação Portuguesa de Ex-exilados Políticos Portugueses) é a Associação que representa Portugal neste projecto. O objectivo de “People” é transmitir, de forma dinâmica, às novas gerações, o conhecimento das lutas pela liberdade e pela democracia que tiveram lugar, num passado recente, nos cinco países envolvidos – para que a memória da resistência aos totalitarismos se mantenha viva!

As diversas perseguições

Assim, há que dar a conhecer aos jovens, sobretudo, as perseguições políticas que tiveram lugar durante os regimes fascistas em Portugal e Itália, as perseguições étnicas na Croácia (antiga Jugoslávia), as perseguições religiosas na Albânia e as perseguições aos intelectuais que tiveram lugar na Bulgária – e das quais é paradigmático o caso do poeta Penon Penev, de Dimitrovgrad – isto, durante os regimes comunistas.

A ideia foi trabalhar estes temas nas escolas, com os alunos, sob a orientação dos professores interessados, tendo em vista incentivar a reflexão sobre os totalitarismos, a ideia de liberdade e dos direitos humanos, promovendo o diálogo entre gerações. Os jovens são convidados a participar activamente, com a produção de fotografias, vídeos, textos, bandas desenhadas, posters, sketchs teatrais, visitas guiadas ou quaisquer outras formas de intervenção que possam suscitar-lhes interesse.

Encontros transnacionais

Os encontros transnacionais foram precedidos de um trabalho intensivo, que teve lugar de Outubro a Março de 2022, com os jovens dos liceus, nos locais previamente seleccionados, participantes no Projecto.

Até à data, tiveram lugar 4 destes Encontros, no âmbito de “People”:

  • 1 – Município de Labin (Croácia) – de 5 a 7 de Abril de 2022;
  • 2 – Município de Dimitrovgrad (Bulgária) – de 10 a 12 de Maio de 2022;
  • 3 – Município de Shkodra (Albânia) – de 21 a 23 de Junho de 2022;
  • 4 – Forlì – Associação ATRIUM (Itália) – de 6 a 8 de Outubro de 2022;

O próximo e último Encontro (e que será o 5º) terá lugar em Portugal, em Lisboa (Museu do Aljube) e no Município da Marinha Grande, de 27 a 29 de Outubro de 2022. Está a ser organizado pela AEPP 61-74.

FORLÌ  – Cidade-berço de Mussolini

Chegámos a Forlì ao fim da tarde do dia 6 de Outubro, eu e o meu colega Carlos Ribeiro. Depois de um voo de 2,45h até Bolonha e de uma viagem de comboio de cerca de 1h, um pouco confusa, chegámos a Forlì à hora esperada. Tomámos um táxi para o hotel Lory, um hotel modesto, mas simpático, um pouco afastado dos circuitos turísticos, onde nos instalámos, já perto da hora de jantar. 

O início dos trabalhos estava marcado para o dia seguinte, na sede da Associação ATRIUM – que tem como objectivo o estudo da relação entre Arquitectura e Poder e o legado da arquitectura fascista na Itália. Foi esta associação a organizadora deste 4º Encontro do projecto “People”, em Forlì.

Uma cidade com história e cultura muito ricas

Forlì é uma cidade pequena, com cerca de 118.000 habitantes, situada na Romagna, entre os Apeninos e a Riviera Adriática, beneficiando de uma situação geográfica e de um clima privilegiados. Tem uma história cultural rica, atravessada pela antiga Via Emilia. É encantadora, como todas as cidades italianas: palácios elegantes, igrejas esplêndidas, museus e jardins bem cuidados, ruas acolhedoras, restaurantes confortáveis, cafés e esplanadas alegres… adivinha-se uma excelente qualidade de vida.

Esta foi, pelo menos, a minha primeira visão da cidade, a de uma turista normal. Pouco depois, com o início dos trabalhos com os colegas italianos, o meu olhar tornou-se mais abrangente, pela dimensão que lhe foi acrescentada com o conhecimento sobre a arquitectura fascista, que envolve o centro histórico da cidade.

Mussolini

Nascido numa pequena aldeia próxima de Forlì, Mussolini quis dar a esta cidade de província uma dimensão e uma opulência dignas da importância desse magno acontecimento. Assim, após a sua ascensão ao poder, são implementadas construções de edifícios grandiosos, a começar pela Estação Ferroviária (porta de acesso à nova cidade do Duce) e pelo Aeroporto, claramente sobredimensionados para as necessidades da região, pela monumental Avenida Benito Mussolini (hoje Viale della Libertà), onde se encontra o então designado Istituto Técnico Industriale Alessandro Mussolini (pai do ditador), tal como a Ex Scuola Elementare Rosa Maltoni-Mussolini (mãe do ditador) e a Ex Casa della Gioventù Italiana del littorio (onde ainda hoje se pode ler a fórmula do juramento fascista), o Ex Collegio Aeronautico Bruno Mussolini, frente ao qual se encontra a monumental estátua de Ícaro (com o rosto do filho do ditador, morto acidentalmente num desastre de aviação) e actual Liceo Classico, onde teve lugar o nosso encontro. 

Muitos outros edifícios imponentes foram construídos na altura, noutras zonas da cidade, mas é ao longo desta avenida, sobretudo, que vai acontecer o trabalho de consciencialização dos alunos deste Liceu.

Um jogo de opções com os estudantes

Ao longo de vários meses, foram realizados com os adolescentes várias sessões, no sentido de relacionar estes locais icónicos da arquitectura fascista com os acontecimentos dramáticos que aí tiveram lugar durante os anos 30/40 do séc. XX.

Numa visita a pé, iniciada na Estação Ferroviária, onde eram acolhidos os grandes do regime e os “peregrinos” que visitavam a “Terra del Duce” e onde também tiveram lugar sangrentas lutas operárias de resistência antifascista, e que prosseguiu ao longo da Avenida, parando frente aos edifícios mais significativos, os estudantes, divididos em pequenos grupos, viam-se confrontados, através de técnicas de role playing, com as possíveis opções que poderiam ter tomado na altura, e que iriam determinar o curso das suas vidas futuras. Era-lhes sugerido seguir os diferentes percursos de vida de 2 adolescentes dos anos 30/40, de classes sociais diferentes: um rapaz, Vittorio, filho de um professor universitário e uma rapariga, Piera, filha de um ferroviário. Consoante as escolhas feitas, em diferentes períodos da sua vida escolar, os jovens confrontavam-se com as consequências dessas suas opções. As escolhas possíveis eram, fundamentalmente, três:

– aderir ao fascismo e tornar-se um quadro mais ou menos influente na hierarquia do partido, de acordo com a convicção demonstrada;

– procurar passar entre os pingos da chuva, ou seja, fingir que não via, que não sabia – assinando o juramento de fidelidade ao fascismo (obrigatório, tal como cá em Portugal, na função pública) – o que, num contexto de guerra se tornava muito difícil;

– tornar-se activista, aderindo à resistência, com tudo o que isso implicava (prisão, assassinato, tortura, deportação…), lutando contra os fascistas primeiro e depois também contra os nazis;

Por exemplo: Quando, no Instituto Técnico, que ele frequentava, Vittorio vê o seu colega David (de origem judaica) a ser espancado por um grupo de fascistas, seus colegas, tem 3 opções:

– juntar-se aos colegas fascistas, participando na pancadaria e nos insultos a David

– fingir que não vê e afastar-se rapidamente

– opor-se, procurando defender David, e arriscar-se a ir parar ao hospital, ou mesmo pior que isso, e vir a ser expulso da Escola

Os alunos estavam divididos em pequenos grupos e lançavam um jogo de dados que determinava as suas opções e, a partir daí, os seus percursos de vida. Isto, ao longo da Avenida e frente a cada um dos diferentes locais considerados como ícones da Arquitectura Fascista – onde tantas destas situações tinham tido lugar.

Edifícios que ganhavam vida

Assim, os edifícios deixavam de ser inertes e ganhavam vida, a vida daqueles e daquelas adolescentes que os tinham frequentado, décadas antes, numa época profundamente dramática da História de Itália, e aí tinham vivido, sofrido, amado e lutado.

No final do percurso, os alunos e os monitores encontraram-se no grande auditório do Liceo Classico (antigo Instituto Aeronáutico, onde tinha tido lugar, no tempo de Mussolini, a formação dos pilotos fascistas) e falaram do que tinham sentido, perante as diferentes opções tomadas.

Foi engraçado, nesta fase final, discutir com os jovens as minhas escolhas, feitas também num regime fascista, quando eu tinha exactamente a idade deles, entre os 15 e os 17 anos: a minha adesão aos movimentos de resistência estudantis e políticos no Portugal de Salazar (aos 15 anos) e a difícil opção de ir para o exílio (com 17 anos), depois de expulsa de todas as escolas do país, em vez de continuar a luta antifascista na clandestinidade, no interior do país. Falei, justamente, da dificuldade em tomar essa última decisão, que mudaria por completo o meu percurso de vida. Subitamente, com a minha intervenção, o jogo deixou de ser só uma ficção e passou a ser algo de real/vivido – situações concretas pelas quais eu, ali presente e ainda viva, passara – e com as quais eles poderiam vir também a confrontar-se num futuro possível (Oxalá que não!). É justamente para que isso não volte a acontecer que o Projecto People existe.

Uma metodologia dinâmica

Este e outros trabalhos com os alunos foi realizado ao longo de meses com a ajuda de professores empenhados e com a colaboração activa da Associação ATRIUM e pela Associação DEINA – associação cultural focada em locais chave da história do século XX, e que orientou vários workshops com os jovens.

Trata-se de uma metodologia dinâmica e muito participativa, que permite aos alunos uma quase “viagem no tempo”, realçando sempre a ideia de que, mesmo num regime totalitário, há sempre uma possibilidade de escolha, ainda que, por vezes, muito reduzida – escolha essa que constitui, em última análise, a nossa liberdade – quanto mais não seja, a nossa liberdade interior.

Helena Cabeçadas, 18 de Outubro de 2022

Helena Cabeçadas

Editor

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